Como destruir um bom filme alterando a fotografia original

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Eu estava em uma daqueles fins de tarde entrando no cinema para assistir “Dracula”, em glorioso 70 mm, um filme dirigido pela já veterano John Badham, diretor que iria fazer depois “Jogos de Guerra” e “Blue Thunder”, dois filmes claramente anti-establishment, aqui igualmente exibidos em 70 mm.

O diretor havia feito e adquirido fama com a fantasia discotecária “Os Embalos de Sábado à Noite”, que tanto fez a alegria da comunidade gay da época, por conta do personagem Tony Manero.

Mas, Badham se redimiu com “Dracula”. O projeto original veio de uma peça onde o ator Frank Langella resolvera criar um personagem sem traços demoníacos, e com forte apelo sexual.

A ideia por trás da criação foi misturar horror com luxúria. No filme, Langella aparece ora sedutor ora com olhar introspectivo, à procura da vítima perfeita. A sua sexualidade não é explícita, não há nenhuma cena que pudesse sugerir que Dracula estivesse copulando, embora estando na cama com a mulher que hipnotizara.

Foi uma mudança acertada, a meu ver, para evitar desviar a atenção do ponto principal da estória, que é a retirada de sangue (e de vida) da mulher seduzida.

A estória original torna também implícita a crítica de que Dracula, sendo da nobreza, é na verdade um tremendo “sanguessuga” do esforço dos outros que não pertencem à sua casta. Ou seja, Drácula de nobre não tem nada, ele é um parasita contumaz da população que lhe serve, destrói vidas alheias com promessas de grandeza que ele sabe que não poderá nem terá intenção de cumprir.

Esta base da estória contida no livro no qual os filmes e peças se baseiam tem apoio na repulsa à monarquia que dominou a Europa durante séculos, e que trouxe muito mais guerra, repressão e disputa de territórios do que paz e irmandade entre os povos que habitam o continente.

 

O Dracula de Langella é elegante, culto e autoconfiante. A narrativa do filme só trará elementos de uma estória de terror lá pelo fim do script.

Em entrevista recente, feita para a edição em DVD, Langella afirma que fez de tudo para se distanciar do personagem estigmatizado, criado e tido como referência até então pelo carismático Bela Lugosi, na década de 1930.

Lugosi, segundo contavam os mais velhos da minha época de menino, teria deixado muita gente passando mal dentro dos cinemas. Eu acredito, mas pessoalmente acho muito mais aterrorizante até hoje o filme mudo “Nosferatu”, uma joia expressionista do cineasta alemão F. W. Murnau, e exibido em cinemas de arte na minha adolescência como filme “cult”, que de fato o era.

Coisas daquela época

No final da década de 1970 muitas salas de cinema começaram a entrar em plena decadência. Durante a tarde era raro ver uma delas com público em bom número. Eu assisti “Dracula” no cinema Tijuca, que era equipado com dois projetores Incol 70/35 e mais um outro de 35 mm, para exibição de trailers e do jornal da tela.

Com o cinema vazio, era possível ouvir o falatório dos operadores lá em baixo na plateia. Não sei por qual motivo, eles não gostavam de rodar a abertura de filmes do tipo “roadshow”, contendo somente a trilha sonora.

Tradicionalmente, e com raras exceções, a Abertura só tinha música. Neste momento, os cinemas acendiam parte das luzes e fechavam as cortinas. Mas, como os operadores optavam por não fazer parte daquilo, eles rodavam a abertura enquanto o jornal ou trailer estavam sendo exibidos. E como não desligavam o áudio da película de 70 mm, a gente ouvia tudo!

Por causa disso, “Dracula” começava já na cena da tempestade, porque ao rodar a Abertura antes da hora eles passaram do início do filme. Na hora de fazer a troca para o projetor de 70, um operador gritava para o outro “Vai!…” e o projetor de 70 mm voltava a rodar. E esses erros propositais ficam na memória da gente para o resto da vida.

Mas, o pior não é nem isso. “Dracula” foi um daqueles filmes que hoje sabemos foi rodado em 35 mm e ampliado para 70 mm somente para exibição. Este processo de conversão valorizava qualquer filme, som e imagem. E no caso com o magnífico trabalho de câmera do diretor de fotografia inglês Gilbert Taylor. Infelizmente, o esforço de Gilbert não foi respeitado.

Lambanças no DVD

Cogitou-se naquela época que o diretor John Badham não teria concordado com o método fotográfico de Gilbert, mas este fora apoiado pelo estúdio. Se isto é verdade ou não, quando o DVD foi lançado, Badham resolveu dessaturar a crominância da fotografia original, até o fotograma chegar perigosamente próximo do preto e branco.

Até perto de algumas cenas do final, onde a tonalidade avermelhada ainda é mantida em um nível razoável, o resto mostra atores e cenários dominados por uma cor pálida constrangedora.

E quando a edição em Blu-Ray foi lançada anos atrás, fãs do filme acenderam as esperanças de que o diretor mudasse de ideia. Lamentavelmente, tudo em vão, e ficou por isso mesmo!

Apreciação

Filmar com fotogramas coloridos próximos do tom monocromático não é o problema. O processo, com inúmeras variantes de saturação, tem sido usado por cineastas renomados. A gente vê isso inclusive nos projetos feitos hoje com câmera digital.

O problema mesmo é a destruição da excelência do trabalho fotográfico de “Dracula”, feita por Gilbert. Quem teve chance de ver o filme no cinema consegue medir a extensão do desastre provocado pela decisão equivocada de John Badham. Portanto, eu concordo ipsis litteris e endosso todas as reclamações até agora publicadas.

Podiam pelo menos manter a versão original e a modificada. Se tivessem feito assim, os fãs iriam optar pela original, e me arrisco a dizer, jamais veriam a versão deturpada.

O tema Drácula é um dos que mais tem tido repetições ad nauseam e com variações as mais absurdas. O uso repetitivo de algum assunto pode até ser um bom veículo para a formulação de novas ideias, mas infelizmente não tem sido este o caso da maioria das produções. Talvez uma honrosa exceção seja a dos filmes da franquia “Underworld”, mas aqui realizados com outro objetivo, que não inclui terror.

Não sou eu que vou dizer aos produtores para parar de produzir lixo. Ou para diretores para não mexer no que já deu certo. Mas, enquanto houver liberdade de crítica, eu estarei aqui para defender o que eu acho justo. E acredito que o leitor fará o mesmo! [Webinsider]

. . . . .

Leia também:

http://br74.teste.website/~webins22/2017/01/06/no-esplendor-do-70-mm/

http://br74.teste.website/~webins22/2016/12/21/esta-dificil-ir-ao-cinema-e-nao-e-por-causa-da-idade/

http://br74.teste.website/~webins22/2016/12/31/tudo-sobre-o-dolby-atmos-o-som-3d-em-um-so-filme/

Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.

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4 respostas

  1. Outro ótimo artigo! Vc tocou no ponto crucial quando falou em apresentar as duas versões. Acho válido que no lançamento em BD ou DVD o diretor queria fazer algum ajuste de corte ou outra coisa qualquer que lhe tenha sido tolhido pelo estúdio ou que tenha mudado de ideia. Mas acho muita sacanagem privar o espectador/fã de ter acesso ao produto original. Seria tão simples disponibilizar as duas versões e o aficionado, que afinal pagou pra ter o produto em casa, poder escolher como quer assistir e/ou eventualmente assistir as duas para formular ou rever a sua opinião sobre qual sua versão favorita.

    1. Fábio, o pior é quando os caras lançam outra edição, nos obrigando a pagar pelas correções de erros das edições anteriores, e eu fui um que já fiz isso várias vezes, para manter a minha coleção como cinéfilo hígida.

      Dias atrás, anunciaram a pré-venda de The Hindenburg, filme do Robert Wise. A edição em DVD original é um desastre, feita em letterbox 4:3, artefatos de compressão e redução de ruído, que tornam a visualização insuportável. Tanto assim que no forum do site Blu-Ray todo mundo pergunta se toda aquela lambança tinha sido corrigida. Uma delas eu já sei que não foi: a trilha nova é DTS HD MA 2.0, e não 5.1, como seria de se esperar de um filme preparado para exibição em 70 mm e 6 canais de áudio magnético.

  2. Boa tarde, Paulo. Vi Drácula em 70mm no extinto Cine Comodoro em S.Paulo. Já postei aqui que naquela sala assisti a muitos espetáculos que não me saem da memória. Não sei a razão, no entanto, desde garotão, hoje com 71, tive predileção pelo vampiro famoso. Lembro-me de “O Vampiro da Noite – Horror of Drácula” creio que de 1959 e mais recentemente “Drácula de Brahm Stocker”.
    Enfim, o filão projetou Christopher Lee falecido há pouco.
    Abraço.

    1. Oi, Celso,

      É verdade. E como a gente que conseguiu ver essas projeções em 70 mm fica difícil agora esquecer como eram.

      Este papel de Dracula dos atores Peter Cushing e Christopher Lee os deixaram estigmatizados por anos. Dois grandes atores, que só deixaram chance de mostrar suas qualidades já no fim da vida.

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