Vim, vi, não venci, mas fui testemunha

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Neste ano da graça de 2014 estarei completando 65 anos de vida, se não morrer antes. Serei oficialmente um cidadão “idoso”. Todo mundo que chega a esta idade deveria escrever um livro de memórias, senão muito da escassa informação que se tem a respeito dos lugares e eventos morre junto com seus participantes. Mas a maioria não pensa assim. Eu também não tenho também a intenção de escrever um livro sobre isso, nem mesmo eletrônico, porque não acho que a minha experiência de vida tenha sido tão importante assim para outras pessoas. De qualquer maneira, gostaria de pedir licença aos leitores e traçar algumas pinceladas sobre o assunto “memória pessoal”.

Vou dividir por tópicos, se me permitem, e fazer comentários sobre eventos e personalidades pertinentes, sob a minha ótica. Estarei assim dando testemunho sobre o que eu vi e vivi, olhando em retrospecto a história que eu aprendi na escola e aquela que eu segui acompanhando mais de perto. Se os leitores quiserem, eu os convido desde já para fazer o mesmo na área de comentários. Todas as experiências serão bem vindas!

O cinema

Toda criança se sente atraída por alguma coisa, independente da interferência de pais ou educadores, e só a Genética conseguiria explicar por que. Comigo, a atração seria por artefatos mecânicos e depois por eletrônicos. Desde cedo, eu queria saber como os discos fonográficos tocavam música e como os filmes eram projetados na tela.

E dei sorte, porque meus pais nunca interferiram no processo da descoberta. Muitos pais o fazem, sabiam? E estão errados. Ainda bem menino (abaixo de cinco anos) eu subia em uma cadeira para ver o toca-discos de 78 rpm girar, e como só tinha uma música de cada lado, eu aprendi logo que tinha um botão com a indicação “Repeat”, que uma vez pressionado, fazia o braço voltar ao início do disco.

Já na faixa dos sete a oito anos, eu descobri os filmes mudos, primeiro na casa de um amiguinho da rua, depois na minha própria casa. E logo a seguir, o filme sonoro de 16 mm. Se a mim fosse pedido hoje o design de um modelo pedagógico para aprendizado da tecnologia, eu iria recorrer às máquinas mais simples, caso elas existissem. Porque se alguém observa e aprende os aspectos mais rudimentares de qualquer processo tecnológico, as chances de dominá-lo e seguir adiante são bem maiores. Ironicamente, no ensino de base no Brasil as aulas práticas são raras, inexistentes, ou relegadas a colégios de elite.

A minha geração aprendeu a ir aos cinemas, primeiro com os pais, depois com os amigos ou sozinhos. Ao longo da minha vida de solteiro, eu frequentei desde cinema poeira até os palácios, fui rato de cinematecas e museus e, com exceção do Cinerama, vi rolar na minha frente todos os avanços técnicos nos filmes.

E ainda me envolvi com projeção, na medida do possível. Foi o fascínio inato pela observação da mecânica que me fez aprender a projetar sozinho, e entender a composição da imagem e do som.

A bossa nova

Aos 12 anos de idade, mais ou menos, eu ouvi o disco “Avanço”, do Tamba Trio. E depois de uma dúzia de repetições me dei conta de que estava diante de alguma coisa completamente nova, em termos de música brasileira. Mas, não tinha idade para frequentar clubes ou casas noturnas, de maneira que os principais movimentos da bossa nova passaram em branco.

Não obstante, pouquíssimo tempo depois, eu comecei a ouvir jazz moderno, e aí o lado lírico e harmônico da bossa nova começou a fazer sentido. E explico: o jazz é uma música cuja principal característica é a composição inovadora ao se tocar um instrumento, na forma de improvisos ou arranjos sofisticados. Tudo isso firmemente ancorado na liberdade de expressão e no espírito de vanguardismo. E a bossa nova era tudo isso, como sugere o título do elepê do Tamba. Pela primeira vez, saía-se da mesmice do samba tradicional e das partituras deprimentes do chamado samba-canção, para se contemplar a natureza da cidade, o amor e a poesia, em fórmulas harmônicas avançadas e compassos para lá de sofisticados.

A propósito: nos meus ouvidos o Tamba Trio foi o mais criativo e o mais integrado harmonicamente de todos os trios da época. Assim como Os Cariocas, que fizeram várias tentativas de vozes e arranjos vocais inovadores, sem paralelo com qualquer outro grupo do gênero naquela época.

O futebol

Todos os meninos da minha geração inevitavelmente jogavam futebol ou eram convidados a fazê-lo, nas aulas de educação física, na rua, nos campos de terra, gramados ou concretados. A mim, ninguém precisou me convidar. Eu nasci obcecado pelo jogo, e só parei aos dezessete anos, por problemas de doença, e porque eu precisei começar a estudar, senão não avançava na vida.

Fui testemunha das principais copas do mundo antigas pelo rádio e por filmes exibidos nos cinemas (1958 e 1962), e pela TV (1970), quando as transmissões por satélite já eram realidade neste país. O futebol de outras épocas tinha paixão e arte. O de hoje, predominam o preparo físico e a força. Na minha opinião, mudou para pior.

O meu pai era apaixonado pelo Fluminense, e me levava ao Maracanã, onde eu vi, ainda menino, os maiores jogadores do clube. Também vi grandes nomes, como Pelé, Garrincha, Didi (que não jogava mais pelo Flu), Nilton Santos e uma dezena de craques de outros clubes. Vi a “máquina” tricolor jogar, depois o timaço de 1983, e logo a seguir, abandonei os estádios. A escalada da violência urbana me afastou de lá. O objetivo da distração e o gosto pelo esporte perderam o sentido. E quando vejo as brigas de torcida atuais, eu noto que o sentimento não mudou.

Hoje em dia, eu fico perplexo como a história do futebol é deturpada, ou por maldade da mídia ou por má-fé política de alguns dirigentes. E o Fluminense Football Club, que praticamente fundou o futebol no Rio de Janeiro, e tem um histórico de títulos e conquistas riquíssimo, quase tem o seu departamento de futebol fechado na década de 1990, por um de seus dirigentes. E até hoje, o clube como um todo, ainda sofre os reflexos desta tentativa.

Depois da lei Pelé, o futebol virou jogatina de empresários. A mídia venal serve a eles, e a massa é manipulada de roldão. A arte, que nós aprendemos vendo os grandes craques do passado, pulverizou-se diante da ganância dos investidores e na guerra de poder que tomou conta do esporte. Até os políticos profissionais aprenderam a se beneficiar disso, construindo ou reformando estádios, com gastos nababescos de dinheiro público, e deixando de lado a mais primitiva das atenções de saúde da população de qualquer cidade. E eu pergunto: que graça tem isso? Aonde foi parar aquela coisa lúdica do esporte? Se alguém souber, por favor me conte.

A ditadura de 1964

Quando Jânio Quadros renunciou ao poder, alegando “forças ocultas”, o Brasil todo e em particular os militares entraram em estado de alerta. Quadros, que passava a maior parte do tempo assistindo filme de caubói e bebendo uísque no palácio, deu lugar ao vice João Goulart, que não era consenso entre os militares e em outros setores do governo.

A criação de Brasília foi um embuste. Juscelino faliu a previdência social com uma obra para lá de inútil. E em consequência o país como um todo ficou endividado e empobreceu, se tornando alvo fácil do discurso político enganoso dos que se julgavam (e ainda se julgam) em missão messiânica para salvar a pátria.

E João Goulart se via cercado por políticos de discurso incendiário como Leonel Brizola e Miguel Arraes. A situação chegou a um ponto, diante da ameaça de se criar no Brasil uma segunda Cuba, que a Igreja Católica começou a mobilizar as suas forças. O resultado foi a agora histórica “Marcha com Deus pela liberdade”, onde milhares de famílias católicas encheram as ruas centrais do Rio de Janeiro.

Mas, a ameaça de um governo esquerdista radical continuou. Os militares de linha dura perderam as estribeiras e deram um golpe de estado. No dia primeiro de abril de 1964, logo que eu acordei, o meu pai me disse que eu não iria para a escola, e nem ele iria trabalhar. E nós ouvimos pelo rádio as notícias, muitas truncadas, dando conta de que as capitais do país haviam amanhecido com tanques nas ruas.

O Brasil é historicamente adepto de um golpe de estado. Meus professores de história diziam que o primeiro deles foi na proclamação da república, e o país ainda iria viver a ditadura caudilhesca do Estado Novo, na década de 1930, e as constantes lutas entre políticos fascistas e comunistas, com o povão servindo de bucha de canhão e massa de manobra.

Com o golpe de 64, os políticos incendiários foram colocados para correr e assim todo mundo pensava que a democracia estava preservada. Ninguém contava com o fato inusitado da continuidade do regime militar, um atrás do outro, e com o congresso com a mordaça na boca. E assim a própria Igreja Católica começou a objetar a troca de poder, e foi, acreditem se quiser, perseguida pela repressão pós AI-5.

Foram dezoito anos de puro arbítrio, prisões ilegais, torturas e assassinatos, que em nada justificaram a iniciativa de preservação da democracia, se é que ela foi pretendida algum dia. Uma coisa, porém, é certa: os militares tinham uma clara percepção da política e dos entraves burocráticos que os políticos causavam neste país. Nada muito diferente, aliás, do que se passa hoje, ou seja, tanto assassinato e morte, para voltar tudo o que estava antes!

O movimento estudantil

Quando eu entrei na faculdade em 1971, no pico da repressão militar clandestina, eu já havia conhecido alguns colegas de turma que participaram do movimento de excedentes das escolas de medicina. Excedente era o candidato que ficava de fora, no resultado da classificação do vestibular para as universidades públicas. E eu era excedente por uma vaga apenas, em um vestibular duríssimo. Mas, por segurança, me matriculei na opção Farmácia, fazendo depois curso de Bioquímica em separado.

No campus, colegas de turma e de outras unidades, eram filiados ao Partido Comunista, conhecido na época como “Partidão”. O movimento estudantil não era liderado por nenhum deles. E dentro das turmas, haviam também policiais disfarçados, gerando uma paranoia entre nós absurda.

A primeira coisa que eu descobri a respeito da esquerda brasileira era de que ela era dividida, e ninguém confiava em ninguém. Logo nos primeiros dias no campus, alguns desses colegas me alertavam que fulano de tal era “reformista”, alcunha de pessoa ligada ao sistema, e diziam que eu não devia me envolver com eles.

Dentro do movimento, eu vi pessoas com uma cabeça incrível, inteligentes e perspicazes, com uma noção sadia de como devia ser um estado de direito. Porém, o que mais me chamou a atenção foi a ingenuidade em acreditar que todo aquele idealismo era de fato possível, frente a um regime de exceção.

A repressão se encarregou de prender e depois soltar um a um desses colegas. Eu até hoje acho que eles não tinham confiança em mim, ou achavam que não valia a pena me convidar para ser membro do partido (pequeno burguês demais, talvez) e deve ter sido por isso que eu livrei da cadeia clandestina. Eu sei que eu cheguei a ser denunciado ao DOPS, mas só Deus é que sabe por que eles desistiram de mim.

Depois das prisões o movimento no nosso campus foi desaparecendo lentamente. E eu, vendo que o ensino universitário não estava me levando a canto algum, larguei tudo e fui à luta para me profissionalizar: monitoria, emprego de professor em escola particular, e força para terminar os créditos. Em apenas um ano, não tinha tempo para mais nada. E aí, a distância com todos foi inevitável.

A política

Se o movimento estudantil me ensinou alguma coisa de útil a respeito da política é que os políticos mentem, e nem ficam rubros. Foi dali para frente que eu aprendi que o Brasil é uma democracia fictícia, uma das poucas, senão a única, onde o cidadão é obrigado a votar, sob pena de multa ou prisão em não o fazendo, caso não tenha uma desculpa decente para apresentar ao juiz. Maravilha!…

Com o término da ditadura, os incendiários voltaram, e deixaram o país em uma situação pior ainda. Com todos os seus erros e crimes infames, os militares investiram na universidade pública, com novos prédios e equipamentos. As verbas chegavam aos departamentos o suficiente para as aulas e pequenos projetos de pesquisa, e assim a qualidade da formação na nossa área melhorou muito. Foram os militares quem criaram o regime de dedicação exclusiva para os professores federais, uma velha aspiração da comunidade acadêmica.

Com a democracia, políticos como Fernando Henrique e Lula, todos dois demagogos e populistas, fizeram o movimento em sentido contrário: depauperaram a universidade pública, sucatearam equipamentos e instalações, e vilipendiaram salários. O governo Lula chegou ao ponto de taxar os aposentados federais com contribuição de INSS, com o “objetivo” de cobrir os rombos da previdência social, causados, diga-se de passagem, por eles mesmos!

Lula odeia os intelectuais. Segundo o cartunista Jaguar, ele é um sujeito rancoroso. Em um de seus discursos contra a greve dos professores, por causa do salário sem reajuste, ele diz algo do tipo “professor universitário não é melhor do que uma mulher do campo”. Durante os seus oito anos de desgoverno os reajustes foram pífios ou inexistentes.

Se um pai ou uma mãe são pessoas semialfabetizadas ou de pouca cultura, mas têm carinho pelos filhos, irão fazer de tudo para vê-los educados. Os governos do Lula exalaram um desprezo notório pela cultura e pela educação. A julgar pelas pesquisas de popularidade, e presumindo que elas sejam verdadeiras, o grosso da população ou não conseguiu enxergar isso ou gosta mesmo de viver iludido.

A gente sofre, mas aprende: pior do que a ditadura é um clima de falsa democracia, onde você fala, mas ninguém te ouve.

A Bioquímica

Eu vi a Bioquímica Médica saltar de observações clínicas com imensas dificuldades de interpretação, para avanços científicos rápidos, por conta do aperfeiçoamento dos equipamentos, métodos e técnicas nos laboratórios.

O desenvolvimento de ensaios semimicro de enzimas intrateciduais aumentou a compreensão sobre os processos de alteração metabólica, adaptação e lesão celular nos diversos tecidos do corpo humano. E com isto, novos medicamentos e novas estratégias de tratamento puderam ser realizados.

Na minha época de monitor e depois professor auxiliar, do então Departamento de Bioquímica Médica, do Centro de Ciências da Saúde da UFRJ, todas as aulas práticas eram montadas dentro dos laboratórios, reagente por reagente.

A Bioquímica Clínica, que era um braço da nossa, avançou depois com a introdução dos equipamentos de análise automatizada e com a informatização dos mesmos, permitindo um controle de qualidade quase que imediato e facilitando a vida do técnico de laboratório dos hospitais.

O rastreamento sofisticado das transformações de substâncias em diversos tecidos propiciou que medicamentos modernos conseguissem o tratamento de processos crônicos. Infelizmente, a medicina como um todo não garantiu até hoje a melhoria da qualidade de vida das pessoas.

A informática

Ao contrário, lamentavelmente, de muitos colegas de profissão que eu tive, eu sempre achei que o cientista tem que saber um pouco de tudo, pelo menos do que estiver ao seu alcance. A informática, que deveria ter sido a mais importante ferramenta para o pesquisador, sempre foi uma tremenda caixa preta, para a grande maioria de todos nós. E sem curso de formação disponível, dentro da nossa área de atuação, o jeito que eu achei foi meter a cara e tentar aprender sozinho.

Os computadores do passado eram verdadeiros armários, ocupavam salas inteiras, e muitos ainda funcionavam com máquina de cartão perfurado, um verdadeiro pesadelo, até para os profissionais da área.

A microinformática mudou tudo isso. A ela se somaram as linguagens de programação de alto nível, com o uso de palavras apropriadas para as intenções do usuário final, termos como print, goto, if, else, etc. Aí, programar ficou bem mais fácil.

Mas, no princípio, aqui no país não adiantou nada. Os governos da ditadura impuseram uma lei de reserva de mercado, que impediam a importação de computadores ou peças. E assim, enquanto lá fora se andava para frente aqui se andava para trás.

Quando o primeiro curso de microinformática para professores foi aberto no Núcleo de Computação Eletrônica da UFRJ, eu me inscrevi na primeira turma. A caixa preta, porém, continuou: bastou a primeira aula, que de uma turma de mais de cinquenta professores só sobraram uns vinte na semana seguinte, alguns dos quais que haviam conseguido comprar um computador Apple na clandestinidade. Uma colega minha do Instituto de Nutrição me disse à época: “eu não vou aprender isso nunca”, e se mandou.

Os nossos monitores eram alunos dos Institutos do Centro de Tecnologia. Todos eles eram parcimoniosos de atenção ou explicações, alguns quase crípticos na hora de dizer qualquer coisa. Então as aulas práticas eram quase inúteis.

Mas a nossa pesquisa no laboratório carecia deste tipo de conhecimento. E isso só foi mudar comigo, quando eu consegui comprar, a duras penas, um console MSX, de 8 bits, bem mais fácil de usar do que aquele monstrengo CPM do NCE. Durante a década de 1980, eu gastei madrugadas intermináveis aprendendo sozinho. E eventualmente encontrei, pela primeira vez, outras pessoas que lutavam para aprender e queriam compartilhar conhecimento.

Nesta época, eu conheci um garoto chamado Alexandre, que montou uma BBS (Bulletin Board System) quase que sozinho. Esse moço, que deve estar hoje na fase dos quarenta anos de vida, eu acredito ter se tornado proficiente profissionalmente. A informática de outrora ensinou lógica a quem quisesse aprender.

O MSX começou a ser alimentado com periféricos como drive para discos floppy de 5 ¼”, modems analógicos, expansões de memória, etc.

E quando eu vi que a coisa não andava por falta de literatura, eu disse ao meu irmão Sergio: “Que tal unir o útil ao agradável?” E continuei, mencionando que o ensino de informática era incipiente e às vezes propositalmente críptico. Na prática, significava transformar em mistério inexpugnável aquilo que seria simples se uma explicação decente fosse dada. Então ele propôs o nome do nosso primeiro livro como “dBase II Plus MSX sem mistérios”. O título pegou e nós chegamos a vender duas edições.

O MSX foi para mim e vários outros uma escola. Foi com este aprendizado que nós conseguíamos entender que a informática trabalha não só com números, mas com símbolos. Os processadores de texto com interface gráfica acabaram com as terríveis máquinas de escrever. Os programas que faltavam a gente escrevia. Eu fiz um com cálculos de estatística para o laboratório que durou mais de dez anos, em plataformas diferentes!

O que se fazia com um computadorzinho de 8 bits era incrível. Um dia, um antigo colega do Núcleo de Pesquisas de Produtos Naturais me encontra na rua, e aí me pergunta: “Se lembra daquele computador gigantesco da central analítica, rodando o programa do espectrômetro de massa? Eu troquei ele por um TK-80!”, e saiu dando gargalhadas”.

Mas, em fins de 1980, a informática de 8 bits estava extinta. Lá fora, eu rodei o Windows 2.03 (que era horrível), em micro do trabalho com processador 8086. Depois, saíram as versões 3.0 e 3.1, esta com fontes TrueType. O DOS rodou separado do Windows até a versão 95, quando o prompt da partida do micro sumiu de vez. Mas, isso não nos impediu de continuar usando aplicativos em DOS, alguns dos quais muito úteis para o trabalho científico.

O trauma de ter aprendido informática no peito e sem apoio, acabou por me dar a chance de ensinar a colegas do doutorado lá de fora a como processar textos ou montar planilhas e bancos de dados. Um dos meus orientadores ficou fascinado com a construção de gráficos de alta precisão (usava-se até então o papel milimetrado, com erros) em impressoras ainda matriciais, e assim o nosso setor de pesquisa investiu pesado em computadores modernos e impressoras a laser, que foram úteis em todas as teses da época.

Por incrível que pareça, tudo aquilo era tão novo, que vários daqueles orientadores nem sabiam o que a gente estava fazendo. Imaginem terminar uma experiência longa e minutos depois entregar todos os cálculos e gráficos prontos!

A ciência

A ciência me ensinou que tudo na natureza está interligado. O que varia é o ângulo do observador. Trabalhos multidisciplinares, em cima do mesmo tema, e com várias cabeças pensantes e de áreas cognitivas próximas, tendem a aperfeiçoar os seus participantes e gerar bons frutos. Por causa disso, eu sempre fui adepto e apoiei a pesquisa em grupo.

Os meus antecessores tiveram posturas diversas na minha vida de pesquisador iniciante: alguns me incentivaram e falaram bem da pesquisa, enquanto que outros, entretanto, davam a impressão ou falavam na cara que o pesquisador tinha que ser uma espécie de prodígio cerebral. Só o tempo mesmo para me provar que tudo isso é bobagem. Se eu fizesse a imprudência de acreditar naquele tipo de discurso falando de genialidade, teria desistido da pesquisa como muitos contemporâneos meus o fizeram!

Qualquer um pode fazer ciência, desde que tenha interesse e tempo. A ciência é baseada na observação de um fenômeno, na construção de uma hipótese de trabalho para explica-lo, na construção do modelo experimental mais adequado, e finalmente a execução de testes no laboratório, seguida dos cálculos estatísticos que servirão para provar ou refutar a hipótese formulada.

Um dos aspectos mais difíceis do trabalho de pesquisa, que é a chave para se evitar conclusões erradas ou precipitadas, é a construção do modelo experimental correto. Eu trabalhei cerca de uns seis anos como assistente de um colega, que levou outros tantos para conseguir um modelo experimental adequado para estudar pulmão de choque, síndrome respiratória descoberta pelos americanos durante a guerra do Vietnam. Quando o modelo experimental é bom e a metodologia de medição confiável, já se tem meio caminho andado.

A pesquisa científica é um processo em constante andamento, e carece da formação da chamada “massa crítica” (novos e promissores pesquisadores), e principalmente equipamento e verbas.

Um dos graves defeitos que a pesquisa no Brasil tem é o de enterrar carreiras de potenciais pesquisadores, por conta de fatores como má distribuição de fomento, política acadêmica excludente e fechamento de laboratórios ou projetos considerados irrelevantes.

A formação de massa crítica é bastante demorada. Levar-se-ia muitos anos para se conseguir atingir um nível satisfatório. A pesquisa em si precisa ser feita com a necessária liberdade de pensamento. Basta tirar esta liberdade, que a pesquisa como um todo colapsa e morre.

Antigamente, o dinheiro do fomento era dado ao pesquisador. “Gênios” da área conseguiram convencer as agências de fomento a conceder verba somente aos grupos considerados “de excelência”. Com isso, muitos pesquisadores independentes perderam o seu momento e laboratórios fecharam. Mesmo aposentado, eu de vez em quando ouço uma notícia dessas. E eu lamento pelas novas gerações que este país desperdiça e continuará a desperdiçar, até o momento em que os mais jovens resolvam se mobilizar para mudar isso. [Webinsider]

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Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.

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4 respostas

  1. Oi, André,

    Uma coisa gravíssima que vem acontecendo sistematicamente no Brasil é a elevação de impostos e serviços, aumentando a desfasagem salarial, sem qualquer tipo de compensação. O resultado óbvio é que a inflação anunciada é mentirosa. Todo mundo sente, mas nas eleições seguintes, o povo elege todo mundo de volta, portanto o status quo não muda.

    E no Rio de Janeiro em particular, com os preços de imóveis (moradia em geral), custo de vida, etc., entre os mais altos do mundo.

    O Rio foi maldosamente transformado em capital turística do universo. Sempre foi assim, mas nunca na escala atual. Talvez as pessoas em geral não percebam o dano à cidade que se está fazendo. Toda vez que se gasta fortunas em alguma obra inútil ou festas para turistas lá vem aquele discurso que a cidade (e portanto as pessoas que vivem aqui) serão beneficiadas.

    Fala-se tanto em transparências de gastos, mas até agora eu não vi nenhuma. O que se percebe é o reflexo deste tipo de política: cidade abandonada, trânsito caótico, transporte público falido e caro, assistência médica idem, violência sem controle.

    E no final ninguém sabe quando é que virão estes tais benefícios que os políticos prometem. De onde eu estou, eu só vejo a coisa piorar. E não sou derrotista, ainda…

  2. Paulo Elias,
    Parabéns pelos 65 ( bem vividos ) anos! Hoje em dia, se você se cuida, tem boa dieta e atividade física regular essa idade pode ser considerada como meia-idade. Idoso só acima de 80! Li seu texto com atenção mas não tenho espaço para comentar tudo, resumo dando-lhe razão em cada parágrafo. Apenas duas observações: 1) o Brasil ainda pode se tornar uma grande Cuba e 2) Aquilo que era ludico e prazeroso hoje está sendo explorado politica e comercialmente, como o futebol, o carnaval, a religião entre outros. E todos ( no Brasil ) vão sendo gradativamento levados a uma condição de infantilidade perene, sem capacidade crítica e discernimento.

  3. Paulo, temos histórias semelhantes. Decidi ser Engenheiro com 8 anos morando na área rural de cidade pequena de MG (Guarará)tendo pais semi-alfabetizados. Aos 31 anos recebi o canudo e sou Engenheiro até hoje. Decidi me aposentar em Dez/2013. Estou escrevendo um site sobre Reforma Política. Discordo da sua avaliação do JK. Foi o único Presidente que merece o título de Estadista.

  4. Benvindo ao clube,Paulo.Uma providência que sugiro é ter um cartão-passe do metrô grátis.Numa cidade em que o prefeito nos odeia e nos faz ficar engarrafados sempre que possivel,andar de metrô é muito bom.Outro dia peguei um trem chines novo e fui daqui de Botafogo a Pavuna ida-e-volta,para apenas ler um livro no ar condicionado,já que na rua a sensação era de 50°…Foram quase uma hora e meia de prazer solitário.Eu recomendo.No mais,sempre será um prazer te ler.

    Abração!

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