Uma nova dimensão para a arte com teatro digital

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Primeiro ato de “A Gaivota”, de Tchekhov:

Trepliov ? (…) Quando sobe o pano e esses grandes talentos, os sacerdotes da sagrada arte, iluminados pela luz artificial imitam entre três paredes como as pessoas bebem, comem, amam, caminham, como envergam seus casacos; quando dessas cenas e frases vulgares tentam arrancar uma moral ? uma moral ao alcance de todos, superficial, destinada a uso doméstico; quando apresentam em mil variantes sempre o mesmo (…)

Sorin ? No entanto o teatro tem de existir.

Trepliov ? Precisamos de novas formas. Novas formas, e se elas não existirem, é preferível que não haja nada (…)
_____

Nessa peça escrita em 1896, o médico e dramaturgo russo Anton Tchekhov já apontava a decadência do teatro em decorrência da mesmice e superficialidade correntemente exibidas naquela época.

O tom irônico de suas palavras ? além de ridicularizar a burguesia do século XIX ? constituía uma crítica metalingüística, questionadora do fazer teatral e, por conseqüência, da função social exercida por ele.

Hoje, 111 anos depois, os clamores de Tchekhov permanecem atuais. Inúmeras peças dizem (ou apenas pretendem) assumir um papel vanguardista, mas se perdem na mera tentativa de construir algo diferente a partir do mesmo.

Não há inovação. As raízes permanecem fincadas nos mesmos cânones. Por outro lado, há outros caminhos a serem percorridos. Um deles, embora sofra grande resistência, é o teatro digital.

Uma grande parcela de atores, diretores e escritores sequer conhecem este modo de expressão. No entanto, se perguntados a respeito, logo refutam a idéia e dizem que se trata de uma ?arte impossível?.

O argumento central diz respeito ao jogo cênico. Poucos acreditam que haja a troca de energias típica das montagens convencionais, ou seja, crêem que artifícios digitais prejudicam a sensibilidade tanto por parte dos atores como em relação ao público.

Por outro lado, diversos grupos brasileiros e internacionais reportam-se aos adventos tecnológicos como fatores enriquecedores da produção teatral. Defendem a utilização de recursos técnicos digitais com vistas a uma ampliação da capacidade de expressão artística nas várias dimensões em que consiste uma peça, como voz, corpo, luz, cenário, texto e, claro, atores.

Neste sentido, há nove anos, despontava na Europa a trupe La Fura dels Baus, responsável por uma releitura da obra Fausto, do romancista alemão Johann Wolfgang von Göethe.

A produção, intitulada Fausto 3.0, colocou em cena uma composição que superou ? e muito ? a estética tida por nós como tradicional.

No palco, atores e projeções contracenavam em pé de igualdade, em uma concepção que tratava luzes e sombras como personagens relevantes do drama, bem como as imagens lançadas sobre uma enorme tela postada atrás do campo de ação.

Tal visão do teatro coaduna-se com o pensamento de McLuhan (1964), que já tratava os meios comunicacionais como extensões do homem. Na verdade, este conceito pode ser sofisticado, uma vez que a tecnologia passa a protagonizar os espetáculos juntamente com o humano.

Projeções dialogam com atores, que exercitam seus corpos e vozes diante de contornos não necessariamente reais, porém despertadores de sentimentos e sensações dramáticas típicas do mundo da representação.

No ano passado, esteve em cartaz no mundo a montagem Play on Earth. Dirigido pelo brasileiro Rubens Velloso e executado pela Cia. Phila 7, não se pode efetivamente dizer que o espetáculo esteve em apenas um local, pois ele transcorria simultaneamente em três diferentes países: Brasil, Inglaterra e Cingapura.

Em cada um deles, havia a estrutura comum, formada por palco ao molde italiano e platéia disposta à moda corriqueira. No entanto, as arenas estavam conectadas por streaming, que possibilitou a integração de todas as localidades em tempo real via internet.

As cenas não ocorriam isoladamente: havia, sempre, um diálogo múltiplo entre os países ? os quais podiam ?ver-se? por telões que ocupavam o posto do cenário.

Além de um exercício de conectividade, tal experiência deve ser considerada também como um experimento estético, que perpassa outras especialidades, como a dramaturgia, iluminação, direção, sonorização e, claro, ação cênica.

Um dos símbolos mais marcantes da montagem ocorre quando dois atores ? um em São Paulo e outro em Newcastle ? juntam as metades de seus respectivos rostos em um telão, formando uma única face. Os dois representavam o mesmo personagem.

Esse novo patamar foi aprimorado pela mesma companhia, que em 2007 colocou em cartaz no tradicional Teatro Sérgio Cardoso a peça A Verdade Relativa da Coisa em Si.

Nessa peça, os espectadores são convidados a não desligar o celular. Em cena, os atores dialogam por Skype e câmeras de segurança mantêm viva a chama do jogo de espelhos durante todo o enredo.

A proposta da obra ? escrita por Marcos Azevedo e Beto Matos ? suplanta o tratamento metalingüístico, ou seja, já não discute a validade da introdução do teatro no universo digital. Eles vão além e fazem uso das variantes proporcionadas pela virtualidade para explorar criticamente a questão das verdades construídas pelos meios de comunicação, bem como as fantasias que pautam a rotina ?classe-média? contemporânea.

Hiperdrama

Mais do que encenar junto a projeções online e offline, ou mesmo entregar-se a handhelds, smartphones e notebooks durante a ação, os atores lidam, ainda, com mais um horizonte que se abre para a dramaturgia: o hiperdrama.

O conceito, introduzido por Charles Deemer, consiste na idéia de que a linearidade das montagens teatrais pode dar lugar a uma plena relativização, em que espaço, tempo, atores e espectadores podem fluir por um universo dramático de paralelas possibilidades.

Neste cenário, as histórias podem tomar um ou outro caminho, independentemente da conclusão. Quem assiste é quem determina como deseja ver a história e, desta forma, molda o espetáculo a partir das alternativas oferecidas pelo texto.

O espetáculo deixa de ser plano e ganha relevo perante o público, que passa a ter a chance de dialogar mais efetivamente com a obra com a qual mantém contato. Um de seus experimentos, curiosamente, diz respeito ao drama A Gaivota ? o mesmo citado no início deste artigo.

Voltando ao Brasil, é possível assistir até o dia 08 de julho, em São Paulo, à montagem O Kronoscópio, de Ricardo Karman.

O dramaturgo e diretor ? que já criou memoráveis instalações como a realizada sob o rio Pinheiros na década de 90 ? inspirou-se no conto The Dead Past, de Isaac Asimov, para construir um espetáculo rico em projeções, animações e efeitos especiais.

Além de fazer chover literalmente em cena, Karman enriquece a peça ao proporcionar diálogos em que um dos atores está presente apenas por meio de uma projeção bidimensional. Entretanto, a força dramática não se perde em momento algum. Não apenas a história caracteriza-se como um experimento de ficção científica, como também a montagem em si.

O que se pode perceber de tudo isso é que existe, sim, um forte movimento em torno do teatro digital. Embora os mais nostálgicos sejam refratários à terminologia ? e ainda mais à prática -, trata-se de um caminho absolutamente natural.

Desde a Grécia, com o Deus Ex Machina, a técnica está presente como um elemento que expande o valor da orquestração cênica.

Atualmente, nada mais se vê do que uma evolução deste processo. A relação homem-máquina transforma-se velozmente e a arte, na condição de legítima expressão humana, não pode render-se a conservadorismos e postar-se atrás de qualquer vanguarda.

Virtual e digital, embora não-palpáveis, figuram como vastos campos para que o teatro redescubra e renove a sua função social, bem como desperte no público uma nova onda de atratividade.

Se a base desta expressão artística é a dualidade ? relembrando Antonin Artaud e, mais para trás, Hegel -, por que não vinculá-la ao conflito dramático da pós-modernidade, centrado no choque binário entre 0 e 1? [Webinsider]

Rodolfo Araújo (rodolfoaraujo@thymus.com.br) trabalha na área de conteúdo da Thymus Branding. Mestrando em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP, integra o grupo de estudos Net Art, da mesma universidade.

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2 respostas

  1. Achei curioso o fato desse artigo ter sido publicado aqui. Alias achei ótimo, acho que é um assunto ótimo para ser discutido e ainda com um artigo muito completo.

    Essa discussão e proposta do teatro digital tenho em minha mente desde 1997. Porém devido as várias limitações do teatro, migrei para produções multimídias (CD e web) e fiz alguns experimentos em ArteDigital. Hoje faço isso apenas nas horas vagas.

    Naquela época cheguei a conversar com algumas pessoas sobre a proposta de realizar um teatro virtual que promovesse uma interatividade real.

    Não levei a idéia adiante, mas acompanho as produções em São Paulo e pela web algumas iniciativas pelo mundo afora.

    Infelizmente isso ainda esta concentrado nas metropoles. Experimentos desse tipo ainda estão muito distantes das cidades do interior de São Paulo e de outros estados.

    Popularizar essas interações de teatro-digital seria um grande desafio, e acredito que isso trará grandes fomentos e por quê não o surgimento de novas propostas teatrais, como ocorreu com o Circo e que levem o público para assistir e vibrar como no cinema.

    Se alguém quizer discutir mais sobre esse tema ou tiver algum idéia, fique a vontade para enviar e-mail.

    abraços

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