Os musicais da Nouvelle Vague

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Pode hoje parecer algo meio estranho ou até estrambótico, que um dos principais movimentos da era do cinema moderno, sediado em solo francês e preocupado com aspectos políticos e sociais da época, tenha tido diretores obcecados na realização de projetos musicais. Mas coube a Jacques Demy fazer as honras da casa.

E se a gente olhar o movimento dos então jovens cineastas franceses irá notar que o que foi chamado de “nova onda” do cinema foi na verdade a formação de cineastas com a liberdade de fazer cinema do jeito que melhor lhe aprouvessem, em contraste com os padrões controladores e às vezes autoritários do cinema americano.

Jacques Demy foi, por princípio filosófico de fazer cinema, um dos desgarrados da preocupação política desde o início. Começou, ainda estudante de cinema, fazendo animação e só depois criando roteiros com foco no design de cena. Ele eventualmente conheceu o genial compositor Michel Legrand, uma espécie de alter ego do diretor, e juntos aprenderam a colocar música em filme.

Perguntado em entrevista sobre um questionamento de críticos da trilha musical, partindo do princípio (a meu ver completamente errado) de que a trilha sonora ideal é aquela que passa despercebida nos filmes, Legrand dissertou sobre a importância da composição musical em si e, de fato, a história prova que a música tem enorme importância no impacto visual das cenas. E isto ficou claro, a meu ver, quando ainda no início do cinema silencioso os estúdios faziam a provisão de arranjos musicais que serviam de acompanhamento nas apresentações das salas da época. Em salas pequenas e médias, apenas um piano ou órgão, e nas maiores uma orquestra completa. Até Chaplin, que no inicio abominara o cinema sonoro, nunca deixou de musicar ele mesmo os seus filmes mudos.

Jacques Demy nos mostra inequivocamente que o formato do roteiro tem pouca ou nenhuma relevância com as mensagens, subjacentes ou diretas, desenvolvidas no projeto do filme.

Por isso, fica bastante claro que os seus filmes musicais são pano de fundo para o desenvolvimento das ideias e pensamentos do cineasta sobre o comportamento da sociedade que o cercava e com a influência provável do seu próprio processo de formação cultural.

A seguir, eu pretendo colocar em pauta algumas observações sobre duas das principais obras musicais de Demy, na expectativa de tentar provar esta tese.

 Les Parapluies de Cherbourg

O filme vencedor em Cannes, obra-prima do cineasta, e que levou no Brasil o título meloso de “Os Guarda-Chuvas Do Amor”, é uma tentativa de fazer um filme musical eliminando totalmente o diálogo sem música, ou seja, é uma ópera no sentido mais tradicional do gênero musical, exceto que não existe em nenhum momento da trilha um cantar “operático” dos atores, e sim canções com forte influência jazzística, típica, aliás, do compositor das mesmas.

Entretanto, Parapluies manipula a música para tornar o filme emocionalmente chocante, diante das principais mensagens que o cineasta quis passar: traição, discriminação de classes, o trauma da guerra e finalmente o amadurecimento de uma pessoa que sai da paixão incontrolada para um amor maduro e sensato.

No início da estória os jovens adultos Guy e Geneviève estão apaixonados e jogando juras de amor um contra o outro. Ele é um membro da classe trabalhadora, trabalha como mecânico na oficina local, e ela é filha de uma comerciante, dona de uma loja de guarda-chuvas. E por causa da diferença entre ambos, a mãe, de uma forma totalmente matriarcal, condena a relação de ambos. Como toda adolescente, Geneviève entra em conflito com a mãe e resiste ao rompimento.

Os planos dos dois de se casar vão por água abaixo (sem trocadilho), por conta da convocação de Guy para defender a França na rebelião de independência que estava ocorrendo na Argélia, futura ex-colônia francesa. A separação entre os dois torna o romance virtualmente impossível de ser mantido.

Durante a guerra, Geneviève, grávida de Guy, acaba sendo convencida pela mãe a esquecer o ex-namorado, e se interessa por Roland Cassard (personagem transposto do filme “Lola”), que se sente atraído por ela. O detalhe aí é que Geneviève não rompe formalmente com Guy, ela simplesmente para de se comunicar por carta com ele.

O filme se desenvolve em três partes, anunciadas nos créditos: a primeira se refere à partida de Guy para a guerra; a segunda, à sua ausência, e a terceira, centrada no seu retorno.

Durante a Ausência, Geneviève vai do amor incondicional por Guy para uma mulher “fria” que, de forma calculada, migra os seus interesses maritais por Cassard, não por acaso um sujeito rico, que a aceita mesmo sabendo do filho dela com outro.

Na volta de Guy é que o drama principal se desenvolve com maior impacto. Ele se sente traído pelo rompimento unilateral da sua relação com Geneviève, e não consegue entender por que ele fora abandonado daquela maneira. Guy não sabe aonde foi parar aquela paixão e aquele senso de compromisso afetivo que existiu entre ele e Geneviève. E o pior é que o filme deixa nas entrelinhas uma noção de que Geneviève se une a Roland Cassard por conveniência, portanto longe daquela paixão adolescente que havia brotado em sua relação anterior com Guy.

Depois de chegar emocionalmente ao fundo do poço, perder emprego e o respeito por si próprio, Guy começa a “enxergar” Madeleine, que nutria por ele uma paixão platônica.

O momento mais maduro e nobre do filme se dá com Madeleine, que dá uma lição de moral em Guy, e mesmo interessada em uma relação com ele, não aceita na pessoa dele um homem pela metade. O filme tenta mostrar que a paixão não tem qualquer importância na estabilidade emocional na vida do casal, que é um momento que na maioria das vezes não dura muito e que precisa ser transformado em um amor maduro, onde homem e mulher são cumplices que juntam suas vidas com um objetivo em comum.

Olhando o filme repetidamente, como nós o fizemos ao longo dos anos, não resta dúvida de que Madeleine é a voz do diretor e a sua visão pessoal sobre relacionamentos fracassados. Para o espectador mais atento, ele mostra a diferença entre uma relação sólida e outra calcada na fantasia. Mostra que “gostar” de alguém de verdade implica em uma série de renúncias, identificação e amizade, e apoio aos projetos do parceiro. E, coerentemente, ao final da ópera Madeleine estará ali para o que der e vier, ajudando Guy a se reerguer na vida. Pronto, a moral da estória está declarada! Para mim fica claro que o cineasta não tolera infidelidade e nem deslealdade no relacionamento entre um homem e uma mulher.

A música de Parapluies de Cherbourg foi alvo da atenção dos músicos populares com enfoque jazzístico ao longo dos anos. A qualidade da parceria Legrand-Demy torna o filme palatável e tolerável mesmo pelas plateias que não estão acostumadas com filmes musicais.

Hoje se sabe que Jacques Demy seguiu à risca uma fórmula Hollywoodiana: a de dublar o canto de atores que não sabem cantar com a voz que a trilha demanda. E neste caso de forma ainda mais radical, porque todos os atores sem exceção são dublados do início ao fim do filme.

Existe também uma forte influência cromática de West Side Story (“Amor Sublime Amor”), e o desenhista de produção se vira com papéis de parede (que são quase idênticas às roupas dos personagens) e paredes rabiscadas com cores berrantes.

 Les Demoiselles de Rochefort

Demoiselles levou no Brasil o título idiota “Duas Garotas Românticas”, e é um filme que se aproxima perigosamente do padrão assentado nas terras do tio Sam. Não há nenhuma mensagem importante no filme, às vezes dá a impressão de que até parece um roteiro vazio.

Entretanto, ele é um esforço no sentido de escrever todos os diálogos na forma de poesia (a propósito, Demy é o letrista das canções de Legrand, inclusive) e a trama se desenvolve em torno das relações interpessoais entre uma troupe de artistas e dançarinos, com os habitantes locais em Cherbourg. A tônica do roteiro gira em torno da procura do parceiro ideal, chamado por um dos personagens sonhadores de “o meu ideal feminino”.

Aqui o fundamental é o entrelaçamento entre a vida e a arte, que dominam o desenvolvimento da estória. Logo de início fica claro o tributo prestado pelo cineasta aos artistas de filmes musicais norte-americanos modernos, pois ele coloca em cena nada menos do que três dançarinos do ramo: George Chaquiris, Grover Dale e o lendário Gene Kelly, este último também ele próprio diretor e coreógrafo na sua fase M-G-M.

Em cena aparecem também as irmãs na vida real Catherine Deneuve e Françoise Dorléac, esta última lembrada até hoje por nós como a carismática e sensual atriz que morreu tragicamente em um acidente de carro aos 25 anos de idade.

Ao contrário de Parapluies, que foi fotografado com lente esférica convencional, aqui o cineasta faz o enquadramento no formato “scope”, com fotograma 2.35:1 anamórfico.

A produção faz uso da ubíqua Camé 300 Reflex, fabricada na França pela Éclair, que era favorita dos cineastas franceses daquela época. Em Demoiselles a produção se esmera para apresentar uma cópia ampliada para 70 mm, muito embora eu não tenha notícia de que o filme chegou neste formato ao Brasil.

Abaixo são mostrados detalhes da cinematografia e da câmera usada em Demoiselles e muitos outros filmes da época:

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Embora Demoiselles seja uma obra musical no estilo clássico americano, eu pessoalmente acho que em momento algum Jacques Demy tenha tido uma intenção explícita de prestar algum tipo de tributo a não ser aos atores que ele convidou, mas pode ser que eu esteja enganado.

 As versões em Blu-Ray

Com a restaurações dos filmes de Demy, supervisionadas por sua mulher, também cineasta, Agnes Varda, seguiram edições em DVD, a maioria bem aquém, som e imagem, do pouco que restou de qualidade dos originais desses filmes.

As edições em Blu-Ray prometem, e de certa forma cumprem, redimir o estúdio onde as restaurações foram feitas. Apesar de que os restauradores fizeram opção pela varredura dos negativos com apenas 2K de resolução em vários desses títulos. Claro que 2K é suficiente em tese para um negativo 35 mm, mas pelos padrões atuais de qualidade de imagem, se estes mesmos filmes forem reeditados em resolução maior, todo este trabalho terá que ser refeito.

A economia de produção dos franceses daquela época fica patente na qualidade do som gravado. Em Parapluies, por exemplo, não importa o tamanho do esforço em remixar a trilha sonora, o resultado será sempre um som mono disfarçado de multicanal. As distorções de captura de voz são às vezes, quase impossíveis de corrigir.

Porém é preciso lembrar que na década de 1960, os estúdios franceses tinham em mente a gravação da trilha pelo som ótico mono da película, que tem baixa fidelidade de reprodução.

Em Parapluies não houve preocupação em guardar a trilha em alguma fita master estereofônica, coisa que poderia perfeitamente ter sido feita. Mas, o custo e o pragmatismo da produção parecem ter impedido que eles assim o fizessem.

Duas honrosas exceções para o som mono de Parapluies com um estéreo falsificado são as transcrições de Demoiselles e de Peau D’Âne, o primeiro a partir das matrizes multicanais usadas para a versão em 70 mm, e o segundo a partir de matrizes gravadas em estéreo na época, mas nunca usadas na versão original de cinema.

Olhando cada filme em suas versões restauradas e repassadas para mídia de alta resolução ainda é possível constatar a pobreza dos negativos originais, exibindo uma cor com tendência a tons pastéis, apesar da tentativa de saturação a todo instante. E aí não creio que seja limitação do software usado, mas dos negativos propriamente ditos.

Partindo do princípio de que alguma coisa boa é melhor do que nada, e de que os DVDs de fato deixaram muito a desejar, a passagem para Blu-Ray quebra um grande galho, tanto em som quanto em imagem.

É preciso, contudo, sempre nos lembrar de que estamos tratando da história do cinema de vanguarda, com todos os seus defeitos e virtudes. Estamos também lidando com a obra dos então jovens intelectuais franceses, que lutaram ardorosamente pela liberdade de expressão nas telas de cinema. Se a verdade que eles mostraram é paroquial ou não, e se o discurso da época era por demais político ou moralista, eu creio que agora pouco importa. Para nós hoje é muito fácil identificar o legado deste esforço, e a influência que ele teve no cinema moderno dos demais países. [Webinsider]

 

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Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.

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