Reproduzir, repetir e resignar: penso, logo desisto

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Ainda não é possível contabilizar a quantidade de mortes. E nem sabemos se é provocado por algum vírus letal. Alguns arriscam ser uma epidemia, embora as mortes físicas não sejam comprovadas. Boatos descontrolados sobre o assunto invadem o mundo e o ciberespaço. O que se percebe é a quantidade cada vez maior de baixas na sociedade.

São incontáveis os jazidos. Morreram Sócrates, Thomas Moore, Sartre, Nietzsche. Nenhuma novidade, isto todo mundo já sabe (bem, talvez nem tantos assim). O sentido é figurado – qualquer semelhança com mero figurante é coincidência metafórica-, mas o que anda sucumbindo são os espaços de tempo dedicados para a arte do pensamento.

O epistemicídio chegou até a Filosofia, a Lógica e a Sociologia. As mortes surgem com um aparente planejamento. São assassinatos em série, mas sem evidenciar os possíveis culpados. Agora as baixas invadem a gramática, a concordância verbal e nominal, com apoio explícito de alguns professores conectados “ao futuro”.

Os laudos apontam para morte natural. Há pessoas carregando um certo ar de dúvida. Mas se tais pessoas existem, mandem-nas para o sacrifício dos programas de televisão de Domingo.

Será um bom motivo para Fukuyama bradar que é o fim dos tempos. Sim, depois do Fim da História, o próximo passo é o juízo final do pensamento. Surge uma pergunta derradeira: se a História acabou porque nós humanos precisamos ficar? Que insistência! As dúvidas e perguntas profundas foram definitivamente abolidas. Será formada a “Constituição do Óbvio”, um dos jargões mais repetidos pelos políticos do terceiro milênio.

Os sintomas são de fácil identificação: descreve-se com detalhes a vida toda do último vencedor de algum Reality Show, mas não conhecemos uma frase sequer de Aristóteles. Aliás, quando o tal do “Ari” foi eliminado mesmo?

O suplício do conhecimento fora anunciado. Somente os utópicos e informados (minoria da população) conseguem perceber, mas estão ocupados demais com as tarefas cotidianas para notar a mudança.

As escolas formam em escala as “massas” de modelar; novas religiões criam doutrinas alucinógenas – cumprem a sua função de ópio do povo-; e a família, bem para essa não existe mais tempo.

O epistemicídio será então o último dos grandes males da humanidade? Talvez! Nuances demonstram que são sementes do modelo de escravidão mais bem sucedido: invisível, sútil e silencioso. A dominação pela ausência da capacidade de formulação e reflexão. Estaremos blogados, twittados, conectados. Seremos assim, mais uma representação do nosso avatar do que de nós mesmos.

A estratégia final será atingir a ciência, mas não na sua totalidade. A ciência ainda será necessária para criar métodos mais eficazes e modernos de epistemicídios.

Serão projetados micro-chips para controlar as perguntas, dúvidas, reflexões. E a melhor prática, adotada pelo nanocomputador mental, será reproduzir, repetir e resignar (os marketeiros já batizaram de R3). Um sistema bem programado e controlado. Afinal, como os animais irracionais vivem felizes e integrados com a natureza, esta será uma das máximas da nova Era.

A inteligência se tornou um subproduto dos aminoácidos, uma espécie de sistema inferior. O mundo cibernético resolverá a produção, a distribuição e até as guerras, assim como previsto pelo Grande Irmão de Orwel. Viveremos dentro de um grande jogo virtual e as escolas serão as nossas arenas. Neste jogo educativo poderemos usar o controle remoto para deletar um professor, pular uma etapa e adulterar provas e resultados.

Os poucos que poderão manter a arte de pensar serão designados para a formação dos chamados casais superiores. Antes mesmo da formação do feto, as características genéticas serão conhecidas e assim a procriação autorizada pelo poder central – que nem sabemos ao certo se é central ou não.

Obviamente já percebemos que os problemas de nosso planeta não habitam nas dicotomias da Guerra Fria ou do Terrorismo. Entretanto, a presença do bem e do mal interessam ao epistemicídio, pois os matizes geram múltiplas visões e opiniões. Manter-se-a um mundo contraditório, como sempre foi, mas as contradições estarão travestidas de consensos. Assim vamos conviver com a percepção que as coisas continuam erradas(o bem e o mal presentes), mas com a sensação que buscamos pelas mudanças. E aqui temos o alento de nossa passagem terrena.

O maior benefício da Constituição do Óbvio, que virá a proteger institucionalmente o epistemícidio, não será deixarmos de exercitar o cérebro, mas de considerarmos que todos os pensamentos são nossos. Precisamos imaginar que temos ideias próprias, mas sem sermos racionais de forma autônoma. Afinal, se inventamos os computadores, deixemos então que eles pensem por nós.

O epistemicídio vai decretar: alguns poderão pensar, outros deverão aguardar os microchips da letargia. Estes microprocessadores serão os grandes objetos de consumo. Conseguiremos citar frases de efeito, nomes de pensadores, efetuar cálculos astronômicos, mas não saberemos mais o que vem do nosso pensamento ou dos microchips implantados.

O conhecimento será substituído por um grande conjunto de cálculos, lógicas e engenhocas, apenas para gerar explicações circunstanciais e estatísticas bem fundamentadas.

Não nos preocupemos mais com a desigualdade, a injustiça, a violência e a degradação ambiental. O epistemícidio vai sempre apresentar uma boa explicação e poderemos viver em paz com a “nossa” consciência. Será a reprodução, com base na lógica do R3, da nova roupagem da máxima de Descartes, já devidamente propagada pela internet: “penso, logo desisto!”

O que começa a me preocupar neste momento – talvez influenciado pela estreia de mais um reality show – que as primeiras informações científicas, aquelas que ainda podemos ter acesso, sentenciaram em suas hipóteses que a cura do epistemicídio* dependerá única e exclusivamente da própria humanidade.

* Epistemicídio. Dedico ao jornalista Mario Galvão, pela proposta do artigo, por manter a independência e imparcialidade que preconizam sua profissão e pela sua capacidade exemplar de estender a mão. Uma fonte de inspiração permanente. [Webinsider]

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Corinto Meffe (corinto.meffe@planejamento.gov.br) é assessor da presidência do Serpro.

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Uma resposta

  1. Schopenhauer exigia uma língua culta para a Filosofia… A Igreja escondeu os manuscritos… condenou os livros… A tecnologia sempre teve como impacto direto ou indireto a disseminação do conhecimento… e, em ondas, sempre ressurge o medo da morte de algo que seria uma “verdadeira consciência”… Existe?

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