Os dias de glória do cinema poeira

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A minha geração e as que me antecederam frequentaram salas de exibição classificadas como “cinema poeira”, ou ainda “poeirinha”, como muitos gostavam de chamá-las.

A ida ao cinema poeira não era somente falta de opção, ao contrário: naquela época, o relançamento ou reprise de muitos filmes nos cinemas lançadores acontecia ocasionalmente. Em outros aspectos, o cinema poeira preenchia um vazio dos outros cinemas: a exibição ostensiva de filmes da chamada “classe B”, aqueles cujos estúdios davam uma importância de produção menor.

O filme classe B não é necessariamente ruim. Na verdade, muitos filmes classe B se tornaram clássicos, e entre eles o exemplo mais notório é, sem dúvida, Casablanca, dirigido por Michael Curtiz. Considerado classe B com elenco classe A, Casablanca ganhou a reputação do filme feito para cumprir contrato, e o estúdio deixou em paz a produção, filmada totalmente lá dentro, com exceção de apenas uma cena, e rodado em relativo curto espaço de tempo.

Filmes classe B se tornaram, e ainda são, “cult” para muita gente. Enquanto que hoje nós podemos nos dar o luxo de colecionar e assistir um filme destes em qualquer momento, naquela época o cinema poeira era a opção de reprise mais viável. E, desnecessário acrescentar, com preço de ingresso muito mais baixo, em relação às principais cadeias de exibidores.

 A classificação de um cinema como “poeira

A denominação “cinema poeira” é de origem popular e até hoje eu sou um que desconheço de onde ela veio. É mais ou menos a mesma situação de uma anedota que um amigo seu lhe conta, que ouviu de outro, e assim sucessivamente, sem que ninguém saiba de onde a anedota partiu ou quem a criou.

No entanto, a classificação de uma sala exibidora como “poeira” seguia critérios bastante distintos:

1. Os assentos eram de madeira.

2. Ausência de ar condicionado.

3. Tela sem cortina.

4. Aparelhagens de projeção arcaicas (35 ou 16 mm).

No âmbito da Tijuca (Rio de Janeiro), já comentado aqui na coluna, o antigo Cinema Tijuca, conhecido como “Tijuquinha”, foi o principal poeira, bem no coração da Praça Saens Peña. Logo ao seu lado, estava o luxuoso e moderno Metro-Tijuca, então o contraste era inevitável.

O Tijuca vivia cheio, apesar da falta do ar condicionado. A projeção era bastante decente, e quem não tinha recurso para ver o filme nos cinemas lançadores, bastava esperar uma semana e o filme entrava no Tijuca. Quando ele fechou, foi aberta uma loja com o nome de “Tijuquinha das Frutas”. Irônico, não é não? E hoje, quem passa pela Praça, basta olhar de frente as Lojas Americanas: a entrada da direita era onde ficava o Tijuquinha. O nome Cinema Tijuca, entretanto, ficou: quando o grupo Severiano incorporou e reformou o antigo Eskye-Tijuca, o cinema foi rebatizado como “Tijuca”, com aparelhagem Incol 70/35, inclusive.

Nos arredores da Praça Saens Peña, outro famoso poeira era o Santo Afonso, cinema onde o advogado e dono da réplica do Metro construída em Conservatória, Ivo Raposo Jr., militou como operador, desde épocas remotas de sua adolescência. O Ivo, como ele mesmo me contou, saía do Colégio Batista, e ia trabalhar na cabine do Santo Afonso, e lá viveu uma história muito parecida com a do menino Totó, de Cinema Paradiso, obrigado a cortar cenas impróprias dos filmes exibidos. É que o Santo Afonso pertencia aos padres da Paróquia do mesmo nome. Um deles assistia o filme, e mandava o operador retirar o rolo e cortar a cena na coladeira, coisa que o Ivo fez muitas vezes. O seu depoimento mais detalhado foi publicado como parte do projeto Planetary Projection, da Editora canadense Caboose.

O interessante é que o porteiro do Santo Afonso ficaria conhecido dos meninos da rua como aquele que fazia vista grossa para a nossa entrada em filmes proibidos para menores de 18 anos. Assim, quando alguém descobria alguma coisa interessante passando por lá, e impossível de se ver em um cinema de cadeia, a turma comprava inteira (o ingresso era muito barato) e entrava no cinema na maior cara de pau deste mundo.

A censura sempre foi pudica. Amor, Sublime Amor, por exemplo, era proibido para menores de 16 anos, por causa do tema “gangues de rua”. Eu tinha 15 anos quando o filme abriu no Madrid, e só entrei porque o porteiro não viu direito a minha carteira de estudante!

 A paródia inglesa dos cinemas poeira

Um filme curto, hilário e bem dirigido, “The Smallest Show On Earth”, tem no elenco Peter Sellers, em um dos seus melhores trabalhos, e atores competentes, mostrando o confronto público entre um cinema de luxo e um poeira.

A ideia do roteiro é muito simples: o personagem herda um cinema antigo de uma cidade pequena do interior da Inglaterra, herança do tio que ele mal conheceu. Chegando lá, e não conseguindo um preço justo para venda, resolveu reabrir o cinema, para atiçar a cobiça do concorrente.

Peter Sellers faz o papel do projecionista, mas um homem com idade suficiente para lidar com os projetores do início do cinema sonoro. Quando o trem passa na estação ao lado do cinema, a aparelhagem balança toda e Sellers é obrigado a abraçá-la, para não desabar tudo:

 

Exagero? Nem tanto. O filme segue com cenas hilárias, da plateia se divertindo com as falhas de projeção. É que no cinema poeira (chamado pelos ingleses de “flea pit” ou “poço de pulgas”) tudo é permitido, e quando a bagunça acontecia e tomava proporções exageradas, aparecia o lanterninha para colocar os recalcitrantes para fora.

Digno de nota, o cinema do filme inglês tem o nome de “Kinema Bijou”, com “K” mesmo, seguindo as raízes da palavra grega, que significa “(imagem) em movimento”. Os europeus guardaram a tendência de chamar sala de cinema como “Cinema”, com a troca do K pelo C, como nós também fizemos. Por isto, não é de se admirar que o termo “Home Theater” seja também chamado de “Home Cinema” pelos fabricantes europeus.

 Klaatu barada nikto!

Um filme classe B que eu adoro, e recomendo para quem ainda não viu, é o clássico “O Dia Em Que A Terra Parou”, magnificamente dirigido por Robert Wise. Aliás, quando Wise foi convidado para dirigir o primeiro Star Trek do cinema, muitos ficaram espantados, por causa da fama do diretor em filmes musicais (Amor Sublime Amor, A Noviça Rebelde e outros). Mas, acontece que a experiência no gênero ficção científica do diretor tinha precedência e, não por acaso, alguns anos antes Robert Wise havia dirigido “O Enigma de Andromeda”, primeiro filme escrito por Michael Crichton, que depois escreveu “Jurassic Park”.

O filme de Wise não é somente uma obra de ficção científica elegante, ele é também um discurso contra atos de violência e autodestruição da humanidade, protestando, neste caso, contra o uso da energia atômica para fins destrutivos. Tudo isto, em 1951, pouco tempo depois, relativamente, da saída do planeta da segunda guerra mundial, quando então muitas lições a este respeito já deviam ter sido aprendidas. Mas, não o foram até hoje, o que torna este filme extraordinariamente atual.

“Gort, Klaatu barada nikto!” é o apelo repetido por Patricia Neal, no personagem Helen Benson, ao robô Gort. A frase, como era hábito em Hollywood naqueles tempos, nunca foi traduzida nem comentada pelo autor do roteiro e criador da linguagem alienígena Edmund North, tendo sido alvo de interpretações de fãs e outros exegetas pelo mundo todo. North teria dito ao historiador Steven Rubin que a frase significaria “Há esperança para a terra, se os cientistas puderem ser alcançados”. Mas, quem assiste ao filme nem precisa de tradução. A frase alerta Gort que ele não deverá tomar qualquer atitude de represália e destruir o planeta, por conta da prisão de Klaatu, o alienígena.

O Dia Em Que A Terra Parou é o filme de eleição para a gente preparar a pipoca, se sentar na sala e deixar o tempo correr. É o epítome do que o cinema como diversão representa para todos nós.

E se hoje nós não temos nem chance de ir ao cinema poeira da esquina para vê-lo, basta recuperá-lo em DVD ou Blu-Ray. O filme foi recentemente restaurado, e até mesmo a edição em DVD é ótima para uma sessão em casa. [Webinsider]

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Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.

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12 respostas

  1. Só como curiosidade, sem saber q seguíamos a expressão inglesa, ou eles a nossa, na minha infância e adolescência chamávamos estes cinemas aqui em São Paulo de “pulgueiros”! rs

  2. Grato pela presteza no contato.
    Em S.Paulo, onde reside minha filha, “não temos” esse problema de trânsito caótico.Explico-me: o condomínio dela é bem próximo das salas da Cinemark, então, faço o trecho a pé, coisa de 15 minutos. De resto, o movimento de veículos é aquela loucura de sempre. Creio que SP bate o RJ nesse quesito.

  3. Oi, Celso,

    Não, não tenho acompanhado nada nesta área, até por falta de estímulo e tempo. A projeção digital nas salas tende a se normatizar em 4K, nem tanto por causa da resolução em si (muitos filmes ainda são rodados em 1080p), mas por causa do tamanho da tela.

    Sobre 4K (TV e cinema) sairá um texto novo em breve. O Webinsider está com a agenda atrasada, por conta da perda de textos, consequência da troca de hospedagem. E estes textos serão republicados a seguir.

    Sobre ir ao cinema, que é um hábito que eu acho nunca irei perder, está muito complicado nesta época do ano. Na última saída para o cinema, saí de casa e voltei com engarrafamentos absurdos. É preciso muita paciência, que eu já não tenho mais. E não tem escapatória, porque algumas salas ficam longe e eu prefiro ir de carro.

    Depois que a política de turismo tomou conta desta cidade, está cada vez mais complicado sair de casa, seja para o trabalho, seja para diversão. Nós, a população, estamos pagando o preço de anos de atraso e desorganização no transporte público, e da insana concentração exagerada de eventos populares, fechando ruas, amarrando o trânsito, até mesmo em locais longes do centro.

    É claro que isto tem reflexo nas salas de cinema. Eu estou cansado de entrar em sessões diurnas, com meia dúzia de pessoas lá dentro!

  4. Bom dia, Paulo,
    Aqui em Avaré ainda temos um cinema poeira.
    Está desativado como projeção 35mm. A Prefeitura encampou a sala e realiza alguns eventos, inclusive com apresentação em digital com projetor não profissional. De resto, o local está completo: 200 poltronas de madeira, tela 4×7 metros, dois projetores, um Pathé 35 e outro, Bauer equipado com 35 e 70mm. É só nostalgia.
    Aproveitando, tenho lido que o filme “O Hobbit”, de Peter Jackson, que tem data de estreia no Brasil para a próxima sexta, dia 14, será apresentado em algumas salas especializadas com projeção em digital 3D a 48 quadros por segundo. De conformidade com os comentários seria uma imagem além do convencional, com uma resolução bem maior.
    Você tem alguma informação?
    Devo estar em S.Paulo e pretendo assistir em uma sala Cinemark XD para avaliar a situação.
    Abraço.

  5. Honório,

    Seu comentário é perfeito.

    O Simplex dominou as salas do Severiano Ribeiro, e até as multiplex de hoje usam modelos mais recentes, adaptados para rodar com prato.

    Os cinemas do SR com 70 mm deixavam sempre um Simplex (inclusive o Metro-Boavista), para trailers e demais curtas em 35 mm.

    A exceção foi o Roxy, cujos trailers eram também em 70 mm. Na época, se falava que a tela ultra curva do Cinerama não era adequada para 35 mm, mas isto nunca foi comprovado. O Metro-Boavista, que projetava em Dimensão 150, cuja tela era ultra curva também, exibia 35 mm regularmente.

  6. Tresse,

    Tempos atrás, eu conversei pelo telefone com uma moça do Museu da Imagem e do Som (MIS), que me disse que o museu teria uma sala de projeção, provavelmente sem película.

    Mas, não vai adiantar nada, porque isto nós fazemos em casa. O que falta é o museu de cinema propriamente dito, mas a ideia não parece sensibilizar ninguém desta área!

  7. Paulo, parabéns por fazer a juventude pensar como era a mídia cinema. Até meus 17 anos eu só conheci “POEIRAS”. As recordações são as melhores possíveis. Claro que hoje não há mais espaço para essas salas, mas caberia bem em um Museu. Não pare de escrever. Abs

  8. Dr. Paulo, o SIMPLEX, que coincidência, foi minha iniciação. Se bem que eram dois projetores tão antigos que as lanternas eram abertas atrás. Mas, afirmo que o SIMPLEX XL foi, e por certo continua sendo, um dos, senão o melhor projetor. Os SIMPLEX só tinha um problema: seus debitadores tinham só 16 dentes, inclusive o XL. Portanto cilindricamente mais finos. Para os cinemas como aquele onde me iniciei, era um problemão, pois as fitas com perfuração defeituosa, desgastadas pelo uso,ou pela grande quantidade de emendas escorregavam fora do debitador constantemente. Mas os Severiavo Ribeiro, onde só exibia-se fitas novinhas, devem ter realmente “amado” os SIMPLEX.

  9. Oi, Honório,

    Há uns anos atrás, eu comecei um trabalho de pesquisa, envolvendo bibliotecas tradicionais, sindicato de exibidores, ex-presidentes do sindicato de projecionistas carioca, Grupo Severiano Ribeiro, e um monte de outras pessoas. O objetivo era, entre outras coisas, resgatar a memória dos cinemas de bairro, particularmente o da Tijuca, onde eu nasci, que teve o maior número de salas por bairro aqui do Rio.

    Um dos problemas absurdos que eu enfrentei foi a ausência de documentação a respeito das cabines. A maioria das informações úteis foram de boca, algumas até desencontradas umas das outras. Muitos dos antigos operadores não se lembravam de marcas e modelos de projetores. Depois, eu fiquei sabendo que, antes do 70 mm, o Severiano Ribeiro tinha hábito de só instalar Simplex, E-7 e depois XL, na era do Cinemascope.

    Para você ter uma ideia, eu encontrei por mero acaso, o Darze, que foi dono do Bruni-Tijuca, e eu estava com o Orion de Faria próximo, e eu perguntei a ele que projetores ele instalou no Bruni, e ele me disse: “Os do Orion, é claro!”. Sim, mas claro foi mesmo que se eu não encontrasse com ele jamais saberia, porque nenhum dos sindicatos guardou registro dos projetores ou das cabines.

    Teria sido necessário um esforço coletivo para juntar esta informação toda, já que quase nada se encontra assentado ou arquivado. Aliás, o Hernani Heffner, do MAM, fez a pesquisa do livro da Alice Gonzaga, e ele depois me disse pessoalmente que foi tudo muito árduo e complicado.

    Sobre a Warner, eu conheço muito pouco da história do estúdio, mas ela segue, de qualquer maneira a mesma dos outros estúdios, que foi a presença de emigrantes judeus ou seus descendentes, que viram no cinema uma possibilidade de construir uma indústria, à revelia de Thomas Edison.

    Eu até que gostaria muito de ter seu testemunho sobre a sua vivência e cabine, porém não sou adepto da ideia de ter uma documentação que não possa publicar. Acho que o melhor endereço para tal seria o pessoal do http://salasdecinemadesp.blogspot.com.br/, de São Paulo, que já tem um bom acervo. Aliás, se você publicar lá, por favor me mande um link.

  10. Dr. Paulo, sobre cabines eu não entendi bem o que é que vcs. buscam. Tanto eu como o Celso fomos projecionistas e sabemos como eram as antigas cabines. Me parece, pelo tanto que eu e ele comentamos a respeito, que eu VIVÍ maior experiência. Tanto que estou escrevendo para ele apenas como um relato como foi minha “iniciaçâo” e como esta marcou minha vida. Vinha daí aquela psicose de manusear uma fita de 70mm, que me perturbou até conhecer o Celso aqui pelo “Paulo”.Não sei se ele possui fotos. Eu não tenho nenhuma; apenas memórias da minha cabine e de tantas outras que conheci, pois foram e são a minha paixão. Se pudermos ajudar, tenho certeza de que ele também o fará com grande prazer. Em tempo: entrei aqui, de início, para pedir-lhe um artigo sobre a WARNER BROS. É verdade que a mãe do Jack Warner ia pela calçada com ele e admirou-se porque no cinema se pagava antecipado o ingresso e então nasceu o estúdio WARNER?

  11. Oi, Honório,

    Eu venho comentando seguidamente com o Ivo Raposo que nós não temos (pelo menos eu nunca vi e se você viu, por favor me avise) depoimentos e registros sobre cabines e operadores aqui no Rio de Janeiro.

    Até onde nós iremos com isto, eu não sei, mas muitos projecionistas estão desaparecendo, diminuindo as chances de se conseguir resgatar a memória das cabines em proporções geométricas, uma lástima!

  12. Este artigo, para mim é pura saudade. Fui projecionista desde a infância num poeira. Seu artigo foi remexendo minhas nostalgias mais entranhadas lá no fundo d’alma. Aquilo é que foi magia. Graças a DEUS, que me permitiu viver aquilo para ter tantas e tantas recordaçôes.
    Ouso aproveitar esta janela para cobrar o CELSO DANIEL, para quem estou escrevendo minhas memórias de projecionista: CADÊ VOCÊ? Seu pc quebrou?
    O Celso é muito estimado por mim devido ter me enviado a fita 70mm que pedí na primeira vez que estive aqui no “PAULO”.

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