Sniper Americano, no meio de um turbilhão de controvérsias

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308555id1i_TheJudge_FinalRated_27x40_1Sheet.inddInteressante, a gente nota que no título do filme recente do diretor Clint Eastwood “American Sniper”, o tradutor brasileiro, não saberia dizer se de propósito, colocou “sniper” como um nome, quando na realidade a palavra se refere a “franco atirador”.

“Franco Atirador Americano” faria mais justiça, penso eu, ao conteúdo do filme, que por se tratar de assunto delicado, suscitou uma inacreditável controvérsia e disputa de opiniões pela internet afora.

E se por um lado certos tipos de controvérsias são saudáveis, esta me parece mais uma espécie de catarse centrada nos dois aspectos da presença americana em territórios árabes e nos países onde eles interviram com a desculpa de “estar salvaguardando a segurança do país”. A divisão de opiniões é baseada no que o público americano em geral considera legítimo (“defender o país contra inimigos estrangeiros”), e ilegítimo (“invadir o país dos outros sem ter este direito e sem ter o consenso do resto do planeta”).

E o assunto do filme jogou mais lenha na fogueira, ao retratar um franco atirador da classe Navy Seal, elite das forças armadas, com um número recorde de assassinatos no campo de batalha. Supostamente, todas essas mortes são justificáveis para impedir o inimigo de atacar de surpresa e matar as forças em terra. Seria assim uma espécie de “profilaxia assassina”, ou algo parecido.

Por outro lado, parece que Sniper Americano toca em um tema que muitos dos seus críticos prefeririam nunca ver na tela: a de que o conceito de “herói” ficou viciado na história oficial de cada país, e não tem base alguma nem justificativa no assassinato em massa, seja lá por que motivo for.

 A culpa não é do filme em si, mas do que ele revela

Sniper Americano é um filme limpo, totalmente isento de tendenciosidade, apenas expõe o personagem como ele de fato parece ter sido. O roteirista, Jason Hall, conviveu longo tempo com Chris Kyle, e levou anos para escrever o roteiro.

O próprio Chris Kyle, talvez por questões de foro íntimo, escreveu, ele mesmo, um livro autobiográfico, usado em parte para o filme. Do roteiro original, apenas as cenas com a morte do protagonista foi omitida, a pedido da família.

Ressentido com as críticas radicais de terceiros, Hall declarou com propriedade que “o filme não é sobre a guerra e sim sobre o guerreiro”. Com isso, ele retira da tela (sem trocadilho) a pecha de filme “anti-guerra” ou “pró-guerra”, como alguns poderiam sugerir.

A maior crítica que eu encontrei no site do IMDb foram de pessoas que entenderam que Chris Kyle era um assassino que gostava de matar, com a desculpa de estar defendendo os seus colegas de farda, e que tal fato não poderia ser mostrado em filme, sob pena de glorificar ou glamourizar o personagem.

Mas, lendo isso, a gente aqui fica se perguntando: afinal, qual é a realidade da violência urbana nos grandes centros? A gente vê todo dia um garoto adolescente, menor de idade, pegar em armas, assaltar e não ter pena de assassinar a vítima, tudo isso já sabendo que, se pego, ficará impune. Ora, logo no início do filme, Chris Kyle hesita em atirar em um menino, mas a seguir vê a mãe entregar uma granada a ele, e o manda em direção aos soldados. Mas, não é essa exatamente a situação urbana? Filhos de famílias sem nenhuma estrutura de vida acabam na rua praticando todo o tipo de violência e aderindo ao vício do crack, matam e ficam impunes, sem que o conjunto da sociedade faça alguma coisa, perdendo o direito de ir e vir com segurança nas ruas.

Tudo isso nos coloca em um dilema, tal como aconteceu com Chris Kyle. Trata-se da vida de uma criança. Seria covardia mata-la, mas deixa-la impune também não resolve nada.

Em uma situação de guerra, a falta de opção é um fato, e parece que os críticos do filme querem de propósito ignorar isso. A guerra, seja ela qual for, é uma situação de beligerância na qual ou o soldado mata o inimigo ou é morto por ele.

Toda e qualquer guerra é, por princípio, um processo de assassinato em massa. Os soldados são treinados para fazer isso, e debaixo de ordens de seus superiores. Seria no mínimo uma tremenda hipocrisia achar que esta regra só tem valor para aqueles que não são soldados de seu próprio país. Pois bem: Chris Kyle cumpriu ordens e o fez com zelo e da melhor forma possível. Se é para condenar Chris Kyle, então o coerente seria condenar a máquina de guerra que o fez agir assim!

 O ódio aos americanos tem raízes profundas

Nenhum país que intervenha tanto no país dos outros poderá receber destes algum tipo de afeição!

O público de hoje, seja o de lá ou o de cá, poderá não ter mais noção de onde vem tanto ódio, particularmente aquele vindo da comunidade muçulmana. Acontece que a história da criação do chamado Estado de Israel, a consequente redução territorial do Estado original da Palestina revela tudo: depois da segunda guerra mundial, a emigração de judeus para o oriente médio aumentou e com eles a necessidade de criar um estado de salvaguarda. E eles escolheram o que os judeus ortodoxos reclamam ser o território que biblicamente lhes é de direito. O resumo da ópera viu os judeus norte-americanos dar suporte e fazer pressão para o estabelecimento do Estado de Israel. Dali para frente, os americanos indistintamente vem sendo acusados de todo o tipo de demonização possível, e parece que isso não vai parar tão cedo.

Os Estados Unidos são um país complexo, diversificado, rico de um lado e aflito do outro com bolsões de miséria e ignorância. A influência norte-americana no resto do mundo se deu por dois fatores básicos: primeiro, a situação econômica dos países europeus e do Japão, ao final da segunda guerra mundial; segundo, a máquina de propaganda maciça, através da mídia, principalmente a de entretenimento, como a do cinema, ao propagar o chamado “American way of life”, um pseudo-paraíso onde nunca se mostra o lado negativo ou as dificuldades de sobrevivência da média da população daquele país.

Tivessem os americanos se retirado deste tipo de influência, e deixado o mundo decidir a sua própria sorte, é possível que a guerra fria pudesse não ter existido. Mas a paranoia americana se sentiu ameaçada quando os russos ocuparam de forma militar o leste europeu e formaram a cortina de ferro. Daí para lutas nas frentes onde o comunismo ameaçava totalizar foi um pulo, e duraram décadas, como no caso da Coreia e do Vietnam.

Terminada a guerra fria, ao final da década de 1980, a União Soviética havia naufragado nos seus próprios erros. Mas, ao mesmo tempo, o balanço de poder também mudou, e aparentemente os norte-americanos não perceberam isso. Ao invés de assentar a paz em definitivo, e fazer um esforço para conciliar interesses de árabes e judeus, o que se viu foi exatamente o contrário.

O filme Sniper Americano mostra, em parte, os efeitos deste tipo de política externa. Se o espectador for informado e atualizado com fatos recentes poderá entender porque os árabes iraquianos recorreram ao extremismo de sacrifícios para destruir e não deixar avançar a presença americana por lá. Por outro lado, a comunidade árabe era e ainda é dividida em tribos e seitas. Foi, em última análise, por causa desta divisão que a presença americana se tornou possível, em territórios como o Iraque.

Mas, é claro, há um preço a ser pago: na época da pós-guerra do Vietnam, por exemplo o excelente documentário “Corações e Mentes”, de 1974 mostra uma síntese do estrago obtido pelo conflito. E de lá para cá vários cineastas tentaram mostrar a mesma coisa, dentro do mesmo assunto.

Portanto, Sniper Americano não chega, neste particular, a ser novidade. Novidade sim é a reação de parte do público de lá, que tenta não enxergar este tipo de estrago, que é a deformação da cabeça de um indivíduo, atingido pela catequese da “defesa da pátria”, na invasão do país dos outros.

 Análise técnica

American Sniper mostra o ator Bradley Cooper mais amadurecido. E se apoia na maturidade e na vivência de Clint Eastwood como diretor. Clint, de quem sou um confesso fã de carteirinha, continua me parecendo como um John Ford mais contemporâneo: minimalista, trabalhando com o mesmo grupo de técnicos e assistentes, poucas tomadas de câmera, deixando o ator com total liberdade de criação e explorando o potencial de cada um deles.

Clint parece ter dominado bem o cinema digital. Depois de Jersey Boys, este é o segundo filme feito com câmera Arriflex Alexa, cinematografia e edição absolutamente perfeitas!

Já Bradley Cooper mostra um minimalismo parecido com o do diretor. Atores minimalistas ingleses, como Colin Firth, por exemplo, vêm demonstrando como é importante evitar excessos diante das câmeras. Os ingleses são mestres no minimalismo. Anos atrás, eu ouvi o ator Michael Caine dizer, na sala de aula de um documentário, que o bom ator evita até piscar diante da câmera, e demonstrou como se consegue isso.

Sniper Americano é, na minha apreciação pessoal, um filme absolutamente neutro. Ele não faz nenhuma apologia desta cantilena de “defesa da pátria”, muito menos da guerra à qual aborda. Deixa a perspectiva, por outro lado, da plateia se envolver no assunto e tirar ela própria as suas conclusões, baseada na descrição dos fatos. [Webinsider]

 

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Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.

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2 respostas

  1. Olá, Fabio,

    As discordâncias são na maioria das vezes saudáveis. E não se esqueça que eu já fui cineclubista!

    Agora, depois de ler o seu texto todo, eu percebi duas coisas:

    1 – Gran Torino personifica a comunidade asiática de forma errada? O personagem do próprio Clint mostra um cidadão americano ultra conservador e preconceituoso, que acaba se afeiçoando com a parte da família depois de conhecê-la melhor. Você sinceramente não acha que a crítica ao conservadorismo radical e boçal está lá?

    2 – Você mesmo admite que Bradley Cooper personifica um Chris Kyle mentalmente perturbado, e eu concordo totalmente. Ora, não é esse o objetivo subjacente do roteiro???

    Nunca se esqueça, amigo, que este discurso era (e foi provado que foi) dirigido a uma plateia americana dividida, e a maior evidência disso são os comentários postados no IMDb.

    Nem o roteirista nem o diretor quiseram tomar partido explicitamente. E no cinema isto é perfeitamente possível, como você mesmo, que é cinéfilo, sabe. As mensagens são sempre divididas entre diretas e subjacentes. E só enxerga as subjacentes quem olhar o filme com uma abordagem crítica isenta, o que não é fácil, principalmente quando feita por uma plateia dividida como aquela, onde cada um já fez a sua cabeça em relação ao assunto.

  2. Como sempre, excelente comentário, embora eu tenha algumas divergências…
    Clint Eastwood é um estupendo cineasta, cuja admiração pelo trabalho eu compartilho contigo, mas algo me diz que eu não ia curtir sentar com ele numa mesa de bar e fazer amizade, pois muitos dos filmes transbordam uma visão de mundo que eu considero, com o perdão da palavra; escrota. Ele me parece um “republicano xiita”. O modo como os asiáticos são representados em Grand Tourino já aponta um pouco a visão de mundo do cara… Sobre esse Sniper Americano (porque as distribuidoras brazucas nunca resistem à tentação de fazer alguma idiotice com o nome do filme é um mistério que eu jamais vou entender… “Atirador Americano” estava de bom tamanho…), afora algumas incoerências históricas, como o fato do longa mostrar Kyle
    sendo chamado para entrar em ação após os atentados do 11 de setembro e em seguida combatendo no Iraque, sendo que após o 11/09 os EUA invadiram o Afeganistão; chama atenção o fato de que os inimigos são sempre descritos e retratados como “selvagens”, enquanto os americanos são os civilizados. A sequência do duro e quase desumano treinamento dos SEALs me remeteu à Tropa de Elite imediatamente, embora no filme de Eastwood a sequencia seja mais repetitiva e desinteressante. Por mais que Kyle se revele cada vez mais um sociopata, Eastwood insiste em tentar retratá-lo como um herói. A opção de utilizar um atirador inimigo (retratado de longe, superficialmente, quase como sem humanidade alguma) que aqui serve para ilustrar um jogo de gato e rato e personificar o desejo de vingança de Kyle, faz lembrar Círculo de Fogo de J.J Annaud embora aqui a disputa seja secundária. É curioso também notar como mesmo um cineasta experiente como Eastwood cai em alguns clichês baratos e previsíveis. Quando o personagem Beggins relata para Kyle sobre o anel que comprou para pedir a mão da namorada, é o beijo da morte; voce já sabe que ele é o próximo a ser atingido. O mesmo vale para o companheiro de Kyle , que na saída da reunião de briefing o questiona e filosofa um pouco. A partir dali voce já sabe que aquele personagem não seguirá vivo até o final. Ainda que hesite em mirar em mulheres e
    crianças (mas atire mesmo assim), Kyle jamais questiona o papel dos EUA no conflito (vale lembrar que os EUA invadiram o Iraque em busca de armas químicas que jamais foram encontradas) e o filme busca o tempo todo justificar suas ações. Autor de mais de 150 mortes, jamais demonstra qualquer tipo de remorso, e seu único arrependimento é não ter matado mais, o que, segundo ele, teria protegido ainda mais americanos. Concordo nos elogios ao excelente trabalho do ator Bradley Cooper, que encarna um Kyle mentalmente perturbado e cuja psicopatia vai se tornando mais latente à medida em que retorna para mais missões no Iraque. De qualquer modo, o filme tem um ritmo interessante, sequencias de combate verossímeis e afora a mensagem (e aí, discordamos), na minha opinião, canalha, acaba sendo um bom filme sob o ponto de vista artístico e de entretenimento. A sequencia apresentada durante os créditos tenta reforçar a aura de herói em torno de Kyle e demonstra que boa parte dos americanos já comprara essa ideia antes mesmo da produção do filme. Se o espectador conseguir manter o distânciamento da tentativa de doutrinação que o diretor promove (mais discordância… heheheh), e tentar abstrair do filme o que vazou pra dentro dele da visão de mundo do seu diretor, é possível curtir esse Sniper Americano e saborear duas horas de um ótimo filme.

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