Está um pouco escorregadio isso aqui

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Há leituras que marcam nossa vida para sempre. Uma das que marcaram a minha foram as Seleções do Reader’s Digest, mas não na versão atual. Eu gostava mesmo era da coleção dos anos 60 que havia lá na casa da minha avó materna, no sul de Minas.

Quando eu li, já no final dos anos setenta, muitos do assuntos eram pra lá de velhos. E eu sabia disso. Mas era simplesmente fascinante ler aquilo. Não sei se era o jeito de redigir, não sei se eram as histórias em si, não sei se era o meu olhar de garoto ávido por absorver conhecimento, não sei se era a atmosfera mágica que passar as férias naquele lugar criava para o moleque de 11, 12 anos.

Uma das histórias que me lembro até hoje, e que influencia inclusive algumas das minhas opiniões profissionais, falava sobre Jim Clark, um dos gênios da F1 nos anos sessenta, quando os carros se assemelhavam a charutos e segurança era só uma palavra no dicionário. Pra ser bom naquilo, o sujeito precisava, além de talento e treino, um sangue frio dos diabos.

Se não me trai a memória, a história contada por um repórter que a vivenciou de dentro do carro e na visão privilegiada de co-piloto, era mais ou menos assim: fazendo uma série de entrevistas para traçar um perfil de Jim Clark, o campeão da F1, o repórter se viu de repente atravessando os Alpes numa estradinha sinuosa, tendo o próprio Clark ao volante.

De um lado, um paredão rochoso. Do outro, um despenhadeiro sem fim. Começa a nevar, forte. Não há nem onde parar para colocar correntes nos pneus do carro (?!), seja lá o que for que isso queria dizer na época (presumo que alguma forma de aumentar a aderência). Jim Clark segura o volante com as duas mãos e vai conduzindo delicadamente o carro pelas curvas cada vez mais sinuosas e lisas. Detalhe: sem dizer uma palavra. Silencioso. Focado. Concentrado. O repórter está em silêncio também. Mas de pânico. Mesmerizado pelo perigo iminente de encerrar não a matéria, mas a própria existência.

O ápice da história, de novo, se a memória não me trai três décadas depois, era a aproximação de uma curva em cotovelo. Para o repórter, parecia o fim. Mas Jim Clark deu uma leve “quebrada de mão ao volante” e o carro fez a curva. Enfim, a estrada se abriu, a nevasca ficou mais amena e o perigo passou.

Foi então, e só então, enquanto o repórter retomava o fôlego, que Jim emitiu um comentário breve: “tava um pouco escorregadio isso aqui”.

Para mim, entregar os projetos digitais de hoje em dia, nos prazos e budgets especificados, tem um pouco de atravessar os Alpes no meio de uma nevasca, sem correntes nas rodas.

Na realidade

Senão vejamos: quando a viagem começa, está todo mundo feliz. A promessa da paisagem é maravilhosa, afinal, e a companhia é boa. Alguém se preocupa em consultar a previsão do tempo? Mas o tempo está firme, oras. (Esse é um dos problemas: ele geralmente está, enquanto não estamos correndo contra seu homônimo).

Aí, no meio da viagem, ou melhor, do projeto, começa a nevar, forte. Mas, como, não havíamos escopado? Havíamos. Até detalhadamente, às vezes. Mas o que é um escopo diante de, sejamos honestos, uma ordem que vem de cima para que o projeto mude inteiro no meio do caminho?

Ou de uma linha de código que, contrariando todos os manuais de TI já escritos, teima em não fazer acontecer o que deveria acontecer? Ou da incompatibilidade quase intransponível que apareceu entre o que fizemos e a maneira como foi configurada a plataforma do cliente, que deveria ser compatível? Mas, como, não checamos a compatibilidade? Checamos. Mas parafraseando algumas coisas boas que tenho ouvido por aí, realidade é aquilo que acontece depois que a gente encerra o planejamento.

Diferentemente de Jim Clark, que era um gênio, mas não era louco e provavelmente diminuiu a velocidade, teimamos em fazer as curvas fechadas dessa mudança de escopo à toda. Afinal, o prazo da viagem não pode mudar. Não pode? Se Jim não tirasse o pé do acelerador e não se concentrasse para resolver a nova situação que se apresentou, provavelmente teríamos que viajar até o sopé dos Alpes para render-lhe homenagens. Felizmente, ele agiu assim, e chegou ao seu destino são e salvo… meia-hora depois, talvez?

Também de maneira diferente de Jim Clark, às vezes temos que enfrentar as nevascas e as curvas fechadas com o áudio dentro do carro muitos decibéis acima do que seria desejável.

Chega a ser incrível como, de amigos cheios de sorrisos no começo da viagem, nos tornamos quase inimigos figadais em alguns momentos de crise, e imediatamente subimos o tom. Faz sentido? Não. É pura emoção. Coisa natural do ser humano. Mas no meio de uma nevasca, com um cotovelo se aproximando, é bom aprender a se controlar, de parte à parte, e baixar o volume. Ou o desastre é iminente.

A longo prazo, não é difícil entender o impacto nocivo desse modus operandi nos respectivos businesses de todos os envolvidos: desgaste, frustração, mágoa, stress, ansiedade, queda de qualidade, perda de rentabilidade, comprometimento e turnover alto, só para citar alguns. Sem falar que a gente fica a léguas de distância de produzir aqueles trabalhos bacanas que a gente passa horas babando ovo no Ads of The World ou coisa que o valha.

Na prática

No meu modo de ver, há algumas coisas práticas que podem nos ajudar a atravessar as nevascas e sair do outro lado com um comentário do tipo “tava um pouco escorregadio isso aqui”, a saber:

1. Clientes, solicitem com antecedência razoável – todo, absolutamente todo projeto implica em risco, e vai dar problemas. Isso é programação, tem tecnologia, não é papel. Agências e fornecedores: todo cuidado é pouco ao assumir um job com um prazo xis. Prometeu, tem que entregar. É a lei.

2. Aquela etapa chata de documentação no start do projeto é fundamental. O que vai acontecer tem que estar escrito e assinado. Escopo de boca não vale, senão vira escopo de bate-boca.

3. Está todo mundo do mesmo lado. Não há interesse nenhum da agência ou fornecedor em desrespeitar prazos. Eles não ganham nada com isso e acabam perdendo o cliente. E não há interesse nenhum do cliente em esfolar a agência ou o fornecedor, ele não ganha nada com isso e um bom parceiro vai embora. Então, vamos lidar com os problemas juntos.

4. Criatividade é fundamental também na produção. Existe mais de uma maneira de fazer a mesma coisa. Vamos gastar mais tempo pensando uma solução quando começa a nevar do que descobrindo de quem é a culpa de não ter olhado a previsão do tempo. Muitas vezes, a prática mostra, a gente acha outra solução que cabe mais ou menos no mesmo tempo.

5. Desenvolver uma certa flexibilidade sadia, em todos os envolvidos, também é importante. Diante de uma situação inexorável, divida em etapas. Escalone. É melhor sair uma primeira etapa direito do que publicar um todo bugado.

6. Teste, teste, teste. É incrível como no afã de entregar a gente pula essa parte. Geralmente, no prazo curto, são as primeiras caixinhas do cronograma que são cortadas. Erro 404. Sem teste, 100% dos projetos vão apresentar graves problemas. Com teste, boa parte deles, ainda assim, vai apresentar um ou outro problema, geralmente contornável. Acostume-se com isso. A vida é beta. A tecnologia, então, nem se fala. É por isso que existe o conceito de “estável”. Caso você não saiba, as redes sociais mexem em suas programações o tempo todo, e nem por isso a gente para de usar ou mete a boca nos sites, né?

Resumindo: como tudo o mais nessa vida, a entrega de um projeto é questão de bom senso de todos os envolvidos. Se o prazo é curto, estamos todos no mesmo barco. Se algum detalhe passou desapercebido, idem. Se for um sucesso, ibidem.

Imagine só o que teria acontecido se o repórter tivesse começado a gritar e tivesse agarrado o pescoço do Clark, e esse tivesse revidado largando o volante pra socar o sujeito. Provavelmente eu teria lido na Seleções alguma matéria sobre culinária. [Webinsider]

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Tulio Paiva é presidente e diretor executivo de criação da Paiva Comunicação, Twitter @paivacomunic.

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3 respostas

  1. Também sou de Minas e tinha o hábito de ler as mesmas coisas, pero não me recordo desta em particular.

    Excelentes todas as suas colocações gostaria de acrescentar a necessidade de um certo “tato” “sexto-sentido” “intuição” que às vezes me acometem a alma diante de alguns clientes:

    1) O Chato Absoluto: É um tipo sem solução, Há os que creem ferreamente na recuperação da alma humana, mas tenha certeza, existem alguns que não tem a menor solução. O Danado depois de 9 bonecas apresentadas e “aprovadas” sugere de forma pueril: Vamos começar do Zero… Use o preterito perfeito do verbo “to indo” e parta, parta pra longe dele…..

    Seja um bom Budista e reconheça as coisas imutáveis e as pessoas imutáveis que existem no Universo, somos Designers e programadores não podemos perder nosso precioso tempo tentando recuperar almas nas trevas….

  2. Parabéns pelo texto! A gente acaba mesmo esquecendo de testar todos os links ou variáveis, e acaba tendo um susto na hora de conferir sentado ao lado do cliente, ou até mesmo na apresentação. Adoro este site, estão todos de parabéns pelos otimos textos!

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