O fino da ficção científica

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Se fosse perguntado a alguém da geração pós anos 1970 qual o melhor filme de ficção científica jamais feito ele ou ela provavelmente citariam Star Wars, de George Lucas.

Mas, antes de entrar em guerras interplanetárias e luta pelo poder, o cinema de ficção havia tomado outros rumos, digamos, bem mais interessantes. O tema ficção em relação à ciência e à tecnologia teve como um dos principais objetivos criar um drama ou situação nas quais os personagens se vêm envolvidos com recursos até então pouco explorados ou inexistentes.

Ou então, com recursos da época, porém em uma magnitude que só mesma a imaginação dos autores poderia alcançar. E um exemplo extraordinário disso foi o filme dirigido por Joseph Sargent “Colossus – The Forbin Project” (no Brasil, “Colossus 1980”), no qual dois supercomputadores, um na América do Norte e outro na Rússia, conspiram para dominar o mundo, em plena guerra fria. É importante observar que os supercomputadores foram introduzidos a partir da década de 1960, mas o seu objetivo principal era (e ainda é até hoje) a execução de rotinas de cálculos avançados.

E, sem dúvida, o filme de ficção mais importante do final da década de 1960 foi “2001, Uma Odisseia No Espaço”, idealizado pelo visionário Arthur C. Clarke, que foi quem imaginou a evolução das comunicações por satélite, entre outras coisas.

Dois anos antes de “2001” ser lançado nos cinemas, a Fox lançou com relativa pouca publicidade uma pequena obra-prima, dirigida pelo competente Richard Fleischer, com o enigmático título “Fantastic Voyage” (no Brasil, “Viagem Fantástica”).

Quando o filme saiu nos cinemas, eu ainda estava no colégio secundário como ávido estudante das aulas de Biologia, cujos professores ficaram admirados pela reconstituição de partes do corpo humano que este filme apresenta. À época, eu e alguns colegas tínhamos hábito de pegar emprestados nas cinematecas curtas-metragens em 16 mm, feitos a partir de assuntos científicos, para projeção em algumas aulas selecionadas pelo professor.

A edição recente do filme em Blu-Ray confirma novamente a inventividade e criatividade cinematográfica de seus realizadores. Fantastic Voyage foi filmado um ano antes de a Fox abandonar em definitivo o processo CinemaScope, cedendo lugar ao Panavision, cujas lentes anamórficas feitas com prismas tinham uma maior fidelidade na captura da imagem. O som original nos cinemas era mono, ao invés das tradicionais quatro pistas estereofônicas, e foi assim transcrito, tanto na edição em DVD quanto no Blu-Ray, apesar de ambos oferecerem trilhas 5.1.

A ideia original do filme, referente à entrada de um submarino miniatura no corpo humano, foi depois descaradamente copiada no filme Innerspace (no Brasil “Viagem Insólita”), lançado vinte anos depois do original. Innerspace de ficção científica não tem nada, diga-se de passagem, é muito mais uma comédia pré fabricada para plateias adolescentes, a maioria sem ter alguma coisa melhor para fazer.

Viagem Fantástica impressiona até hoje pelo esforço de criar um ambiente onde se pode ver com clareza detalhes sobre a anatomia e o funcionamento do corpo humano. Tudo isso feito em um estúdio que ainda guardava resquícios da antiga estrutura de produção, com departamentos de arte dedicados. Cenários, desenhistas de arte, e principalmente técnicos de efeitos especiais, são colocados em bom uso na produção do filme. E, talvez pela primeira vez, com o emprego de sons sintetizados por computadores, notoriamente na abertura dos créditos.

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A trama é simples: em plena guerra fria, um diplomata desertor entra nos Estados Unidos para “entregar” segredos de estado ao governo. Mas, é interceptado logo após sair do avião e sofre um atentado, que produz uma injúria cerebral inoperável. A não ser que a operação seja feita por dentro do corpo.

Entra então uma organização militar ultra secreta em ação, com um projeto capaz de miniaturizar uma equipe dentro de um submarino, capaz de viajar pelo corpo humano, e realizar a cirurgia de extração da área lesada, com uma arma de raio laser.

No desenvolvimento da trama o minúsculo submarino irá precisar passar pelo coração, mas hidrodinamicamente isto seria impossível. A solução? Fazer uma parada cardíaca momentânea no paciente!

A parada cardíaca intencional, conhecida como cardioplegia, é usada nos procedimentos de cirurgia cardíaca. Na década de 1960 a cirurgia cardíaca ganhou um momento bastante positivo nas manchetes, principalmente quando Christiaan Barnard levou a termo o primeiro transplante de coração humano. Curiosamente, o filme não fala nada sobre o uso da solução cardioplégica, embora ela já existisse na época. A parada cardíaca no filme é mostrada através de choque elétrico exclusivamente.

Ao passar nos pulmões o submarino se defronta com contaminações de hidrocarbonetos, na forma de corpúsculos escuros, revelando que o paciente era fumante. O tabagismo, independente do tipo de fumo consumido, faz com que a queima incompleta do tabaco produza substâncias orgânicas altamente cancerígenas, e estas partículas se depositam primeiro nos pulmões, tal como mostrado no filme.

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Mas, talvez um dos aspectos científicos mais importantes deste filme é o da representação do que é a reação antígeno-anticorpo.

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Corpos estranhos, microrganismos na sua maioria, chamam a atenção do sistema imune, que desenvolve uma série de processos bastante complexos, para a formação do sistema de defesa que impede que uma pessoa fique doente. Este sistema trabalha o tempo todo no organismo humano, mas a maioria das pessoas não tem noção deste funcionamento. Nas aulas de Patologia que eu assisti costumava-se dizer que a doença não é a regra e sim a exceção, quando então o sistema de defesa falha, por qualquer motivo.

 A última sessão de cinema

A exibição de Viagem Fantástica coincide com o que seria a última sessão do cineclube da minha faculdade, e foi uma sessão desnecessariamente tumultuada. Um cineclube costumava se organizar com os seus participantes executando algum tipo de tarefa. A minha, em particular, era a de sugerir a exibição de algum filme, e na fase seguinte preparar o auditório, montando e operando o projetor 16 mm, para exibir o filme.

As sessões eram feitas a partir do aluguel da cópia dos filmes nas distribuidoras e eram bancadas pela manjada “vaquinha”. Depois se cobrava um ingresso com preço simbólico, com o objetivo de cobrir as despesas. Muitas vezes se fechava no vermelho, e aí a gente entende porque os exibidores fecham as salas por falta de público.

Mas, a cópia em 16 mm deste filme era CinemaScope e o aluguel da lente de projeção tornava o preço impagável. Os cineclubes do campus, à época da repressão da ditadura, eram vigiados o tempo todo. Mas, nós tivemos coragem de apresentar à direção da faculdade um orçamento para exibir o filme na semana comemorativa anual da profissão. O diretor da época aceitou e um colega nosso correu para o centro da cidade para pegar o filme na distribuidora. Mas, com o atraso da sua volta ao campus o auditório já estava lotado, e quase chegando às vaias. O filme e a lente chegaram e eu tive que ajustar tudo com aquele povo lá dentro.

A lente cinemascope para 16 mm era uma extensão que se encaixava na lente normal do projetor e tinha um segundo foco. Na lente que nós alugamos não havia encaixe possível e o jeito foi improvisar um anteparo na janela do projetor. Tudo isso demorou alguns minutos, e os ajustes das duas lentes aconteceram debaixo de uma algazarra no auditório.

Nos cinemas comerciais todos os ajustes e testes precisam ser feitos com o auditório vazio. A lente anamórfica precisa ser montada de forma correta, sob pena de se produzir uma imagem distorcida na tela. Nos projetores profissionais o processo é bem mais fácil do que nos de 16 mm.

Depois daquela sessão, eu saí fora do cineclube para cuidar do resto da minha vida, e já não era sem tempo. Acho que não encontraram ninguém para ficar no meu lugar, e o cineclube fechou. Ficaram, infelizmente, na minha memória, algumas péssimas impressões sobre a cultura no ambiente acadêmico: a sessão que mais arrecadou foi a do Festival Tom & Jerry. Nas sessões com filmes de arte, o auditório ficava quase vazio. “Seduzida e Abandonada”, comédia clássica do neorrealismo italiano, foi confundida como “filme pornográfico” e encheu a sala. O auditório superlotou em “Viagem Fantástica” em grande parte porque a sessão era gratuita!

 A cópia em Blu-Ray vale a pena

A edição em Blu-Ray, lançada este ano, mostra uma imagem de Viagem Fantástica bastante rejuvenescida. Cores e contraste são exemplares, principalmente se considerarmos a idade do filme.

O som está encarcerado no formato 5.1, mas o original sendo mono, ele se espalha nos canais frontais, sem qualquer tipo de direcionalidade nos diálogos. Em outras palavras, o surround doméstico não serve para nada.

Nada disso nos impede de ver Viagem Fantástica como o filme de fato foi. Com a tecnologia atual das telas de TV os compósitos em fundo azul são bastante visíveis. Mas, os efeitos especiais fotográficos, brilhantes naquele momento, se tornaram importantes e influenciaram outros cineastas ao longo do tempo, de como um bom filme de ficção científica deve ser feito! [Webinsider]

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Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.

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2 respostas

  1. Oi, Fábio,

    Obrigado pela leitura e elogio.

    Um amigo meu “reclamou” comigo porque eu omiti “Guerra dos Mundos” e outros filmes mais antigos. Aí eu pedi que ele colocasse um comentário, mas ele, é claro, se negou, porque se tratava de uma gozação comigo. Mas, eu levei a sério, e na verdade eu me lembrei sim de Guerra dos Mundos, que eu gosto muito, mas a ideia era concentrar o texto na ficção da década de 60, e neste filme em particular.

    Eu tenho o DVD americano de Viagem Fantástica, e eu posso te garantir que não há termo de comparação na qualidade de imagem, e acho que você pode ter uma ideia pelas capturas que eu mostrei acima, todas tiradas desta versão nova.

    Sobre Capricórnio Um, eu perdi ou não me lembro bem dele, mas eu vou dar uma olhada quando tiver uma chance.

  2. Como de hábito, artigo excelente. Eu sou grande fã de filmes de ficção, e tenho um carinho especial pelos mais antigos, quando os efeitos eram mecânicos e não computadorizados, e as limitações técnicas obrigavam os cineastas a improvisar, gerando algumas coisas risíveis porém outras geniais. Alguns dos filmes eram tão legais e com enredos tão bem construídos que mesmo um efeito “tosco” ou uma cordinha segurando a nave não te tiravam do filme e nem comprometiam tua suspensão da descrença. Gosto muito dos do Ray Harryhausen. Viagem Fantástica eu tenho em DVD e confesso que achei as cores meio “lavadas”, se é que me entende. No distante 2008 quando comprei meu primeiro BD Player tinha jurado que não compraria em BD nenhum filme que eu já tivesse em DVD. Deus, minhas prateleiras e o pessoal do cartão de crédito sabem o quanto eu estava enganado. Se a imagem do BD estiver mesmo bem superior, não descarto adquirir esse BD. Ainda sobre ficção mais antiguinha, recomendo o excelente “Capricórnio Um”, conheces??

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