As várias faces de um casamento

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O roteirista e escritor George Axelrod, que trabalhou com Billy Wilder e em outros projetos importantes, foi o autor da comédia “How To Murder Your Wife” (no Brasil, “Como Matar Sua Esposa”), lançado no meio da década de 1960, e esquecido pelo tempo e pela MGM/UA, incapaz de recuperá-lo decentemente e dar vida nova para os que não viram o filme.

É uma pena que eu não tenha mais comigo dados sobre a incidência de doença cardiovascular na metade do século passado, mas se a memória não me trai a incidência de doença cardíaca em homens era predominantemente maior do que em mulheres, e ainda ficou assim por muito tempo. Na realidade, era raro nesta época uma mulher ter, digamos, um infarto agudo do miocárdio. E durante muito tempo acreditou-se que as mulheres eram, em sua maioria, protegidas pela maior presença de hormônio sexual feminino (estrogênio) no sangue. Foi somente depois da descoberta de vários outros fatores de risco que se pode ter uma ideia do porque deste quadro ter sido revertido. Fatores como, por exemplo, tabagismo, dieta alimentar desregrada, estresse, etc., explicam convincentemente porque as mulheres pré-menopausa passaram a serem afetadas por doenças vasculares e câncer, em proporção, diga-se de passagem, ao aumento de seu ingresso no mercado de trabalho.

O fato é que quando How To Murder foi filmado, a realidade clínica ainda era amplamente desfavorável ao sexo masculino. E, é claro, o filme parte da premissa de que a opressão matriarcal imposta pelas mulheres no ato do casamento seria o principal fator de risco para a maior incidência de doença cardíaca nos maridos!

Trata-se, evidentemente, de uma comédia e muito bem escrita, mas que poderia facilmente ser vista pelos incautos como uma farsa “politicamente incorreta”. Sob o ponto de vista mais ponderado, o filme certamente é muito mais fruto de uma preocupação da época e eu sinceramente acho pouco provável que alguém naquele momento tivesse visto o roteiro de outro ângulo.

Senão, vejamos: o herói da estória é o cartunista Stanley Ford, cuja tira de jornal o levou a ficar na classe média alta. Stanley é um celibatário convicto, mas que não dispensa um programa eventual com o sexo oposto, nos moldes de absoluto não comprometimento. As suas convicções de solteiro o fazem crer que para o homem viver bem ele tem que se cuidar, e para tal ele frequenta rotineiramente a academia de um ginásio “exclusivo para homens”, um “Clube do Bolinha” da época. A dieta de Stanley é rigorosamente controlada por Charles, uma espécie de mordomo, ou homem que cuida da casa ou valet, e que não por acaso compartilha fervorosamente os sentimentos de celibato de seu patrão.

 O desenvolvimento da estória

A construção do personagem de Stanley Ford se torna essencial para se entender o porquê do celibato. Stanley adora as mulheres, desde que ele não se case com elas. Os seus desenhos nas tiras são “rotoscopados” da ação ao vivo, ele vestido como o herói Bash Brannigan, acompanhado de atores coadjuvantes. A premissa é de que nada do que possa ser desenhado não pudesse ter feito por ele como Bash Brannigan.

A vida perfeita de Stanley é subitamente interrompida em uma festa de solteiro que de melancólica acaba em celebração por conta da desistência da noiva em se casar. Uma super modelo sai de dentro de um bolo, e Stanley neste ponto está completamente bêbado, e se casa com ela. A surpresa, que dá graça ao filme, é que ela é uma mulher italiana, que não fala quase nada de inglês. Como italiana ela é, por princípio, contra o divórcio e aí o embroglio todo começa, porque Stanley não consegue achar meios de se livrar dela.

A comédia atinge níveis de quase histeria quando o advogado de Stanley, o reprimido Harold Lampson, é notificado que ele se casara e não terá base jurídica alguma para requerer o divórcio.

Eventualmente Stanley, o antes independente cartunista, se rende aos desejos da mulher e transporta esta submissão degradante aos próprios quadrinhos.

Harold Lampson é o modelo pelo qual o roteiro se ampara para provar um argumento de que o homem casado se torna escravo da esposa. Harold não toma nenhuma decisão importante, sem consultar a sua cara metade Edna, que por sua vez, o manipula constantemente.

How To Murder talvez não tivesse tanto impacto como cinema, não fosse pela direção segura e pela presença carismática dos seus diversos atores: Jack Lemmon, daquele seu jeito meio rabugento, Terry-Thomas, impecavelmente impagável como o seu valet, Eddie Mayehoff como o advogado dominado pela mulher, Claire Trevor como a sua eterna antagonista, e principalmente Virna Lisi, como a estonteante mulher que sai do bolo para o casamento com Stanley.

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Durante o casamento, Stanley vira o oposto do que sempre advogara: torna-se obeso e inativo, deixa de tomar decisões e acaba sobrepujado pelas vontades e caprichos da esposa.

No segundo ato do filme Bash Brannigan assassina a mulher nos quadrinhos e a polícia depois imagina tratar-se de um homicídio praticado por Stanley Ford, já que ele vive as tiras antes de publicá-las nos jornais. Sua mulher vê a tira antes de ser publicada e resolve ir embora escondida, o que aumenta as suspeitas do suposto crime.

Durante o julgamento Stanley resolve se declarar culpado, mas faz um discurso pró-celibato, condenando o matriarcado massacrante que resulta na falta de liberdade do homem casado e na sua extinção precoce. O júri, todo de homens, se sente ameaçado e o declara inocente por unanimidade! Mas, a estória não termina por aí.

 Apreciação

Eu certamente não estou no grupo daqueles que vêm neste tipo de desenvolvimento de estória qualquer coisa politicamente incorreta.

O filme fala o tempo todo em atração física, e nenhuma menção é feita sobre amor entre um homem e uma mulher, pelo menos que eu tenha percebido. Esta distinção é importante, porque abre as portas para a crítica ao casamento interesseiro, seja lá por que motivo for. E deixa para o final colocar uma sugestão no ar sobre a evolução da atração para um sentimento afetivo verdadeiro. Que final é este, eu prefiro não contar, para que todos possam ter uma chance de vê-lo e só depois tirarem as suas próprias conclusões.

Do século passado para cá cada vez mais raros são os casamentos que dão certo, portanto a ótica deste filme continua, de certa forma, bastante atual. Os motivos pelos quais o casamento se tornou uma instituição falida estão por aí nas escâncaras de qualquer um. A união matrimonial é frequentemente hipócrita. Os cônjuges se unem por algum tipo de motivação pouco nobre, geralmente de ordem financeira ou social, e sem qualquer responsabilidade implícita na constituição da família, deixando muitas vezes os filhos à deriva e sem salvaguarda.

Claramente, How To Murder Your Wife não condena o casamento em si, mas sim a contradição entre a união conjugal propriamente dita e a espoliação sistemática de um dos cônjuges.

Richard Quine, que nunca vi na lista dos diretores mais badalados por fãs ou críticos, conduz o filme com sobriedade, nunca se rendendo ao vulgar ou à comédia de trejeitos e caretas. Terry-Thomas disse uma vez ter sido este um dos filmes que ele mais gostou de fazer, e com razão. A sua emblemática persona britânica, com sotaque “posh”, dá uma credibilidade ímpar ao personagem que ele interpreta.

Lamentavelmente, o filme nunca viu a luz do dia em uma mídia de vídeo decente. As únicas edições em DVD (Estados Unidos e Europa) são resultado de uma transcrição pobre em 4:3 letterbox, cheia de artefatos. Sinceramente, com um batalhão de repetições que nos assolam todo dia na TV paga e na aberta, é de se admirar que filmes como esse tenham sido esquecidos ou negligenciados. Junto a este em particular, são vários os filmes estrelados por Jack Lemmon ao lado de atrizes estrangeiras, a maioria na forma de comédias muito bem arquitetadas, e que mereciam a atenção dos estúdios, emissoras e dos fãs. [Webinsider]

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Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.

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