Preservação de cabines com 70 mm

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Só mesmo Deus é que sabe sobre os momentos de desânimo e frustração que eu passei nos últimos anos, na tentativa de resgatar a memória das projeções em 70 mm na minha cidade. E se alguém, por acaso, acha que eu estou fazendo tempestade em copo d’água, deixem-me dizer que, tecnicamente falando, foi a bitola do filme 70 mm que propiciou o maior avanço do cinema em décadas, com padrões incialmente estabelecidos pelo formato Todd-AO.

E a maior prova disso é a manutenção do formato em filmes como Interstellar (exibido recentemente em Londres em 70 mm, privilégio este que infelizmente não nos foi concedido), ou das investidas do diretor Paul Thomas Anderson em The Master.

Cineastas como Ron Fricke e Mark Magidson não abriram mão de usar negativo 65 mm, com câmera desenhada por eles, nos filmes documentários Baraka e Samsara.

O filme 70 mm moderno foi adaptado para trilhas digitais 5.1, mas o número de cópias e os custos de exibição foram tornando o formato inadimplente, com a persistência em alguns cinemas por culpa do esforço preservacionista e do idealismo de uma meia dúzia de fãs e exibidores conscientes que o formato não deveria morrer!

E toda esta guerra recente de bastidores para derrubar completamente a projeção de película tornou ainda mais inviável a presença de projetores analógicos nas cabines dos exibidores, seja lá de que bitola fosse. Os poucos cinemas lá de fora que se preocuparam em deixar pelo menos um projetor de película são os que hoje permitem que filmes como Interstellar possam estar visíveis ao público da maneira como foram realizados.

 A derrocada das salas exibidoras de rua

Existem evidências conclusivas de que os chamados cinemas de rua fecharam as portas por causa do alto custo operacional. Com o correr do tempo, ficou exageradamente caro pagar contas de luz, IPTU, limpeza e funcionários.

Um caso absurdo que me foi relatado em passado distante diz respeito ao Cinema Palácio, localizado na Cinelândia carioca. Anos atrás, a prefeitura prometeu ao exibidor a isenção do IPTU, para permitir que o lendário cinema permanecesse aberto. Qual não foi a surpresa do exibidor quando, tempos mais tarde, apareceu uma cobrança de IPTU astronômica. O exibidor pagou e fechou o cinema.

Com o fechamento dos cinemas, toda a aparelhagem de projeção passou a ter destinos diversos, algumas reformadas e adquiridas para uso em salas menores, pelo interior do país.

Com a retirada de projetores antigos mais sofisticados (70/35, por exemplo), instalações de alto custo e nível técnico desapareceram por completo, junto com as respectivas salas. As salas que ainda estão de pé e que estão lacradas tiveram o equipamento retirado para algum depósito aguardando destino, ou deixado apodrecendo, guardado em ambientes inadequados.

 Afinal, tombar ou não tombar?

O tombamento das salas de cinemas de rua é uma faca de dois gumes: de um lado, a necessidade de preservação cultural e arquitetônica da cidade; e do outro, o do patrimônio das famílias ou empresas proprietárias, que não conseguem fazer mais nada ali, a não ser pagar impostos.

É difícil dizer o que é pior para ambos os lados: se por um deles, a preservação cultural é uma necessidade orgânica de uma sociedade que se propõe a ser civilizada, por outro se cassa o direito de ressarcimento financeiro e o direito de dispor de um imóvel construído que não terá mais uso para a finalidade a que originalmente se propunha.

Por conta disso, cinemas tombados têm sido sistematicamente alugados para a ocupação de associações ou atividades particulares, sem conexão alguma com o comércio cinematográfico. E o inquilino é obrigado a preservar o ambiente tombado, e ainda arcar com o alto custo de aluguel, conservação e os exagerados impostos e contas diversas do local.

 Uma cabine de 70 mm esquecida no tempo

Eu ganhei a chance de visitar a antiga cabine do Cinema Pathé, parte outrora da área chamada de Cinelândia, no centro do Rio de Janeiro, onde se concentravam um número significativo de cinemas.

O Pathé tem uma história rica nos anais da cinematografia carioca: começou como Cinematógrapho Pathé, em 1907, em outro local da cidade. Mudou-se em 1915 para o endereço de número 143 da então Avenida Central, que posteriormente renomeada para Avenida Rio Branco, ocupando os números 151/153. Neste endereço, a sala abrigou cinema e teatro, como era comum naquela época. Segundo historiadores, as peças de teatro ali apresentadas tiveram fim em setembro daquele ano, quando então a sala passou a exibir filmes exclusivamente.

Em 1928, nova reforma, já com as características arquitetônicas art déco comuns a outros prédios e cinemas da Cinelândia, foi feita com o esforço da família Ferrez, comandada pelo lendário fotógrafo Marc Ferrez. A família tornou-se proprietária da sala, e permanece assim até os dias de hoje.

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O Cinema Pathé fechou as portas para exibição de filmes em 1999. No final da década de 1960, o cinema fez uma completa reformulação do seu sistema de projeção, instalando os projetores 70/35 Incol, fabricados por Orion Jardim de Faria.

Com a minha revisita à cabine, descobri uma placa de fabricação com data de 1969, data esta a provável época na qual o cinema passou a exibir filmes em 70 mm. O primeiro filme exibido foi a produção inglesa em Todd-AO de 1965 “Estes Homens Maravilhosos Com Suas Máquinas Voadoras”, dirigido por Ken Annakin. Esta e todas as outras exibições foram feitas com tela 70 mm “plana”.

Como a cabine comporta apenas dois projetores, o cinema deixava de exibir material em 35 mm, como jornal da tela ou trailers, toda vez que um filme 70 mm era exibido. E o motivo é simples: todo projetor 70/35 precisa de ajustes para uma bitola ou outra, principalmente na área da janela do projetor e lentes, e como estes ajustes tomam tempo eles não podiam ser feitos no momento da projeção.

Na foto do auditório do cinema, mostrada a seguir, o leitor poderá ter ideia da dificuldade de instalar uma tela de maiores proporções em um espaço reduzido. O antigo palco e o proscênio ficaram para trás, ocultando inclusive o espaço da antiga tela de 35 mm, do período pré-CinemaScope.

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 Detalhes do equipamento remanescente:

Os dois Incols achados na antiga cabine do Pathé estão desativados, mas relativamente intactos. Alguns componentes, como as cabeças magnéticas 70/35, 6 e 4 trilhas, respectivamente, apresentam oxidação, mas dependendo da deterioração poderiam ser limpas e recuperadas.

Somente com a presença de um técnico especializado poder-se-ia aquilatar o grau de conservação dos dois Incol e o custo estimado para a sua completa recuperação.

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Os Incols trabalharam com lanterna a carvão da marca Peerless, modelo Magnarc. Esta iluminação a carvão, formando o chamado arco voltaico, era a ideal para filmes 70 mm e costumam ser alimentadas por corrente com uma amperagem alta, de forma a garantir que a luz fosse suficiente para as maiores dimensões da bitola de 70 mm.

Uma parte do equipamento de som parece ter sido retirada, mas foi possível ver lá um pré-amplificador Superscope, da marca Eprad. Além deste, um amplificador de potência de dois canais Eprad pode ainda ser visto. O cinema deve ter sido montado com três amplificadores deste tipo, seis canais no total, com potência de 200 W RMS por canal.

Todos os ajustes de reprodução, equalização e amplificação são feitos no pré da Eprad, incluindo filtros, quando necessário. Os ajustes incluem a reprodução da banda ótica, com o uso de redução de ruído para trilhas em filmes com prata, comuns naquela época. Era o que de mais moderno se poderia esperar em instalações deste tipo. O pré-amplificador da Eprad comportava a ligação de dois projetores simultaneamente.

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Acima o leitor pode ver o mesmo equipamento Eprad de um colecionador, bem conservado, pelo menos externamente, para efeito de comparação. Nada da eletrônica desta época seria irrecuperável, ainda mais porque a Eprad continua em atividade nos Estados Unidos.

 Minha opinião sobre cabines desativadas

É uma pena, para nós que somos cinéfilos, ver que equipamentos de alta qualidade deste tipo não tenham mais uso e fiquem relegados ao abandono.

A meu ver, todo e qualquer equipamento recuperável deveria estar em exposição permanente, de preferência em um museu de cinema, porque os inquilinos de imóveis tombados normalmente não têm interesse em expô-los à visitação pública.

Sensibilizar o poder público ou a iniciativa privada para montar um museu de cinema nestas paragens é o tipo de projeto que eu pelo menos não tenho mais a menor esperança ou ilusão de ver realizado.

Sob o ângulo de visão cultural e histórico, a existência de um museu com projetores nacionais, da Incol e/ou de outras marcas, deveria ser um marco de referência para estudantes, pesquisadores e o público em geral, por tudo o que se fez neste país na área da exibição cinematográfica. [Webinsider]

 

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Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.

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2 respostas

  1. Oi, Danny,

    Décadas atrás o meu “livro de cabeceira” para métodos e equipamentos de gravação de áudio era o Modern Recording Techniques. O livro original já foi atualizado “n” vezes, e eu não sei se ele ainda descreve os métodos mais antigos. Em todo caso o link para a edição atual é este:

    http://www.amazon.com/Modern-Recording-Techniques-David-Miles/dp/0240821572

    Seria interessante você ler algum review do mesmo antes de comprar.

  2. Excelente texto. Acredito nunca ter assistido um filme em 70 mm mas penso o que deve ter sido um “Lawrence da Arábia”.
    Vou cometer um deslize outra vez…
    O caso é adoro ler sobre equipamentos e técnicas de gravação antigas.
    Teria algum livro pra me indicar.
    Obrigado Paulo.

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