A intransigência experimental dos meios de comunicação II

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Com Geraldo Seabra.

Leia a primeira parte do artigo aqui: A intransigência experimental dos meios de comunicação.

Recentemente, um evento trouxe o tema dos newsgames ao cenário da mídia global. Um jogo de simulação de guerra intitulado Endgame Syria foi rejeitado no processo de inclusão da App Store pelo seu conteúdo político. O episódio revelou a primeira reação pública de intransigência de uma grande empresa de mídia contra um título do novo modelo de jornalismo online. Disponível no Android e como jogo de browser HTML5, o newsgame é baseado na atual guerra civil na Síria.

Endgame Syria

Foi lançado como parte de um projeto maior chamado de Gamethenews. A iniciativa envolve a criação de jogos baseados em notícias de atualidade. Desenvolvido ao longo de duas semanas pela empresa britânica Auroch Digital, o jogo coloca os jogadores no controle das forças rebeldes buscando diferentes objetivos políticos e militares. Aparentemente, a rejeição da Apple está baseada na seção referente às orientações de usuários da App Store.

Os termos de publicação proíbem jogos direcionados para uma raça ou cultura específicas, governos ou corporações, ou qualquer outra entidade real. Contudo, isto parece descartar todo o conceito subjacente aos newsgames como uma suposta violação dos termos. Mas mesmo assim o jogo foi deliberadamente censurado pela Apple.

Para Tomas Rawlings, criador do jogo censurado Endgame Síria, o problema estaria na palavra ‘jogo‘. Embora os games tenham conotações culturais de trivialidade, Rawlings observa que jogos como informação têm crescido muito não apenas como bases narrativas de entretenimento, mas como plataformas que emulam outras funções.

Jogos reportam realidades

Do ponto de vista institucional, a Apple quer certificar-se de que títulos realmente ofensivos não sejam publicados em sua loja. É um assunto complicado. Por um lado, há argumentos que endossam que os jogos devem ser capazes de explorar temas de informações de atualidade, assim como o jornalismo tradicional faz. A diferença é que os games usam a hiperinteratividade como aliada para reportar, debater, propor, realizar.

Em um caso hipotético, seria extremamente improvável que a Apple rejeitasse uma edição digital especial da revista The Times sobre o conflito na Síria, embora cartuns em tom satírico tenham atravessado, no passado, a linha do politicamente correto no que tange às políticas de aprovação da Apple. Porém, no outro lado da moeda está a velha reputação de que jogos são apenas jogos, e não jornalismo. Ledo engano! Quem continua pensando assim ainda vive na Galáxia de Gutenberg. Porque jogos também reportam realidades.

O poder de transparência dos games

Os games têm o poder de colocar em ação aquilo que ainda está sendo encoberto. A sua narrativa torna a realidade mais transparente, ao colocar nas mãos dos usuários a iniciativa de tomar as suas próprias decisões. Esse é o potencial de uma iniciativa como a do site Gamethenews, mas também é por isso que jogos jornalísticos vão merecer cada vez mais uma atenção mais cuidadosa da mídia.

A solução é o diálogo entre a Apple e os desenvolvedores em casos como este, para estabelecer os limites de suas políticas de publicação. Nesse meio tempo, os donos de dispositivos iOS podem jogar a versão HTML5 do Endgame Síria, e julgar a questão mais importante em todo este debate: se o jogo realmente tem o poder de educar os jogadores sobre o conflito na Síria. Afinal, até agora, o conflito já contabilizou a morte de mais de 120 mil pessoas.

Até quando vamos assistir a essa carnificina pela TV como se fosse entretenimento passivo? O conflito da Síria começou com protestos pacíficos contra o governo de quatro décadas da família Assad, mas se transformou em guerra civil, colocando a maioria sunita contra as minorias, em particular os alauítas. Desencadeada em março de 2011 como repressão de uma revolta popular contra o regime do presidente Bashar Al-Assad, a violência tomou conta do país e já tirou a vida de milhares de inocentes.

Casos de censura no passado

Não é a primeira vez que a Apple censura um jogo baseado em notícias. Em 2001, o jogo ‘Smuggle Truck’ teve a sua inclusão rejeitada na App Store. Desenvolvido pela empresa Owlchemy Labs, a narrativa do game transforma cidadãos-jogadores em contrabandeadores de imigrantes através da fronteira dos EUA. A censura da Apple centrou-se no tom demasiadamente crítico do jogo.

Na época, a direção da Owlchemy informou que o jogo original não era tão irreverente assim, mas estava tentando criar um ponto de equilíbrio político dentro do ‘campo minado da legalidade’, que envolve imigração ao longo das fronteiras americanas. O newsgame Endgame Síria é, obviamente, mais “sério” que o jogo Smuggle Truck, mas ambos os títulos colocam questões importantes para os gatekeepers da Apple.

Reação à decisão da Apple

A reação da opinião pública diante da decisão da Apple tem sido irregular, mas quando o The Guardian publicou a matéria sobre o assunto, houve uma revolta por parte de alguns leitores contra a ideia de jogos que tratam de temas da atualidade. “Como transformar a morte e o sofrimento de sírios inocentes em entretenimento estúpido”, dizia um tweet. É um lembrete de que a mídia global ainda revela certo desconforto em tratar assuntos reais de forma de jogo.

Foi assim com o RPGSuper Columbine Massacre’. O jogo procurava analisar os motivos dos assassinos Eric Harris e Dylan Klebold na tragédia conhecida como ‘tiros em uma escola de Columbine’. Na época, muitos jornais publicaram que o jogo não passava de uma exploração barata. Mas não atinaram para a tentativa de compreender a psicologia dos garotos em um formato midiático familiar para o público adolescente.

Para reverter essa aversão aos games como notícia, precisamos divulgar e ler mais críticas sobre as razões pelas quais os jogos são mais úteis hoje em dia. ‘O medo e a insegurança podem mudar ao longo do tempo, mas isso não vai mudar por mera magia, mas por meio de algum tipo de processo de maturação lenta que chega por osmose. Precisamos fazer mais jogos para que isso aconteça’, incentiva Bogost.

Jogos com temas políticos e sociais

Nos primórdios das décadas de 1980 e 1990, os jogos já exploram temáticas ligadas ao universo político e social. Desde então saíram dezenas de títulos sobre conflitos nucleares e a política da guerra fria, como Theatre Europe and Conflict: The Middle East Political Simulator. Em meados da década de 2000, o site de esquerda italiano Molleindustria começou a produzir títulos, como o ‘The McDonald e Tamatipico. A narrativa dos jogos focava a ganância corporativa e a péssima situação dos trabalhadores.

Em outros lugares, o designer Gonzalo Frasca, precursor dos newsgames, configurava o site Newsgaming, produzindo títulos sobre os atentados de 11 de Setembro (2001) e Madrid (2004). No final dos anos 1990, a chegada de plugins web, como Flash e Shockwave, deu origem a uma nova era de jogos de browser. Isso possibilitou produzir newsgames baratos e de forma mais rápida, e ainda tendo a internet como um grande agente de distribuição mundial ready-made.

Não demorou muito para que designers de jogos passassem rapidamente a usá-los como base narrativa para investigar e comentar sobre os acontecimentos do mundo real. Claro, produzir newsgames requer mais investimentos que o resignado jornalismo ‘Ctrl C – Ctrl V’. Mas, pela primeira vez, vamos assistir a produção de um jornalismo que pretende colocar o cidadão comum no centro de discussão de uma democracia real, não de uma democracia à americana, em que a escolha do presidente acontece em salas a portas fechadas com ar-condicionado. [Webinsider]

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Luciene Santos, jornalista e especialista em games como informação e notícia. É co-autora do e-book “Do Odyssey 100 aos NewsGames – uma Genealogia dos Games como Informação”. Nascida em BH, está radicada atualmente em Treviso (Itália), onde atua como apresentadora da WebTV do Blog dos NewsGames.

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