Isto é Cinerama!

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Introduzido nos Estados Unidos em meados de 1952, o Cinerama chegou alguns anos após em São Paulo, no falecido Cine Comodoro.

Meus pais, na primeira chance de viagem a São Paulo, foram lá para conferir. Mas, nesta altura, nem a tela larga nem o som estereofônico nas salas de cinema eram novidade. A novidade era, neste caso, a imensa tela curva (cerca de 146 graus) e alta, chegando até próximo do teto do cinema.

O Cinerama foi lançado com o filme, hoje histórico, com o anúncio do formato: “Isto É Cinerama”, e foi um tremendo sucesso de bilheteria. Naquele momento, Hollywood pensou se livrar do jugo da televisão, mas a alegria durou pouco.

E como o processo de filmagem era caro e a apresentação restrita a algumas poucas salas criadas ou convertidas para 3 projetores, o formato foi caindo em desuso, no final com poucos filmes produzidos. Hoje em dia, entretanto, existe um sentimento de preservação daquele momento por parte de vários entusiastas, traduzido inclusive nos dois cinemas ainda capazes de realizar este tipo de projeção: o Cinerama Dome, localizado na afamada Sunset Boulevard, em Hollywood, e o Seattle Cinerama, localizado na cidade de Seattle.

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Depois de oficialmente extinto, ainda assim o logo da companhia permaneceu em uso em filmes como “Uma Batalha No Inferno”, “2001, Uma Odisseia No Espaço” ou “Estação Polar Zebra”, por exemplo, mas em nenhum desses casos o processo de filmagem era o do Cinerama original e sim Ultra ou Super Panavision em 70 mm.

A exibição de Isto É Cinerama em 70 mm aconteceu no início da década de 1970, a partir da criação de um negativo em 65 mm e da composição das três películas. E agora somos informados que este compósito foi usado para o resgate (restauração) do filme transferido para a mídia de vídeo e para exibição digital nos cinemas.

Eu, por acaso, assisti à cópia em 70 mm de 1970, porém em tela plana. O impacto visual foi praticamente nenhum, e isto se repete agora com a cópia em Blu-Ray. Sobre isso, falarei mais adiante.

 O resgate histórico

Coube a David Strohmaier a iniciativa de resgatar Isto É Cinerama para apresentação em cinemas e home vídeo. Como ele mesmo explica, trabalhando com orçamento baixo (trata-se de empreendimento pessoal e independente de qualquer estúdio) ele foi obrigado a recorrer ao negativo do compósito em 65 mm, usado na década de 1970 para exibição em alguns cinemas. Segundo o preservacionista Gregg Kimble, a condição dos negativos originais não é boa, mas o negativo de 65 mm estava em bom estado de conservação. O problema é que este negativo foi composto com segmentos do filme original que mostraram uma série de problemas e inconsistências, o que obrigou a adoção de uso de programas capazes de reequilibrar o compósito de maneira a mais adequada possível.

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Restaria, de qualquer forma, a questão da largura da tela original e a sua curvatura, dois fatores muito difíceis de serem resolvidos satisfatoriamente diante dos padrões de projeção atuais. Com raras exceções pelo mundo afora os cinemas na sua maioria são dotados de tela com baixa curvatura, dentro do padrão Panavision 35 mm, e a projeção digital é feita no mesmo tipo de tela, depois de feitas as devidas correções geométricas.

É hoje virtualmente impossível, apesar de esforço em sentido contrário, encarcerar uma tela tão larga quanto a do Cinerama de uma maneira convincente em uma tela 16:9, e todo o trabalho de restauração seguiu os padrões da HDTV, que usa este tipo de formato de tela. Portanto, o impacto visual, tanto na projeção digital dos cinemas quanto principalmente dentro de casa não é o mesmo.

Quanto à curvatura, a solução doméstica foi transcrever o filme inteiro em SmileBox, processo anteriormente usado para o documentário Cinerama Adventure e para o longa A Conquista Do Oeste, da M-G-M. Mas, a produção foi um pouco mais além: ela simulou a apresentação original dos cinemas, descrita a seguir.

 Apresentação do filme restaurado em Blu-Ray e DVD

A apresentação de filmes na forma de grandes espetáculos foi feita no passado com um verdadeiro ritual sacralizante e, diga-se de passagem, é uma pena que as gerações mais recentes nunca tenham tido a chance de ver este ritual no seu formato original. Os distribuidores entregavam aos exibidores o roteiro deste ritual, e os melhores cinemas, inclusive os daqui, o seguiam à risca.

Antes de o filme começar era tocada uma música de abertura, e a cortina só se abriria quando a projeção do filme propriamente dita, com logo do estúdio e a apresentação dos créditos se inicia.

No caso específico desta apresentação a abertura das cortinas é parcial, porque foi inserido um prólogo, propositalmente fotografado em preto e branco com som mono, com a presença de Lowell Thomas, de cerca de quinze minutos de duração, onde ele descreve como o cinema surgiu e principalmente como ele evoluiu. Terminado o prólogo, as cortinas se abrem totalmente, para revelar a magnitude da tela Cinerama e com o filme já rodando.

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O ritual inclui um intervalo, que era considerado importante em filmes muito longos. A chamada para este intervalo (“Intermission”, em língua inglesa) era feita por um slide. Neste momento as cortinas se fechavam e as luzes se acendiam.

Abrindo um parêntese: na maioria dos filmes que eu tive a chance de assistir com este tipo de apresentação o intervalo durava cerca de quinze minutos. Em várias ocasiões eu notava que quase ninguém se levantava da poltrona, ou seja, o intervalo se transformou na prática em uma perda de tempo.

O intervalo de Isto É Cinerama é bem diferente: ele inclui uma demonstração do som estereofônico e do efeito sonoplástico de direcionalidade, notem bem quase meio século da primeira apresentação do formato Dolby Digital com surround separado.

Mesmo que a gente não tenha vivido esta época, é no entanto fascinante saber que os criadores do som estereofônico no cinema pensaram na possibilidade de fazer o som circular pelas diversas caixas acústicas da sala. Disney havia tentado isso com a mixagem de Fantasia, mas o processo caíra no esquecimento. Aqui temos a oportunidade de ouvir a versão moderna do som estereofônico, com uma qualidade nunca antes obtida, graças ao registro em filme magnético 35 mm.

Depois do intervalo, e antes do filme recomeçar, ouve-se a tradicional música do entreato, ainda com as cortinas fechadas. Em muitos cinemas onde eu estive a abertura das cortinas coincidia com o apagar lento das luzes do auditório. Os cinemas usaram um dimmer manual especialmente desenhado para aguentar a potência de iluminação. O efeito plástico ainda pode ser observado nos cinemas multiplex de hoje, mas naquela época o espetáculo era maior com a abertura das cortinas e muitas vezes com o filme recomeçando ainda com as cortinas em movimento.

A apresentação dos grandes espetáculos previa ainda a reprodução da chamada “música de saída” (ou “exit music”), apresentada logo após o anúncio do fim do filme. A música de saída era supostamente o momento da retirada dos espectadores da sala. De tempos para cá, os estúdios decidiram apresentar créditos no fim do filme (exagerados, na minha opinião), e assim a música de saída foi enxertada novamente e ficou até hoje.

https://www.youtube.com/watch?v=lII5rXbxcCs

Apreciação

É altamente louvável o esforço dos restauradores em dar uma chance de ter em casa uma simulação do espetáculo original de um filme deste porte, com a inegável importância histórica que ele tem.

A se lamentar, entretanto, que a qualidade final da imagem SmileBox não seja tão boa quanto aquela obtida com a versão em Blu-Ray de “A Conquista Do Oeste”. Além disso, eu creio que poderia ter sido incluída uma versão SmileBox sem a simulação das cortinas, para que o estudioso pudesse ter acesso aos originais sem a interferência do espetáculo.

A omissão da versão “plana” do fotograma (que só se consegue ver no documentário sobre a restauração) é compreensível em função do uso do negativo 65 mm sem compensação da geometria, bem mais estreito, relativamente, do que as três películas quando apresentadas simultaneamente.

Um detalhe que não me escapou à atenção foi quando Lowell Thomas afirma que a invenção do cinema se deve a Thomas Edison. A propósito, eu vi erro semelhante em documentário exibido no History Channel há algum tempo atrás. Na época, eu escrevi um e-mail para o site do canal, que nunca foi respondido. Nós que não somos norte-americanos não somos obrigados a engolir a história distorcida do país dos outros.

Eu sei que soa antipático, mas eu aprendi que o estudo da história não pode ser acompanhado de qualquer tipo de tendenciosidade pessoal ou política. A “história oficial” não é necessariamente verdadeira, e no caso certamente não é.

Além disso, os cineastas sequer mencionaram os esforços dos irmãos Lumière e das várias escolas de cinema europeu durante os seus primeiros anos de existência.

Isto É Cinerama termina com segmentos patrióticos, cujo apelo sinceramente só interessa ao público norte-americano daquela época. Vinte anos depois, parte da bandeira americana pôde ser vista nas roupas dos hippies que contestavam o sistema político e a guerra do Vietnam.

Todo aquele ufanismo patriótico do filme parece hoje um exagero, principalmente sabendo que o interesse da produção era atingir mercados fora de seu país. É difícil imaginar o que os roteiristas estavam pensando. Os segmentos são longos demais e deixam no ar uma sensação de superioridade racial (do tipo “fomos nós que inventamos o que você está vendo”), aspecto este amplamente condenado durante a explosão do nazismo na Alemanha.

O filme como um todo é hoje monótono para se assistir, por causa da ausência da tela original. Mesmo a versão em 70 mm, que eu vi em tela não muito curva, tem esta sensação de tédio, porque a maior parte das cenas foi montada para exibir o formato. Se tomadas isoladamente elas não dizem praticamente nada de importante, se tornando ocasionalmente uma sequência de tomadas de câmera desinteressantes.

Nada disso, entretanto, invalida o esforço feito pelos restauradores. Aqui não é só o resgate da memória e da história do cinema que estão em jogo, mas a possibilidade de se aquilatar o esforço técnico dos realizadores e dos problemas que o formato enfrentou posteriormente, e que levaram ao seu desaparecimento.

Foram esses problemas técnicos, em última análise, que compeliram Michael Todd e colaboradores em ressuscitar a película 70 mm, cujos méritos são indiscutíveis e cujas produções estão até hoje na lista dos melhores espetáculos de cinema que várias gerações viram até hoje. [Webinsider]

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Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.

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4 respostas

  1. Olá, Paulo.
    Gostei muito de seu artigo. A propósito do filme em questão, tive a oportunidade de vê-lo, mais precisamente em janeiro de 1977, no Cine Vitória, Centro do Rio de Janeiro, em cópia anunciada de 70 mm. Não esqueço a parte inicial em preto e branco, para logo em seguida entrar a cena da montanha- russa, tudo porém com as visíveis emendas das três películas e em tela plana, além dos desníveis decorrentes do formato original em curva. O impacto foi quase nulo, mas de qualquer forma, foi válido como um estudo de como a indústria cinematográfica já procurava novas tecnologias para enfrentar a concorrência da TV. Uma curiosidade: durante a exibição, cansei de ver vários espectadores masculinos explicando com as mãos às suas companheiras o porquê das duas linhas divisórias em todas as cenas. Deixou saudades…

    1. Olá, Antonio,

      Eu também vi essa cópia no Vitória, a imagem estava péssima, ela foi tirada de negativos transcritos com as limitações da época. O pior é que o estado dos negativos exigiria uma restauração muito cara, e você percebe que o pessoal atualmente envolvido nisso não tem recursos financeiros suficientes.

      Concordo contigo que o impacto visual não foi o mesmo, e também pudera, porque a tela do Vitória não era de Cinerama 70. O correto teria sido exibir o filme no Roxy.

  2. Olá, Fábio,

    Mais uma vez muito obrigado pela leitura e elogio.

    Concordo 100% contigo nesta coisa de gente que vai ao cinema para conversar fiado, quando poderia estar fazendo isso lá fora. É um desrespeito a quem paga um ingresso caro, para poder passar umas duas horas curtindo um filme de seu interesse.

    Nem você nem ninguém entra em um cinema à toa. À par de ser fã, existe o aspecto escapista nos filmes, que nos ajuda a aturar as agruras do dia-a-dia, a violência urbana incurável, as mentiras dos políticos, e outras gracinhas das quais não se pode escapar.

    O cinema ocupa um espaço libertário e catártico na vida do fã. Ele te traz a alma criadora e inventiva dos seus realizadores, quando o filme é de boa qualidade.

    Portanto, é seu direito ter a liberdade de assistir um bom filme em paz. E se poupar de ficar ouvindo besteira de gente que não tem mais o que fazer!

  3. Mais um excelente artigo… Já virei fã… O esforço em preservar é sempre louvável, e assistir o mais próximo possível do original como foi concebido é sempre o ideal, mas, confesso, não tive “saco” pra assistir A Conquista do Oeste na versão “imitando o original curvo” que veio no BD, vi direto na versão plana mesmo, até pq não tenho equipamento adequado (por falta de espaço e recursos exerço meu amor pelo cinema em uma Panasonic Plasma 42 e com um antiguinho receiver Denon e com sub e um jogo de caixas Yamaha). Quanto aos cinemas, tem sido uma experiência cada vez pior. Na última tentativa, algumas semanas atrás, ao pedir silêncio para um grupo de moças que ria e conversava alto, tive que escutar como resposta que eu não “leio com os ouvidos” e que o barulho delas não me impedia de ler as legendas e saber o que se passava no filme… Tá dose…

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