A transição entre o cinema mudo e o sonoro – parte II

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O recente lançamento do filme “O Artista”, recipiente de estatuetas do Oscar©, trouxe à tona alguns eventos durante a transição entre os filmes mudos e os sonoros, já previamente comentados nesta coluna.

A resistência à passagem de uma mídia muda para falada não se deu tão rapidamente como se desejava, pois alguns cineastas tiveram a percepção de que não era simplesmente o caso de se adicionar som aos filmes e sim de mudar de estilo de interpretação, roteiro e direção.

Uma situação singular neste período de transição foi experimentada por Charles Spencer Chaplin, o ator-comediante também músico, compositor, escritor-roteirista, produtor e diretor de cinema, com inúmeras contribuições na estética e na linguagem do mesmo.

Chaplin rapidamente se deu conta de que a sua principal criação, o pequeno vagabundo (conhecido afetivamente como “Carlitos”, no Brasil ou “Charlot”, na França) era compulsoriamente ligado à pantomima! Desta forma, colocar som em seus filmes, com este tipo de personagem, seria uma contradição em termos, a não ser que:

  • Primeiro, o filme não tivesse diálogos falados (mímica em lugar da dicção), e
  • Segundo, a trilha sonora ajudasse a realçar cenas específicas.

Em 1928, o cineasta começou a escrever o tratamento do que se chamou depois de “Luzes da Cidade”. Na produção de um projeto de filme, o tratamento é um texto que encerra o resumo da estória e do roteiro do filme. Normalmente, o tratamento é depois expandido para o roteiro propriamente dito, onde todos os detalhes da produção são descritos.

Nos anos subseqüentes o tratamento do filme sofreu diversas alterações e a projeto levou cerca de três anos para chegar a termo.

 A introdução do som em Luzes da Cidade

Quando Luzes da Cidade estava em produção, o filme sonoro já era uma realidade, e o cineasta teve que encontrar uma maneira de conciliar a pantomima silenciosa do “pequeno vagabundo” com inserção de uma trilha sonora.

A solução foi brilhante: Chaplin aproveitou a oportunidade para debochar do falatório do cinema sonoro, na forma de efeitos sonoros estrambóticos. Logo no princípio do filme, o diretor nos mostra a inauguração de uma cidade por políticos e damas da sociedade local, prato feito para o tradicional deboche chapliniano das figuras públicas.

Os discursos dos personagens são exibidos com palavras sem qualquer tipo de articulação, quinchos quase que animalescos, palavras inexistentes, ou palavras sem nenhuma importância ou significado.

A meu ver, a mensagem da cena é direta e dupla: a de que o cinema não precisa de diálogos sem necessidade (o que é verdade) e segundo, de que ouvir discurso de político é pura perda de tempo.

Em todo o filme, Chaplin faz uso de efeitos sonoplásticos. O principal deles refere-se ao bater de porta do carro do suposto milionário, ouvido pela florista cega. Mas, curiosamente, este efeito não é ouvido na trilha original do filme.

 A trilha sonora

Segundo historiadores, Chaplin teria ficado insatisfeito com a qualidade do som extraído de seu filme. Não é para menos: a banda ótica usada nos filmes de então, somada aos microfones limitados da época, iriam degradar significativamente toda apresentação do trabalho de criação da música que se ouve no filme.

À exceção de “La Violetera”, composta pelo espanhol José Padilla Sánchez e adaptada por Chaplin, todo o resto da trilha sonora foi composta pelo diretor. Chaplin não era arranjador, e por isso mantinha o seu junto à equipe de filmagem, para eventuais mudanças.

Na realidade, Chaplin era músico, particularmente violinista e pianista, mas não lia nem escrevia música. As suas composições eram mostradas de alguma forma aos seus arranjadores e freqüentemente modificadas, até mesmo durante o processo de filmagem.

Chaplin declarou ter usado música como contraponto (ênfase através da composição de sons), nas trilhas de seus filmes, técnica aprendida no teatro de variedades de Fred Karno, onde iniciara a sua carreira. É possível se observar o uso da orquestra para destacar instrumentos que mimetizam efeitos sonoplásticos, ou, como se vê em Luzes da Cidade, aqueles apitos com modulação de freqüência.

Na década de 1980 o pesquisador, maestro e compositor Carl Davis foi comissionado para restaurar a trilha sonora de Luzes da Cidade, e o fez com a ajuda de Kevin Brownlow e David Gill. A recuperação da trilha orquestral foi provocada pela comemoração do Chaplin Centennial, em 1989.

A decisão de preservar a trilha de todos os filmes da Mutual e Luzes da Cidade resultou de um acordo entre o preservacionista David Shepard e Carl Davis, posteriormente com a adesão do British Film Institute.

Carl Davis, em entrevista concedida para a edição do DVD.

O resultado deste trabalho foi exposto em performances ao vivo (projeção do filme em cinema, junto com orquestra) e em DVD. A edição do mesmo se deu através da CBS/Fox, em distribuição da Image/Warner. Esta edição está, no momento, fora de catálogo.

Em uma entrevista gravada para a edição em DVD da Image Entertainment, Carl Davis faz uma análise sobre o estilo de Chaplin, e discorre sobre o fato de que o diretor mudava constantemente a partitura da trilha durante o processo de filmagem.

Davis havia recebido cópias das partituras “oficiais” e subitamente descobriu que elas não batiam com a trilha sonora do filme. Foi somente depois de conversar com uma pessoa que presenciara as filmagens que ele soube que o diretor alterava o score musical a todo momento.

Em função deste problema, Davis se sentiu obrigado a rever todas as cópias e compará-las com a trilha original do filme (igualmente preservada no DVD da Image). E em seguida, fez revisões pontuais, de modo a igualar as duas.

O resultado foi gravado em estúdio e anexado ao DVD, em trilha PCM 2.0 @ 48 kHz. A qualidade do áudio é exemplar, e se tornou a melhor maneira de apreciar o trabalho de Chaplin, com o som que ele certamente gostaria de ter ouvido nos cinemas!

 A poesia de Luzes da Cidade

Acho difícil alguém se sentar para ver Luzes da Cidade sem se emocionar até hoje com a admiração do vagabundo pela florista cega. Chaplin, entretanto, usa a cegueira como metáfora óbvia, para o preconceito de que só pode fazer caridade ou ser generoso quem tem uma boa posição social e financeira de classe alta.

Fotografia em formato 1.13:1 encapsulada em 1.33:1, mostrando a cena em que um político local faz um discurso cujas palavras não têm significado algum.

E para ter certeza de que a platéia entende corretamente a sua mensagem, ele introduz em cena um milionário excêntrico, que só se torna generoso quando fica bêbado!

Na figura deste milionário se vê alguém que não dá valor à própria vida, contrastando com a florista, que vive a vida com sacrifício sem, no entanto, reclamar da sorte.

Em Luzes da Cidade é possível constatar uma mudança importante no personagem do vagabundo: ele troca parte da sua personalidade anti-social e anti-establishment de filmes anteriores pela figura afetiva, que tentará proteger tanto o milionário de suas crises emocionais, quanto a florista das suas vicissitudes financeiras e da cegueira.

O filme tem seu ponto culminante no encontro entre o vagabundo, já maltrapilho, com a florista, que recuperou a sua visão. Aqui, novamente, a cena mais comovente é a identificação por ela de que o seu benfeitor não tem dinheiro algum, o amor verdadeiro em lugar da pseudo-caridade!

Magnífica tomada de câmera, no ponto alto de Luzes da Cidade.

Chaplin considerava a cena e o filme como um todo entre os melhores por ele feitos. Eu sou um que concordo totalmente, e iria mais além: os oito minutos finais do filme são, esteticamente, antológicos. A captura de imagens e a posição da câmera (dentro e fora da loja de flores) traz uma seqüência de planos como uma pungência raras vezes vista no cinema. E aí, nós somos obrigados a concordar que o cinema é fundamentalmente uma arte de imagens, e como tal não precisa de diálogos ou palavras.

Na verdade, o “diálogo” final, traz à pauta (sem trocadilho) a última mensagem do filme, exibida nos dois últimos intertítulos:

Can you see now? – Você enxerga (entende) agora?

Yes, I can see now. – Sim, eu agora vejo (entendo).

 O cineasta Charles Spencer Chaplin

É impossível a quem gosta de cinema não reconhecer em Chaplin um dos maiores cineastas (em todos os sentidos) de todos os tempos. Fazendo uso de uma mídia com recursos ainda muito limitados, ele não poupou esforços para vencê-los, de modo a transmitir como queria as suas mensagens para o público.

Dizem os historiadores que Chaplin era um perfeccionista obsessivo. Os seus métodos de filmagem exigiam um número exagerado de tomadas fotográficas e constantes revisões nos roteiros.

A sua resistência ao cinema sonoro é mostrada em Luzes da Cidade com o uso de formato de fotografia fora dos padrões da academia estabelecidos para os filmes falados (1.33:1). Em Luzes da Cidade a fotografia encontrada no negativo de câmera é 1.13:1, e ela está preservada na edição em DVD da Image.

Com o sucesso de Luzes da Cidade, Chaplin ainda iria resgatar seus filmes anteriores e compô-los em dois lançamentos subseqüentes (“The Charlie Chaplin Festival” e “Charlie Chaplin Cavalcade”), em 1938, com a introdução de música e efeitos sonoros.

Charles Chaplin aderiu ao cinema sonoro para valer com o brilhante “O Grande Ditador”, lançado em 1940, mas iria fazer poucos filmes no novo formato. Com uma extensa ficha no FBI e vítima da caça às bruxas nas investigações sobre atividades anti-americanas da década de 1950, Chaplin viajou para a Europa, e lá fixou residência, com a sua última mulher e alguns de seus filhos.

A vida abstraída do criador dentro do estúdio havia lhe custado inúmeros casamentos fracassados. A sua vida como cineasta nos mostra evidências de que a criatividade carece de tempo, atenção e introspecção, o que na maioria das vezes não é compreendido pelos que o cercam, particularmente esposas e filhos. Depois de migrar para a Europa, ele ainda iria viver a longevidade, morrendo em 1977, na sua residência em Vevey, na Suiça.

Deixou para trás o legado do gênio criador e inovador da linguagem do cinema. Deixou principalmente a mensagem da imagem na tela do personagem que não iria fazer concessões aos brutos e ditadores, aos déspotas da sociedade constituída, e aos hipócritas e falsos caridosos. Deixou, enfim, uma mensagem de amor sem interesse, constantemente mostrado em seu primeiro filme com som.

 

Post-scriptum:

O final brilhante de Luzes da Cidade chama a atenção do fã de cinema, a respeito de como um filme deve terminar. São raros, e contados nos dedos, os filmes que conseguem mostrar uma ou mais cenas finais que conduzem o espectador a uma última emoção. Abaixo, eu cito alguns exemplos, tirados da memória, de filmes que têm um final quase tão brilhante como o filme de Chaplin:

E. T. O Extraterrestre, de Steven Spielberg:

O final, além dos belíssimos enquadramentos, é notavelmente realçado pela música de John Williams, terminando em corte abrupto para tela sem imagem.

Powder, de Victor Salva:

O personagem, alvo da perseguição, provocação e discriminação por colegas de escola e habitantes da cidade, por ter a pele muito alva e sem pelos, sai correndo em campo aberto, com a aproximação de uma tempestade. Atrás dele, correm a polícia e pessoas que querem protege-lo. Powder funde-se com a natureza, atraindo para si a descarga dos raios, até sumir completamente. A cena é pungente, pontuada pela excelente trilha musical de Jerry Goldsmith, terminando com um corte abruto para cena sem imagem, parecido com o final de E. T., descrito acima.

Quanto Mais Quente Melhor (Some Like It Hot), de Billy Wilder:

Esta é talvez a única comédia que eu assisti até hoje, que termina com uma anedota capaz de fazer a platéia explodir em uma gargalhada, e isto eu vi todas as vezes em que eu estive no cinema, lançamento e reprises diversas.

Melodia Imortal (The Eddy Duchin Story), de George Sidney:

Melodrama típico do início do CinemaScope, neste caso rodado pela Columbia. O personagem central é vítima de uma doença incurável e morre no fim. O final é brilhante, porque a platéia sabe que o personagem vai morrer, mas a câmera mostra apenas um piano vazio, junto com uma magnífica e dramática orquestração do Noturno em Mi Bemol de Chopin, com arranjo de Arthur Morton e regência de Morris Stoloff.

Desenhos de Tom & Jerry, dirigidos pela dupla Hanna-Barbera:

Na época em que os Festivais Tom & Jerry eram exibidos nos cinemas Metro, não havia uma só criança na platéia que não aplaudisse a cena final daqueles desenhos, no momento em que aparecia o tradicional slide com a palavra “The End”.

As orquestrações dos grandes espetáculos do passado, alguns filmes com abertura e intervalo, geralmente apresentavam orquestrações de grande impacto para os ouvidos das platéias de então. Mais raros são os filmes recentes que trazem este efeito auditivo. E talvez um dos últimos que eu ouvi com um final orquestral belíssimo foi Caminhando nas Nuvens, de Alfonso Arau, composição e regência de Maurice Jarre. [Webinsider]

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Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.

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