Um conto de duas TVs

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O Senhor Jardim e a Senhorita K. moram no mesmo andar de um prédio em um bairro de classe média alta em São Paulo. São vizinhos de porta: ele mora do 31 e ela mora no 33. Sempre se encontram no corredor, no elevador ou na portaria do edifício, mas não se conhecem além de um cortês “bom-dia” ou “boa-noite”. O Senhor Jardim tem 57 anos, é engenheiro, casado com uma dentista. O casal tem 3 filhos, uma menina de 16 anos e meninos gêmeos de 13. A Senhorita K. é uma editora gráfica de 27 anos, solteira, com vida social intensa.

Por uma dessas coincidências mais frequentes na vida real do que na ficção, o Senhor Jardim e a Senhorita K compraram, quase ao mesmo tempo, televisores idênticos da mesma marca e modelo. Um aparelho de última geração de um fabricante respeitado, com tela de LED de 50 polegadas e acessórios para home-theater. Como nota de rodapé, o Senhor Jardim pagou mais caro pelo seu televisor.

O Senhor Jardim colocou a nova TV em uma posição de destaque na grande sala do apartamento, sobre um móvel feito sob medida. Como engenheiro experiente, ele mesmo instalou os acessórios e fez as conexões do conversor de TV a cabo com o amplificador. O Senhor Jardim é assinante do pacote mais caro da operadora de TV paga — são mais de cem canais de filmes, séries, jornalismo, desenhos animados e séries. O Senhor Jardim resistiu muito antes de fazer uma assinatura de TV, saudoso de um tempo em que os canais da TV aberta eram poucos mas a programação era boa. Só entregou os pontos quando viu os canais serem loteados para programas religiosos e de televendas. Na estante ao lado da TV, há uma grande coleção de DVDs de filmes de Hollywood (no armário fechado, há ainda dezenas de fitas VHS). Para o Senhor Jardim, essa nova TV é realização do sonho de infância da televisão ideal, desde o tempo em que sua família se reunia na sala para ver o Flávio Cavalcanti quebrar discos de vinil no joelho e chamar os comerciais.

O Senhor Jardim está feliz com a evolução da televisão, orgulhoso do progresso da engenharia e dos demais talentos envolvidos. O problema é reunir a família toda na frente desse prodígio tecnológico. Quando muito, o Senhor Jardim consegue assistir TV com a esposa — que apesar de toda a oferta de canais, prefere ver programas da TV aberta, como novelas e telejornais. Os filhos nunca assistem a TV na sala. Todos têm suas próprias TVs nos quartos, e seus programas favoritos são um mistério para o Senhor Jardim. Normalmente o Senhor Jardim fica sozinho na frente da grande tela, zapeando os canais e considerando se deve assistir a trilogia “Poderoso Chefão” novamente.

No apartamento da Senhorita K, a nova TV não está na sala de estar propriamente dita. A Senhorita K transformou um dos quartos em sala de mídia, com um bom tapete, almofadas e pufes. Conectou um Xbox à TV e promove campeonatos de videogame. Não assina nenhuma operadora de TV paga, e capta os canais de TV aberta usando a antena coletiva do prédio. A Senhorita K assina Netflix — mas seu interesse são as séries exclusivas do serviço como “House of Cards”, e não o catálogo de produções antigas. A Senhorita K também conectou um HD externo de um terabyte à nova TV. Ela faz download de filmes e séries atuais via torrent, e depois busca as legendas em português em sites específicos. Foge assim da programação defasada e cada vez mais dublada dos canais pagos. Foge também das grades de programação, assistindo seus programas de acordo com os horários de folga do trabalho — geralmente na madrugada ou de manhã cedo. A grande sala de estar do apartamento tem apenas um par de sofás e o aparelho de som, é o ponto de encontro de seus amigos. A TV é apenas um eletrodoméstico, uma das muitas telas na casa.

O Senhor Jardim e a Senhorita K são espectadores de TV. Em muitas metodologias de pesquisa, são considerados consumidores iguais — em termos de renda, de nível de instrução e até de conhecimentos tecnológicos. Compraram modelos iguais de TV, afinal de contas. Mas uma observação mais detalhada mostra que eles são bichos de espécies diferentes, apesar das semelhanças.

As pesquisas de audiência ainda não aprenderam a diferenciar entre o Senhor Jardim e Senhorita K, e muitos fenômenos simples ficam cercados por uma aura de mistério. Será ainda possível medir audiência de televisão do modo tradicional? Será que esse indicador tão essencial para a venda de publicidade pelas emissoras ainda é minimamente confiável? A chegada ao Brasil do instituto alemão GfK para concorrer com o monolítico Ibope pode revelar mais do que os canais e agências gostariam a respeito desse público.

Há anos se detecta a lenta mas contínua erosão da audiência da televisão. E não se trata de migração de um canal para outro: é perda real de público. Saber o que esses desertores fazem é essencial para a estratégia futura. A TV continua a mídia publicitária dominante no Brasil e no mundo, mas esses “vazamentos” não podem ser ignorados. Ou a televisão seguirá o caminho já trilhado pelos meios impressos, pulverizados por mudanças de hábitos dos leitores e pelas novas tecnologias. [Webinsider]

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Sergio Kulpas (sergiokulpas@gmail.com) é jornalista e escritor.

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