O som nosso de cada dia

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O prazer do som gravado e reproduzido em alta fidelidade

Um amigo me liga dizendo ter conseguido localizar e comprar uma regravação que ele nunca esperaria ser reeditada mais. E é claro que, como todos nós que fazemos o mesmo, torce para que o lançamento tenha sido acompanhado por uma correta recuperação do original e com transcrição de alta qualidade.

Nos anos seguintes ao lançamento do CD, mídia que foi cercada de desconfiança de vários matizes, ficou claro que o catálogo analógico jamais seria totalmente recuperado. Ao longo dos anos, nós nos obrigamos a ir a algumas lojas de disco especializadas tentando achar algum disco importante.

No início da minha vida na Internet, em meados de 1994, era possível acionar um comando Telnet e dali partir para uma preciosa pesquisa nos bancos de dados de uma revenda fora do país. As buscas nas lojas se arrefeceram.

Não foi fácil enfrentar os preconceitos dos anos que precederam este recurso. Aqui no Rio a revenda pioneira em venda de CDs foi a falecida Gramophone, uma loja moderna em todos os sentidos. Nas outras, o comerciário que não tinha mídia para vender nos dizia que o CD era uma moda passageira, que iria desaparecer em curto espaço de tempo. Outros chamavam o CD de “disco laser”, sem ter a mínima noção do que isto significa.

Toda esta busca atrás de gravações recuperadas em grande parte se deveu às inúmeras decepções com o elepê, aflito por ruídos e compressão de sinal que nenhum audiófilo com a cabeça voltada para o futuro se conformou. A minha mãe mesmo, que nem “audiófila” era me perguntou um belo dia se a gente ainda iria se livrar das agulhas dos toca-discos. Quando o CD foi lançado e eu consegui comprar um, eu fui correndo lhe mostrar o disco. Ficou difícil explicar a tecnologia, afinal pouca gente havia ouvido falar em raio laser naquela época.

A origem das espécies

Até Darwin diria que o ser humano evoluiu com o gosto pela maviosidade dos sons. O som que nos encanta consegue cativar a alma de quem o aprecia!

E é bastante provável, aqui me arriscando a ser um cientista sem provas concretas, que a gente que gosta de som já nasce com esta propensão. O som correto nos chama a atenção e, dependendo da sua natureza, nos emociona.

Entretanto, o que eu notei a vida toda é que nem todo audiófilo aprecia música e nem todo amante de música aprecia áudio.

O termo audiófilo vem do grego, áudio = som e filo = amigo. O amigo do som não dispensa um equipamento com a maior fidelidade possível. Irá cortar dobrados até conseguir algo que o satisfaça e corre um sério risco de nunca ficar contente com o resultado de uma instalação, mudando-a até o fim da vida por algo que lhe prometa o tal “som absoluto”, isto é, o som que mais aproxima do timbre real dos instrumentos.

O amante de música pode aceitar qualquer coisa, a fidelidade em si não é tão importante assim. Eu tive um colega da universidade fanático por jazz que gravava pilhas de fitas cassete com faixas de um programa da rádio JB AM, cujo som era limitado às características da transmissão, mas cuja programação era de discos que ele não tinha.

Quando se une o útil ao agradável

Se a pessoa gosta de áudio e de música ao mesmo tempo ela fará pesquisa nos dois lados, dando prevalência a um ou outro, dependendo do momento.

E é fascinante a gente ter noção de que o som é o resultado de um movimento pistônico de um cone de um alto-falante, que bem poderia ser impreciso o suficiente para não reproduzir corretamente um determinado instrumento.

Quando o fabricante “acerta” no design dos alto-falantes e das caixas, o impulso de quem ama som e música é ouvir a discoteca toda outra vez. Mas, e eu já verifiquei isso com vários amigos, a tendência é que nunca mais se ouça alguns dos discos das nossas prateleiras. Não quer dizer desprezo, mas falta de motivação ou tempo.

E deixar de ouvir discos da coleção jamais implica na ausência de busca de títulos antigos. Da mesma forma como antigamente se folheava as prateleiras das lojas, hoje se buscam edições nos acervos dos detentores de fonogramas ou de seus licenciados.

Gostar de ouvir música sentando na frente das caixas é um hábito que muita que eu conheço perdeu, cedendo lugar aos fones de ouvidos dos telefones celulares. Mas, o ritual em si é de uma importância transcendental, e eu sou um que não pretende perde-lo até os meus últimos dias de capacidade de ouvir música!

E quando se trata de uma nova reedição, com boa transcrição da fita de origem, o prazer de ouvir é ainda maior.

Foi, por exemplo, um prazer enorme ter descoberto uma gravação rara, gravada ao vivo em Berlin, por Dizzy Gillespie e sua banda, cujo elepê eu me dei ao trabalho de restaurar cuidadosamente anos atrás e com resultados razoáveis, sair em CD por um selo especializado, com transcrição soberba:

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O elepê havia sido importado para o Brasil por iniciativa da Basf, feito com vinil ultra puro, prensado na Alemanha. O CD, entretanto, transferiu a master com alta resolução, e posterior redução a 16 bits. O resultado deixa o elepê comendo poeira, apesar de sua boa qualidade.

Algumas subsidiárias das antigas gravadoras, principalmente aquelas oriundas de países com tradição de edição de algum gênero musical, fazem o trabalho que muitas vezes a matriz não faz. Abaixo pode-se ver o exemplo da BMG francesa, que editou o lendário Concerto de Música Sacra, conduzido pela orquestra de Duke Ellington. Notem que na contracapa, à direita da figura, faz-se menção a uma “réédition indispensable”, que ela de fato é!

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Não fosse pela BMG espanhola não teria sido possível resgatar importantes trilhas sonoras e gravações da banda e coral de Henry Mancini. Dela veio o melhor trabalho do mestre, sob o ponto de vista jazzístico: Uniquely Mancini, que se une à trilha de Peter Gunn, com standards de jazz vestidos em excepcionais arranjos.

A magia do som no cinema

Como já afirmei antes aqui, o cinema sempre esteve à frente no que tange à captura e reprodução de áudio. Este pioneirismo é particularmente importante no desenvolvimento do som estereofônico, em cuja evolução pretendeu-se conseguir a conquista do espaço de reprodução, estimulada, é claro, pela presença de telas cada vez mais largas.

E foi justamente na M-G-M, previamente festejada por mim em passado não muito distante, onde muitas das principais inovações no campo das gravações de trilhas multicanais.

As conquistas da M-G-M aconteceram apesar de o estúdio ter sido o último dos grandes a adotar o cinema falado, porque o seu principal produtor, Irving Thalberg, considerado por muitos um gênio na área, achava que o som era só uma moda passageira. Neste caso, errou feio.

O fato, aliás, foi citado literalmente no filme da M-G-M “Cantando na Chuva”. Quando o estúdio percebeu o imenso campo de produção com filmes sonoros musicais, tudo mudou de figura, com a procura cada vez maior de levar à tela o melhor som possível! A produção de filmes musicais ainda impulsionou a M-G-M a levar adiante o aperfeiçoamento das caixas acústicas projetadas para o cinema, incluídas nos cinemas Metro brasileiros e depois em alguns dos demais cinemas.

Outro estúdio que se notabilizou pela influência do som estereofônico foi a Fox, com a introdução do CinemaScope e com películas dotadas de trilhas magnéticas para alimentar os 4 canais do sistema, três na tela e um surround. Os primeiros cinemas cariocas com CinemaScope (Palácio, Vitória, Madrid, Rian e muitos outros) eu posso atestar que eram excepcionais no quesito áudio, suplantando tudo que havia aparecido até então.

Sem precisar mencionar todas as contribuições ao áudio, uma das principais advocacias do som estereofônico e de sua importância no processo de exibição coube a Walt Disney, quando introduziu o formato Fantasound.

Disney e colaboradores ainda não tinham em seu poder películas em formato largo, mas nem por isso deixou de experimentar com a gravação em múltiplos canais com o uso da banda ótica, mais especificamente aquela adotada pela RCA, chamada de Photophone. Alguns curtas da série de animação Silly Symphonies foram gravados em estéreo com som ótico desta maneira. Só recentemente foi possível apreciar a extensão deste trabalho, mas ainda com reservas, provavelmente causadas pela perda de acervo.

A influência do som na mente humana

Tal assunto certamente merece muitas páginas de discussão, as quais eu não me atrevo a elaborar. Basta dizer que o som pode ser enervante e desgastante, levando o ouvinte ao estresse, como pode ser relaxante e induzir quem ouve a viajar mentalmente no tempo e no espaço. O bom som deixa quem o aprecia com um astral mais elevado, pois enriquece a alma e permite criar a fantasia de imaginar um mundo melhor.

Afinal, todos os bons músicos espelham a sua alma na música que compõem ou tocam. Não é preciso ir muito longe. Basta tocar as gravações da bossa nova logo do seu início, para sentir o lado lúdico dos compositores, nas letras e principalmente na construção da linha melódica, completamente diferentes no que havia sido feito até então.

E não foram senão os maiores compositores eruditos quem revolucionaram a música clássica, pessoas como Beethoven, Bach, Mozart e tantos outros. Muitos historiadores teorizam que a música de Bach serviu de base à construção do Jazz. Pode ser ou não, mas em ambos os casos a apreciação da música é completamente distinta, dependendo de quem a ouve.

Eu comecei a ouvir música com atenção na infância, sem que ninguém fizesse nada a este respeito. E amadureci para o jazz, largando a música popular comercial, em torno dos 13 anos de idade. Nunca influenciei meus filhos para ouvir qualquer tipo específico de música, porque isto deve ser uma preferência de foro íntimo, à qual eu não posso interferir.

Mas o meu filho mais novo, em torno dos seus 14 anos, quando morávamos no exterior, se apaixonou pela música de Beethoven. Um dia chegou da escola bastante chateado, porque a professora de música havia se referido a Beethoven como “um homem sujo e bêbado”.

De fato, Beethoven teria sido visto embriagado e caído no chão da rua várias vezes. Mas, o que isso tem a haver com a música? Meu filho tinha razão de se sentir insultado. E a sorte lhe falou mais alto, porque a dita professora saiu, e no seu lugar veio uma professora substituta mais jovem e sem preconceitos, que fez o papel que a outra não fizera, que é o de estimular a descoberta.

Aí a união de espíritos foi inevitável, e eu tive a chance de conhecer esta moça e lhe fiquei muito grato pelo estímulo que ela deu ao meu filho de aprofundar o seu gosto pela música não só de Beethoven, mas de outros compositores da mesma época.

Ah se no Brasil alguém tivesse a decência de introduzir a apreciação de música na escola de formação de base! E de preferência com professores com a cabeça aberta para o erudito. Quem sabe se o gosto dos adolescentes não sairia da música do momento, tocada em seus ambientes, para algo de outro nível? É preciso dar a chance às pessoas, aos jovens em formação em particular, de conhecer a música como um todo. Pois nunca se sabe como irá cair um determinado gênero na cabeça de cada um deles! [Webinsider]

. . . . . .

Leia também:

http://br74.teste.website/~webins22/2016/05/24/base-da-trilha-sonora-digital-moderna/

Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.

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2 respostas

  1. Olá, André,

    Obrigado pela leitura e elogios.

    Duke Ellington com o Grapelli, rapaz eu tive este disco em elepê, capa branca se não me engano. Que bom que você citou,vou aproveitar e dar uma pesquisada para ver onde tem por aí.

    A propósito de Duke Ellington, quando eu ainda era adolescente o meu vizinho, pai de um grande amigo e que trabalhava na antiga Companhia Industrial de Discos (CID), nos levou para visitar a Tapecar, que tinha uma duplicadora de fitas naquela época. Eu ganhei deles um rolo da gravação Decca canadense, Duke Ellington com a orquestra de Ron Collier: https://www.discogs.com/Ron-Collier-OrchestraWith-Duke-Ellington-Duke-Ellington-North-Of-The-Border-In-Canada/master/433501. Infelizmente, havia algum problema na master e aquela fita nunca soou bem.

    Quando a BASF importou discos (fato citado neste texto) algumas matrizes da MPS foram cortadas na RCA em São Paulo, e prensadas com vinil de ótima qualidade. Mal sabia eu que a MPS havia pego aquela gravação e remixado tudo como devia, mas com outro nome: Collages (https://www.discogs.com/Duke-Ellington-With-Ron-Collier-Orchestra-Collages/release/3428228). O resultado era excelente.

    Eu fiquei anos tentando achar o CD, e um belo dia achei em uma edição italiana obscura: https://www.discogs.com/Duke-Ellington-Collages/release/4422429, e mais uma vez com outra capa. A transcrição está razoável. Eu sei que recentemente saiu a mesma coisa, em uma edição alemã, imagino que tenha caído em domínio público.

    North of the border ou Collages, pouco importa, é um daqueles álbuns com o qual uma vez que se identifica contigo, está sempre presente nos momentos de apreciação de música da rotina diária.

  2. Excelente texto Paulo Roberto, parabéns! Você falou tudo, com muita propriedade.
    Infelizmente é isso mesmo, temos audiófilos e musicófilos. Ocasionalmente estão juntos.
    E tudo, como sempre, depende da educação de base, como acontece em outros países há muito tempo.
    Seria ótimo tê-lo comentando mais sobre música, notadamente jazz que, creio, deve ser
    sua praia. A propósito um dos melhores discos gravados nos anos 60, agora remasterizado, que ouvi foi
    Duke Ellignton com Stephane Grapelli em Violin Sessions. Como puderam gravar um disco tão bem naquela época?
    Soa deliciosamente real hoje em CD. O que mostra claramente o quanto uma gravação bem feita é
    essencial.

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