A invenção que não é de Hugo Cabret

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Eu confesso que fiquei surpreso com o número de cópias dubladas em exibição para o filme “A Invenção de Hugo Cabret”, recente candidato ao Oscar©. A impressão que passa é que se trata de um filme para crianças, quando na realidade não é. E entrando na sala de exibição sem saber do que se tratava, no final ainda me dei conta de que não existe invenção nenhuma do personagem, e sim de um robô herdado do pai, que por sua vez o retirou de um museu. Talvez por isto o título do filme é simplesmente “Hugo”, que eu também acho mais correto.

Este robô é uma espécie de motivação para o personagem se empenhar em fazer descobertas, e nós da plateia, junto com ele. A construção do filme se ampara no mistério que cerca o robô “Automaton”, e o que ele representou para o seu construtor.

Hugo Cabret é um órfão, vive sozinho escondido, e tomado por uma insaciável curiosidade. Em torno dele, a sociedade repressora que o teria impedido de evoluir, diante de um tratamento educativo ortodoxo, ao qual ele nunca se submeteu. Em outras palavras, Hugo é livre e independente para pensar, raciocinar e construir ou elaborar soluções para os seus próprios problemas.

E este é talvez o grande mérito do filme: o de mostrar que a alma criativa, livre da opressão pseudo “educadora” da sociedade, pode ter a imaginação necessária ao processo criador ou entender claramente o processo criativo de terceiros.

E um destes “terceiros” é, não por mera coincidência, nada mais nada menos do que o cineasta Georges Méliès, pioneiro do cinema de fantasia e dos hoje chamados “efeitos especiais”.

E pela primeira vez, eu percebo o tributo de um cineasta norte-americano, Martin Scorsese, aos verdadeiros inventores do cinema, os irmãos Lumière. O cinema de exibição, tal como o conhecemos hoje, nasceu na França, e coube a George Méliès fazer o seu melhor uso, através de técnicas fotográficas (truques, a propósito, mostrados em Hugo) inventivas, e que permitiram às plateias da época mergulharem em um mundo de sonho e fantasia. Não é à toa que os métodos de Méliès são usados como referência até hoje. Eu mesmo, acreditem se quiser, fiz uso de um deles, na elaboração de um curta-metragem como parte de um trabalho de química orgânica na faculdade.

 A contribuição de Georges Méliès ao cinema moderno

O gênio criador de Méliès deu ao cinema primitivo um impulso de linguagem jamais antecipado. Muito do material recuperado do seu antigo estúdio mostra isto claramente ao estudante de cinema ou até ao apreciador ocasional.

Parte da “história oficial” do cinema prefere atribuir a Edwin Stanton Porter o primeiro uso criativo do conceito de montagem. Entretanto, confessadamente Porter era um fã do trabalho de Méliès, tendo importado seus filmes para a América e remontado alguns de forma clandestina.

Foram as técnicas de montagem no cinema que permitiram o encadeamento de tomadas de câmera (os chamados “planos”), cortadas e coladas (literalmente) em seqüência, ou seja, “editadas”, de maneira a poder contar uma estória com o uso de imagens.

Detratores de Méliès argumentam que o cineasta se preocupou em demasia com a exibição de efeitos especiais e se esqueceu de estabelecer a seqüência correta de planos que melhor contasse a estória dos seus filmes.

Basta, no entanto, uma observação casual dos filmes de Méliès anteriores aos de Porter para se ter a exata noção do contrário!

Em “Viagem à Lua” (“Le Voyage Dans La Lune”), de 1902, ostensivamente citado em Hugo, o cineasta nos mostra uma estória completa, e aqui é sempre bom lembrar que não existiam roteiros formais para filmes deste tipo, a criação era completada em tempo real de filmagem, com improvisações em abundância. Viagem à Lua mostra fotogramas pintados à mão, uma evidência das intenções do cineasta em tentar vencer as limitações dos processos de filmagem.

Méliès era, originalmente, um mágico com exibições nos teatros. Segundo historiadores, ele teria recorrido aos irmãos Lumière para conseguir uma câmera, mas uma vez vendo logrado o seu intento, ele criou a própria câmera e, a seguir, montou o próprio estúdio de filmagem.

Os filmes dos Lumière se limitavam à mera exibição, através de uma tomada única de câmera, de um evento de duração limitada. Foi assim com a chegada de um trem à estação, da saída de operários de uma fábrica, e assim por diante.

Mèliès se deu conta de que era possível migrar completamente os atos de mágica, do palco para o set de filmagem. Com a câmera estática, a solução encontrada era criar várias tomadas com a alternância de objetos em cena. Portanto, a noção da edição em câmera havia sido criada!

Muitos dos cineastas contemporâneos, como John Ford, por exemplo, eram adeptos fervorosos da câmera sem movimento. Basta observar o seu filme “Rastros de Ódio” (“The Searchers”), que a gente irá ver uma verdadeira aula de planos longos com a câmera totalmente estática, sem que haja necessariamente alteração da cadência desejada pelo cineasta na execução do filme.

Mas Méliès iria prever ainda que as plateias ficariam encantadas com a ficção criada pela câmera. Seus filmes partem do princípio de o cinema é meio adequado para extrapolar a realidade e criar uma atmosfera capaz de induzir a plateia a acreditar que o que se está vendo é perfeitamente possível, tal qual um truque de mágica.

É possível que Méliès não tenha se dando conta de que estaria dando as bases do cinema de ficção, para aquilo que os americanos se referem na literatura como “a suspensão da descrença”. Trata-se de fazer as pessoas acreditarem em alguma premissa que elas jamais aceitariam como parte da realidade. Esta suspensão é particularmente importante nos filmes de fantasia, e essencial no cinema de animação, onde os personagens desenhados extrapolam com exagero a diferença entre o possível e o impossível.

 Hugo e a preservação da memória do cinema

Entre as várias mensagens importantes de Hugo está aquela referente à preservação das obras de cinema. Creio não ter sido por mera coincidência que o seu diretor, Martin Scorsese, foi um dos primeiros cineastas que se engajou em uma campanha para salvar o cinema do passado, cujos negativos estavam se deteriorando, vítimas da famigerada “síndrome do vinagre”, a ponto de muitos filmes terem ficado totalmente perdidos. Scorsese fundou em 1990 a entidade chamada The Film Foundation, cujo objetivo era incentivar a restauração e preservação de filmes do mundo todo.

A preservação do cinema não é apenas a necessidade de se cuidar da obra de diretores, artistas e técnicos, ela é também a melhor maneira de se ensinar a assistir cinema, ensinar como se poder interpretar e ver filmes de várias maneiras. Esta percepção, particularmente das mensagens no subtexto dos filmes (as mensagens subjacentes) é individual, mas pode ser compartilhada entre os vários membros da mesma platéia. Este, aliás, não é senão o espírito do cine clubismo, movimento do qual eu participei nos idos da minha adolescência.

Nos dias de hoje, a preservação do cinema não é mais um ato de caridade e sim uma atividade comercial. Com a padronização do cinema doméstico, na forma da mídia digital disponível, todo o dinheiro gasto no trabalho de preservação irá encontrar nesta mídia o veículo de divulgação e retorno financeiro, que permitirá outros filmes serem preservados a seguir.

Em Hugo, há uma denúncia explícita à queima de filmes em benefício do esforço de guerra, destruindo desta maneira todo o trabalho de Méliès. E esta destruição é mostrada como a possível causa da desilusão do cineasta, por ocasião do confronto arte versus política.

E finalmente se vê a restauração desta filmografia, e a importância do jovem Hugo Cabret neste processo, de seu entusiasmo e persistência na descoberta dos mistérios do robô deixado pelo pai.

Assim, Hugo, como filme, transcende o mero aspecto da diversão ou do “filme de família”, para se engajar uma luta contínua, que não é só dos cineastas, mas de todos aqueles que amam o cinema e vêm nele a forma quintessencial de arte do século 20. [Webinsider]

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Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.

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8 respostas

  1. Oi, Leeosvald,

    É sempre bom receber algo que se gosta. Eu tenho este disco e a imagem e som são ótimos, ainda mais porque na edição em DVD a imagem ainda era 4:3 letterbox e muito ruim para os padrões de hoje.

  2. Olá Paulo.

    Muito bom sua análise para o filme Hugo, eu gostei mais da bela fotografia.Mudando de assunto,um Bd aguardadissimo chegou em minhas mãos, estou falando do filme A Rocha
    Esse Bd esta impecavél em todos os sentidos,com ótima atuação de Ed Harry e uma aventura cheia de explosões.

  3. Oi, Nolan,

    Também acho o 3D cansativo para assistir com aqueles óculos. E no final o efeito também se desgasta, porque te distrai do que é mais importante, que é o conteúdo do filme. Não tenho certeza se compensa pagar bem mais caro por discos 3D, porque as imagens em 2D são plenamente satisfatórias.

    Eu canso de importar títulos, é uma chateação danada, mas um monte deles vem assim, com áudio e legenda em português. Chato é quando a gente pega em português de Portugal, porque nossas culturas são diferentes em maneira de falar, estilo, etc. Aí, eu prefiro ler em inglês mesmo.

    Desde a época do início do DVD que os estúdios americanos vêm colocando legendas em português, porque eles sabiam que os brasileiros importam mesmo. Se você se lembra bem disso, no início as nossas fábricas (CBS, entre elas) estavam exportando DVD para a América, enquanto que nós não tínhamos nenhum nas lojas. Foi aí que eu escrevi uma carta ou e-mail, não lembro mais, para a Columbia e sugeri a eles acabar logo com isto e colocar legendas em português. Não sei que peso teve o meu pedido, mas algum tempo depois eles lançaram Silverado com legendas em português. E, a propósito, eu guardei este disco, porque a transcrição foi “erradamente” feita com a fotografia Super 35 integral (1.85:1). Depois eles corrigiram para 2.35:1, fizeram o recall, mas eu declinei.

    Na prática, fica mais barato colocar logo um monte de legendas no disco, e eu tenho aqui discos com português de Portugal e do Brasil.

  4. Olá Paulo:
    Trouxe recentemente de New York o filme HUGO em bluray,que por incrível que pareça tem legendas e audio Dolby digital em português.
    Filme denso e espetacular,um dos melhores que assisti nos ultimos anos.A fotografia também é soberba.
    Com ele veio TIMTIM,uma produção do Spielberg cuja animação é de tirar o fôlego.Ambas as versões são em 2D,porque ainda não enguli direito o 3D.Sou antiquado.
    Abração,
    Nolan

  5. Ah, Tresse, quem sou eu…

    Se eu pudesse interferir em alguma coisa no cinema documentarista deste país seria aconselhar os cineastas de começarem a se mexer com depoimentos que estão desaparecendo a cada dia que passa. Só agora perdemos dois ícones do humor brasileiro.

    Nós estamos muito fraco nisto. Nem a memória dos cineastas propriamente ditos eu vejo por aí.

    O filme sobre o Tom eu vi outro dia, e lamento dizer que o que eu assisti foi uma colcha de retalhos de clipes velhos, sem identificar ninguém, sem dar crédito, e sem um pingo de depoimento sequer. Uma amiga que estava comigo saiu do cinema e me disse, com razão, que se alguém que não conhece a vida do Tom vier assistir este filme, vai sair de lá como entrou.

  6. Parabéns Paulo,
    seua rtextos além de didáticos êles ervem como registro histórico. Nosso cinema terá que reservar um lugar especial para você.
    Não pare de escrever.
    Abs.
    Tresse

  7. Leitura perfeita sobre a falha de posicionamento desse filme como um filme para crianças.

    POr incrivel que pareça ainda não conseguiu assisti-lo pois estava sem tempo, e sempre que chegava no cinema só tinham versões dubladas.

    Realmente um absurdo perante todo esse fundamento no qual o filme orbita.

    Grande abraço

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