Mazzaropi em documentário

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Na tarde do dia 5 de setembro, mês passado, foi exibido no Cinemúsica o ótimo documentário com o título “Mazzaropi” e baseado no personagem e na pessoa do histórico ator. Eu confesso que imaginei tratar-se de uma homenagem à pessoa do ator, mas na verdade o foco do filme é uma retrospectiva sobre a carreira e vida de Mazzaropi, sem abrir mão da abrangência do assunto, opiniões de todos os matizes e uma belíssima introspecção sobre a filmografia do personagem.

O documentário é muito bem concatenado, e quando termina a gente sente falta de ter poder assistido um pouco mais. Méritos para o diretor Celso Sabadin e equipe. Lamentavelmente, não vi nenhum deles por lá e o debatedor programado para a sessão não pode comparecer.

O que impressionou em “Mazzaropi” é o fato de o documentário trazer inicialmente à baila a criação do personagem na tela, amparado notoriamente no “Jeca Tatú”, criado por Monteiro Lobato, personagem este que motivou o lendário escritor a pedir desculpa em público, por causa do tom racista do mesmo. Racista ou não, Amácio Mazzaropi protagonizou a figura do caipira Jeca aparentemente sem se importar com rótulos ou preconceitos. Trata-se de uma paródia, com a ressalva de que o “Jeca” de Mazzaropi se faz de tolo, mas na verdade é um sujeito esperto e perspicaz, o qual seria difícil de levar qualquer tipo de rasteira.

Depois eu soube que o documentário de Sabadin não era inédito. Ele já havia sido apresentado em Lisboa e no Festival de Cinema Cine PE, em Pernambuco. Local no qual foi feito um debate com seus realizadores, que pode ser assistido no YouTube pelos interessados. Durante a conversa foi anunciado um acordo com o Canal Brasil, para a apresentação do filme e possivelmente novos segmentos a este respeito.

 Um assunto que evoca memórias

A polêmica em torno do Jeca é lendária. E eu sinceramente não me lembro da popularidade do personagem fora de São Paulo. No Rio de Janeiro da década de 1950, o sucesso prevalente em comédias nacionais era aquele proveniente ora da Atlântida Cinematográfica ora dos estúdios de Herbert Richers, por coincidência ambos localizados no bairro da Tijuca, que, como já comentamos aqui na coluna, abrigou o maior número de salas de cinema por bairro.

No documentário de Sabadin fica claro que a figura do caipira do interior paulistano foi vítima de preconceito e toda uma discussão sobre o assunto é levada a termo dentro dos depoimentos colhidos.

Eu creio que as experiências neste preconceito diferem de pessoa para pessoa, e eu posso dar os meus 20 centavos, porque, como menino, eu passei algumas das minhas férias na cidade de Cajuru, no interior de São Paulo. Meu pai era descendente de libaneses que emigraram para o Brasil, e acabaram por se radicar em uma cidade pequena, em uma região onde a atividade agrária tinha predominância. Meus avós paternos procriaram treze filhos, o que na prática quer dizer que o meu avô, que eu não conheci, era o tradicional patriarca e com o autoritarismo que lhe diz respeito. Mas meu pai e vários irmãos emigraram, eles próprios, para outras cidades. Meu pai chegou ao Rio de Janeiro para fazer escola de direito, depois de um irmão mais velho já estar cursando a antiga Faculdade Nacional de Medicina. O resultado foi que ambos deixaram a cultura provinciana para trás, uma vez seduzidos pela atmosfera ultra cosmopolita da cidade. E uma vez transformados em espírito, nenhum deles quis voltar para a cidade de origem.

Eu, meu irmão e meus primos sempre tivemos acolhida super carinhosa do restante paulista da família. Mas, a distância cultural que meu pai deixou para trás estava lá, se perpetuava no seio daqueles que de lá nunca saíram. Este cenário só foi mudar anos mais tarde, quando meus primos se convenceram de era preciso deixar Cajuru e sua riqueza agrária, para se educarem.

O tradicional preconceito do caipira como pessoa atrasada e inculta era notória em Cajuru para quem quisesse observar, mas ironicamente foram meus primos quem se apoderaram da capacidade de discriminar, uma vez ressentidos da ótica cosmopolita com que eu e meus primos vindos do Rio encaravam a vida. O fato de a gente ser “carioca” parecia uma afronta aos locais, e eu mesmo testemunhei discussões absurdas sobre o assunto. Este cenário só mudou quando meus primos interioranos se mandaram de Cajuru, e muitos dos quais, como meu pai, jamais voltaram.

Ao ver “Mazzaropi”, a primeira imagem que me veio à cabeça foi a das pessoas do interior que eu conheci como menino, e de fato o ator conseguiu imenso reconhecimento e identificação naquele ambiente. Segundo o documentarista, seus projetos de filme no Rio de Janeiro nunca estiveram no mesmo nível. Ou seja, um personagem do interior de São Paulo, falando a seus pares no mesmo interior.

Isto teria tornado a obra de Mazzaropi um cinema paroquial e irreconhecível pelo resto do país. É preciso observar, entretanto, que durante as décadas de 1950 e 1960 a cultura brasileira era de fato paroquial e não massificada, em função principalmente da ausência de meios de comunicação que pudessem “unificar” o país. E na situação específica do cinema, por conta das deficiências crônicas na distribuição de filmes nacionais.

 Mazzaropi e a Vera Cruz

Mazzaropi fez alguns filmes nos estúdios da Vera Cruz, reputados como bem diferentes daqueles que iria fazer posteriormente em sua própria produtora.

Juro que até hoje não sei se foi devaneio ou arrogância, quando mega industriais paulistas decidiram criar uma espécie de Hollywood brasileira. A história da Companhia Cinematográfica Vera Cruz está hoje bem contada, embora ainda persistam dúvidas sobre alguns aspectos financeiros da sua derrocada.

O fato é que São Paulo passou por um período de fertilidade agrícola e pecuária invejável, somado à imigração contínua de pessoas que depois formaram grandes fortunas neste setor e na montagem de indústrias. Foi o caso do conde Francesco Matarazzo, que se tornou coproprietário de uma tal Fazenda Amália, em Santa Rosa do Viterbo, no interior paulista. Quando se ia de ônibus em direção ao interior do estado, ele levava cerca de uma meia hora para passar ao largo desta fazenda, e por aí se via a magnitude do terreno.

A família Matarazzo deu suporte ao empresário Franco Zampari para, em 1949, montar o estúdio da Vera Cruz, em enorme área de São Bernardo do Campo. Para tal, e na ambição de tornar o estúdio uma referência internacional, os empresários importam o documentarista Alberto Cavalcanti, já com renomada estima nos meios cinematográficos britânicos, e este por seu turno importa técnicos da área e manda comprar o que de melhor existia em equipamentos de imagem e som.

Dizem alguns historiadores que a Vera Cruz gastava muito mais do que arrecadava, muitas vezes com esbanjamento em festas internas para artistas e convidados, o que, eventualmente, levou a empresa à inadimplência e depois à falência. A produção de filmes vai de 1949 até 1954, e depois passa a alugar suas dependências a terceiros, para evitar fechar suas portas em definitivo.

Na sua época áurea, o estúdio conta com o ator e diretor italiano Adolfo Celi e a estonteante Tônia Carrero, pessoas que, entre outras, deram o prestígio artístico que o estúdio precisaria para se firmar. Nele estava também Lima Barreto, um dos maiores diretores de cinema deste país, que filmou “O Cangaceiro”, e ganhando a palma de ouro do Festival de Cannes. Passou por lá também o então ator Anselmo Duarte, que mais tarde viria arrebatar o mesmo prêmio na direção da obra “O Pagador de Promessas”, só que com outra produtora.

O terceiro filme com Mazzaropi na Vera Cruz coincide com o término da produção do estúdio. Mais tarde, ele constrói o seu próprio estúdio e produtora de filmes, a Produções Amácio Mazzaropi ou PAM Filmes, que lhe permitiu a independência de realização e a exploração de seu principal personagem em filmes populares que lhe deram boas bilheterias e dinheiro.

No período da PAM Filmes, Mazzaropi se cerca de cuidados na vigilância de um tradicional golpe de bilheteria nos cinemas do interior paulista: como ainda não existiam ingressos numerados, estes eram “reciclados”, isto é, devolvidos pelo porteiro à bilheteria para serem revendidos novamente. Cita-se que, em alguns casos, Mazzaropi mandava fiscais para as salas de cinema, de forma a evitar o golpe, e isto torna seus filmes notavelmente rentáveis.

No filme de Sabadin, ele comenta em entrevista que não fazia filmes de arte, porque não davam bilheteria e ele precisava pagar artistas, técnicos, laboratórios, etc.

 Os depoimentos

Em “Mazzaropi”, os depoentes confessadamente declararam gostar da coisa caipira, mas reconhecem a limitação cultural do fato de que o personagem “jeca” do ator ficar restrito ao interior de São Paulo.

Eles ainda enxergam no personagem do ator a indignação e a crítica social de aspectos políticos da época, o que é verdade, mas escorregam na comparação com Chaplin, com quem Mazzaropi guardaria uma persona “zangada”, com o objetivo de tornar o seu humor mais contundente. Realmente, zangado e às vezes revoltado o jeca de Mazzaropi era mesmo, mas Chaplin? A declaração é uma evidência que a percepção do cinema varia de indivíduo para indivíduo. Eu pelo menos nunca vi o humor de Chaplin rolar nesta direção, até porque a maioria dos filmes era pantomima.

Com notável discrição, o lado homossexual de Mazzaropi é levantado, apesar de o ator ter tido uma incontável lista de “noivas”, com as quais nunca se casou. Ninguém quis entrar em detalhes, mas é possível que o ator tenha sido vítima da chantagem de garotos de programas ou de atores aspirantes. De qualquer forma, Mazzaropi teve inúmeros “filhos de criação” sem nada correlato ao seu lado homossexual, e não deixou herdeiros. Morreu rico, mas ao que consta nem a fortuna nem o estúdio ficaram com o seu filho sobrevivente, que dá depoimento no filme. Aparentemente, Mazzaropi nunca teria oficialmente adotado seus filhos, o que explica porque ninguém herdou o seu patrimônio.

Depois de morto os estúdios da PAM foram alvo de intencional destruição, mas a maior parte dele foi resgatada por terceiros. Seus filmes estão por aí e podem ser vistos em mídia de vídeo, como o DVD.

 As limitações do documentário

Celso Sabadin e associados declararam em Pernambuco que houve uma enorme dificuldade de achar filmes em bom estado com o ator Mazzaropi fora do personagem, a maioria dos clipes em mau estado ou inadequados para uso no filme. Os poucos segmentos com Mazzaropi falando sobre seus filmes foram propositalmente editados no fim do documentário.

Por outro lado, segundo Sabadin, uma parte considerável dos depoimentos teve que ser cortada, sob pena de estender demais o filme e sem contribuir com o assunto.

Quem assiste irá convir que o assunto é bem mais amplo do que aparenta, e teria sido necessária uma segunda parte, somente para incluir e colocar em discussão assuntos pertinentes, como, por exemplo, um aprofundamento dos aspectos políticos e sociais nos quais o cinema brasileiro se envolveu. Mazzaropi detestava o cinema novo e os cineastas do movimento tiveram por ele um considerável desprezo.

De qualquer forma, “Mazzaropi” é construído com sobriedade e mestria, e merecia ser alvo muito mais do que uma simples apresentação. Só o futuro dirá se ele irá ao ar, como prometido, ou acessível através de outra mídia. [Webinsider]

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Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.

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3 respostas

  1. Paulo, parabéns pelo texto. Gostar, ou não do Mazzaropi é um direito de todos, mas não reconhecer o valor dele é uma característica do que chamo de Semi-Intelectualidade. Pessoalmente não gosto de Escolas de Samba (já pedi para você falar sobre o Áudio delas), mas,reconheço uma componente cultural nelas. Não pare de escrever.

  2. Paulo, parabéns pelo texto. Gostar, ou não do Mazzaropi é um direito de todos, mas não reconhecer o valor dele é uma característica do que chamo de Semi-Intelectualidade. Pessoalmente não gosto de Escolas de Samba (já pedi para você falar sobre o Áudio delas), mas,reconheço uma componente cultural nelas. Não pare de escrever.

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