Muito se fala sobre os desvios “maléficos” da propaganda. Alguns lançam mão de argumentos demagógicos; outros, nem tanto. Mas quaisquer que sejam eles, a simples evocação do tema desperta acaloradas discussões que terminam sempre soçobrando nos poderes públicos e nas instituições representativas da sociedade.
A equação é sempre, na base, muito simples e – por que não dizer? – simplista. Se a propaganda tem por missão informar, estimular e despertar o consumo, ela é maléfica, quando este consumo pode ter conseqüências no comportamento das pessoas.
Portanto, propaganda de mamadeira é ruim, porque estimula o consumo deste produto que pode prejudicar a amamentação materna. A propaganda de bebida alcoólica é ruim, porque estimula o consumo deste produto que, por uma associação aparentemente estatística, impulsiona a violência. A propaganda de cigarro é ruim, porque estimula o consumo deste produto que, por um argumento falacioso, onera os gastos públicos com saúde.
Esses são alguns dos argumentos. Mas existem muitos outros. O caso é que a bola–de–neve cresce com tamanha velocidade, que em pouco tempo ouviremos dizer que propaganda de carro é ruim, porque provoca acidentes de trânsito; propaganda de sabonete é ruim para a pele; propaganda de camisinha é ruim, porque desestimula o investimento em pesquisa de cura de doenças sexualmente transmissíveis. Propaganda de livro é ruim para a vista; de aparelhos de som, para os ouvidos; de esteiras ergométricas, para os joelhos.
Mas, cinismos à parte, pouco importam os argumentos, porque eles sempre haverão de pressupor uma determinada visão da missão do Estado e dos órgãos que representam a sociedade. Nesse caso, a discussão fica para os juristas.
A questão que ora queremos levantar não é – nem nunca foi – o papel do Estado em discutir e regulamentar essas questões. O que interessa aqui é refletir sobre as proibições de propaganda que estão na pauta do dia. Associar a propaganda à violência, no caso da bebida alcoólica, por exemplo, é perigoso e errado. Existem outras formas muito mais eficientes de se quebrar a cadeia “bebida alcoólica X violência”. O Ministro da Secretaria de Direitos Humanos Nilmário Miranda deu a letra em uma recente entrevista: “Na periferia, o grande lazer é o boteco, a cachaça, onde a maioria das mortes ocorre de sexta–feira à noite a domingo à tarde. Juntando cachaça com armas e a falta de opção e lazer e outras atividades comunitárias, por exemplo, tem–se a receita da violência. Diadema, em São Paulo, tinha um dos maiores índices de morte por 100 mil habitantes do mundo. Bastou uma lei seca fechando os botecos à meia–noite de sexta a domingo e o número de mortes caiu pela metade.” (Revista IstoÉ nº 1754, de 14/05/03)
O que muitos esquecem ou não sabem, no entanto, é que a propaganda é, para todos os efeitos, uma espécie de “trato democrático”. Assim como numa democracia existem três poderes instituídos e devidamente independentes, podemos dizer que existem dois outros “poderes” não menos fortes e democráticos. Falo evidentemente da Imprensa e do Poder Econômico.
Desde que o sistema capitalista amadureceu e se consolidou como a única alternativa prática para a sustentação de um regime democrático, uma espécie de “trato democrático” estabeleceu–se entre eles. Cabe à imprensa informar e cabe ao poder econômico gerar riqueza. E entre os dois, o trato foi o seguinte: “Fique na sua, que fico na minha”. Mas como fazer para que um não interfira no outro? Como resolver a enorme tentação que consiste em o poder econômico influenciar a imprensa ou, melhor dizendo, a imprensa trabalhar a serviço do poder econômico?
O trato se chama “propaganda” e funciona através de uma separação tácita, clara e transparente entre os dois “conteúdos”. Uma separação entre o que chamamos de “conteúdo jornalístico” e o “conteúdo publicitário”. Para ser mais simples, chamemos essa separação de “plim–plim”. Quando o “plim–plim” entra, o público sabe que, daí para frente, ele é consumidor. Quando o “plim–plim” encerra o bloco, o público sabe que, daí para frente, ele é telespectador. Ou será que alguém ainda tem dúvidas de que as pessoas, todas elas, das mais simples às mais sofisticadas, sabem que existe essa diferença?
Mas para azeitar ainda mais a mecânica, o “trato” vai mais longe. A imprensa é tanto mais independente quanto maior for a sua capacidade financeira de sê–lo. E quem financia essa independência? A propaganda, claro. Assim, o poder econômico paga a imprensa para, separando seus conteúdos, veicular os seus, em meio aos dela.
Isso para não falar que esses dois poderes se dão tão bem, que eles ainda inventaram um “Código de Auto–Regulamentação”, que coroa essa relação de convivência pacífica e independente. O Conar é constituído por representantes dos órgãos de comunicação, dos anunciantes e das agências de propaganda e delibera sobre qualquer denúncia, de qualquer natureza e enviada por qualquer pessoa ou instituição que se considere lesada por um conteúdo publicitário. As decisões do Conar são inapeláveis e de uma competência ímpar. O conteúdo publicitário julgado inapropriado pelo Conar é imediatamente retirado do ar.
É inacreditável como isso funciona. Tomara Deus que o poder público tivesse a velocidade e a eficiência do Conar. Tomara que ainda funcione por muito tempo. Tomara que o poder público democraticamente constituído olhe um pouco para o que já existe e funciona em vez de querer interferir sem sugerir alternativas. Tomara que eles reflitam antes sobre as conseqüências correlatas e graves que uma interferência excessivamente “reguladora” pode trazer.
Caso contrário, existem alternativas, claro.
Existe a alternativa de o público pagar pela informação, ou a de o Estado financiar os veículos de comunicação. Mas também podemos imaginar uma sociedade sem consumo. Uma sociedade comunitária. Uma comunidade de silvícolas auto–suficientes.
Tudo é possível.
É possível que nossos doutos representantes resolvam interferir numa azeitada relação que está no cerne mesmo da nossa sociedade capitalista e democrática. [Webinsider]
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Texto publicado no Meio & Mensagem.