Todo ano é a mesma coisa: grande parte dos alunos matriculados em cursos superiores de tecnologia ou no bacharelado apresenta problemas na interpretação de textos.
A situação é terrível e desanimadora: em um simples texto de três linhas não se consegue identificar o que é dado e o que está sendo pedido.
Logo que comecei a lecionar não acreditava no que estava acontecendo. Afinal, a palavra estava lá escrita, clara e imutável, e as orações continham todos os elementos essenciais na ordem correta: sujeitos, verbos e predicados.
Em princípio pensei em duas hipóteses: ou era implicância dos alunos com a minha pessoa, ou os textos apresentados eram herméticos demais, sobretudo para turmas de primeiro ano.
O universo de alunos a que me refiro é composto em grande parte por jovens recém saídos do ensino médio, com idade entre 17 e 21 anos, e por uma parcela um pouco menor que tem entre 22 e 29 anos. Não é raro turmas com alunos já na faixa dos 30 ou 40 anos — e neste pequeno grupo o desempenho interpretativo é um pouco melhor, mas ainda assim segue abaixo do esperado.
Tem que entender o texto
O estudante que obtém diploma em um curso superior de tecnologia precisa, entre outras habilidades e competências, saber criar soluções adequadas aos inúmeros problemas inerentes à sua atividade profissional.
Para que esse processo ocorra satisfatoriamente, ele precisa primeiro entender o problema que quase sempre vem documentado na forma escrita. Precisa extrair as informações de que necessita e refletir sobre os caminhos que o levarão à solução.
A ditadura
Como docente, nunca havia questionado a origem desta dificuldade, até o dia em que li a entrevista do psicólogo Carlos Perktold (1) que trata justamente da dificuldade da geração pós 1964 em entender o que lê. Segundo o artigo, este fenômeno não ocorre exclusivamente na população com baixa escolaridade, não é catalogável como doença e nem é uma característica de pessoas com déficit intelectual; é sim um fenômeno intelectual de toda uma geração.
O argumento principal dado na entrevista é que após o golpe militar de 1964 houve uma castração cultural e política da geração nascida após esse período, capaz de causar um desestímulo ao hábito da leitura e por conseqüência prejudicar a capacidade crítica.
Disciplinas como Filosofia e Sociologia foram retiradas do currículo do antigo ensino clássico, atual ensino médio, porque o regime não estaria interessado na formação de pessoas capazes de analisar idéias, refletir sobre os conceitos sociais e atuar politicamente.
A televisão
Foi também a partir desse período, com o barateamento dos aparelhos, que a televisão ampliou sua participação dentro da população brasileira. O processo de expansão, que resultou na televisão como meio de comunicação de massa, se estendeu pelas décadas seguintes, com as transmissões via satélite, a melhoria da qualidade técnica e de conteúdo e a maior variedade de programas.
Desta forma, os recursos audiovisuais tomaram o lugar do texto escrito e surge então uma geração que entende o que ouve, mas não o que lê. Pode-se argumentar que o rádio também poderia ter o mesmo efeito que a televisão, mas segundo Perktold, o rádio pelo fato de não carregar a imagem, estimula o ouvinte a imaginar, fantasiar e pensar.
O que o docente pode fazer?
Então como contornar o problema? Infelizmente não é possível reverter o cenário em apenas um semestre, sobretudo pelo esforço de apenas um professor. É preciso lembrar que os educandos se submeteram, ano após ano, à mesma rotina de exposição exagerada à televisão e ausência de (boa) leitura e cultura em geral. Tentar obrigá-los a engolir textos e mais textos e a formar uma opinião crítica pode ser uma violência, com todas as suas consequências.
O que costumo fazer é explicar o mesmo exercício várias vezes, sob vários ângulos, fazer comparações e criar metáforas e analogias que tenham a ver com o universo concreto deles.
Muitas vezes dou sugestões de leitura online e off-line, indico bibliotecas públicas e também estimulo visitas a eventos culturais gratuitos, pois uma grande parte dos alunos é financeiramente carente e depende de bolsa de estudos.
Outra solução adotada é criar pequenos enunciados matemáticos com o objetivo específico de treiná-los na identificação do que é dado, e do que é pedido.
Algo bem simples, como por exemplo:
?Dada a equação z = x + y. Sabendo que x vale 4 e y vale 7, quanto vale z??.
A internet
Falando um pouco do presente, com vistas ao futuro, está em curso uma mudança importante: o surgimento da mídia digital que gradativamente vem tomando o espaço da televisão.
A sua principal característica é a descentralização da audiência e a produção de mídia para públicos específicos. Com essa mudança de modelo em curso, seria interessante observar como a geração nascida durante a revolução tecnológica irá aprender e se comportar criticamente nesse meio, que oferece um número gigantesco de opções a respeito do que se quer ver, ler ou ouvir. [Webinsider]
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Referência bibliográfica
(1) PERKTOLD, C. Assisto, logo existo. Revista Carta Capital, 7jul. 2004, n. 298, p.28-29.
19 respostas
De tempos em tempos se levanta a questão sobre ensinar ou não Filosofia no 2o. grau. Discute-se, discute-se e acaba-se desistindo. Sou favorável a que se ensine, mas não da forma tradicional, citando-se Sócrates, Aristóteles, Platão, etc. Deve-se ensinar a separar o Real do Aparente, do Imaginário, da Crença, etc. Ou seja, desenvolver no aluno o ESPÍRITO CRÍTICO.
Achei o texto muito interessante, pois relata a importancia da tecnologia na educação.
Porém observando que nem sempre essa realidade pode ser usufruída por todos pois muitos jovens ainda não possuem o acesso.
Tendo em vista que há ainda mudanças para serem ocorridas facilitando a interpretação.
O modelo de ensino no Brasil ainda é obsoleto em várias características, mais agora com a força da internet e toda essa possibilidade de flexibilidade para complementar uma informação, já está mais que na hora do ensino se adequar a esta tendência e buscar nela, novos meios de atiçar o aluno a ir além do horizonte.
Ótimo artigo Sthefan, parabéns!
Ai, escrevi errado…
é Stheeeeffffaaaannn…. sorry!
Olá!
Será que eu posso dizer que sou aluna do Stephan? Mas minha média foi boa hein… e além de ler, adoro escrever… rs!
Ótimo artigo mesmo! Estou escrevendo um para meu site que fala do mesmo problema de interpretação, só que nas empresas. Todo mundo já passou pela situação de, por exemplo, enviar um e-mail ao chefe ou ao colega de trabalho e, cinco minutos depois, a pessoa vem te questionar sobre o assunto mesmo após ter lido o e-mail. Quem já assistiu ao filme Como Enlouquecer seu Chefe, sabe do que estou falando (um ótimo filme, por sinal).
Parabéns, Stephan!
Esse artigo deveria ser usado em todas as escolas, como um parâmetro a ser seguido, já que as escolas estão mesmo, um tanto perdidas!!!
Parabéns, Sthefan, você sabe o quanto eu admiro esse tipo de iniciativa!
Acho que o inglesismo de nosso vocabulário tem contribuído enormemente para a depreciação de nossa língua, juntamente a isso, a preocupação excessiva dos professores em ensinar a formação estrutural de uma frase ao invés de simplesmente uma clara leitura, interpretação e formação de frases coesas e com sentido. Quem entra numa área técnica não quer saber do Predicado verbas ou do Adjunto adnominal de modo, e nem por isso significa que a pessoa não sabe ler nem interpretar a frase. Acho que temos que ter uma reforma geral no ensino da Língua Portuguesa.
Ótimo textox
Felizmente, alguns docentes se preocupam e contribuem ao refletir, sugerir e aplicar possíveis formas de transformação deste quadro.
Parabéns, Sr. Berwanger!
Concordo com o problema apresentado no artigo. Realmente o nível intelectual do brasileiro está despencando a níveis ridículos.
Mas não concordo com essa história da ditadura. Isso, na minha opinião, é papo-furado.
O que eu acredito é que a cada dia que passa fica mais fácil chegar a um curso superior. A proliferação de faculdades de esquina foi determinante na queda da qualidade do ensino.
Com isso, os alunos podem se preparar menos e consequentemente entrar em uma faculdade mais fraca e consequantemente aprender menos e assim por diante, e diante, e diante.
Falta ensino de qualidade nesse país. E isso só será possível com dirigentes que se identifiquem com o saber, com a cultura, com a escola, coisa que não acontece atualmente e pelo visto não vai acontecer por mais 4 anos.
Marcelo
Este é um problema é grave e ao mercado de trabalho pode causar grandes confusões, perda de tempo, dinheiro, etc.
Já vi muitas cenas de pessoas que não conseguem entender uma informação ou não conseguem se fazer entender ao tentar passar uma idéia:
– Secretárias que não entendem um recado e acabam o passando incorretamente.
– Profissional de atendimento que não consegue entender um briefing, as necessidades do cliente ou que não conseguem redigir um briefing fácil de entender.
– E-mails escritos sem um ordem lógica de idéias, como se fossem um monte de idéias jogadas. Dá a impressão que a pessoa escreveu tudo o que lhe veio imediatamente à cabeça, sem pensar no que escreveu.
O fato dos estudantes não conseguirem entender o enunciado é gravíssimo, principalmente quando esses estudantes chegam ao mercado de trabalho.
Concordo com o Luigui. Acho que uma das causas é o modelo de ensino baseado em imediatismo e em cumprimento de etapas. Quando é demandada reflexão, o aluno costuma se perder um pouco. Mas a gente é brasileiro, né? Não desistimos nunca!
Na minha opinião um dos fatores que contribuem para a situação mencionada no texto é que grande parte dos alunos não precisa mais se esforçar para chegar ao ensino superior, por exemplo. Onde trabalho, chegamos a conclusão de que os alunos não se saiam melhor no Provão (na época) em virtude de não entenderem o enunciado das questões.
Muitos dos alunos hoje está em um faculdade (que é onde estou mais acostumado) por imposição da familia e com isso a motivação e o estimulo pela busca do conhecimento fica prejudicada. Digo isso porque muitas vezes, vejo alunos com grandes deficiências de formação (ensino fundamental e médio) e que se saem muito bem na faculdade em razão da determinação e do desejo de obter o conhecimento.
Parabens pelo artigo!
humm….nao entedi….
Sthefan,
Parabéns pela excelente matéria!
Também leciono para pessoas na faixa dos 17 a 21 anos e percebo a grande dificuldade deles em compreender o que um determinado exercício está pedindo.
Acredito que grande parte desse problema vem do sistema de educação vigente, onde se convencionou não repetir os alunos para que eles não se sintam desestimulados a permanecer na escola.
Com isso todos os anos recebemos milhares de formados que não tem nada para oferecer ao mercado a não ser um diploma que não certifica nada.
Bem que meu professor do técnico me dizia… A resposta está no enunciado – Claudio Barão
Ah! Recomendo MUITO esta leitura que um outro comentarista já postou aqui no WebInsider, sobre um novo modelo de educação on demand. 🙂
http://positivesharing.com/2006/05/a-new-school-school/
Perfeito!
Estava procurando algo sobre interpretação e, principalmente, reflexão de texto. Estou com 26 anos e fazendo meu primeiro curso universitário, após algum tempo de terapia que me fez acordar pro mundo à minha volta e perceber os valores e as imposições que a mídia e o mercado jogavam na minha cabeça sem que eu pedisse. Está sendo complicado, porque nasceu em mim um espírito revolucionário com vontade de fazer todos acordarem também.
Pensando nisso, percebi que a interpretação e reflexão sobre os textos é importantissimo. Com a leitura instrumental, sobretudo em áreas técnicas, as pessoas pescam meia dúzia de palavras e saem arrotando o conceito que conseguiram absorver, sem ler novamente, refletir ou aprofundar o assunto, tornando as mesmas preguiçosas ou dando a elas a sensação de que a missão foi cumprida mas só na aparência.
Muito bom artigo. Fundamental, ainda mais para que possamos começar a criar uma opinião crítica sobre o que vemos e consumimos.
Ótimo artigo, muito obrigado pela informação.Valeu!!!
Há tantas implicações que contribuem para a letargia que envolve não só os estudantes, bem como, o resto da população. Contudo, ao meu ver, o maior limitador do conhecimento é não ter o desejo de adquiri-lo. Mas isso é uma opção pessoal. Então, em se tratando de massificação do ensino, as falhas do sistema adotado agravará o quadro dos desinteressados. Pois, tais alunos, citados no artigo de Sthefan, são, por analogia, como os eleitores brasileiros: têm o direito, porém são obrigados a votarem. A maioria dos estudantes, ao que me parece, abririam mão dos estudos se não fossem obrigados, socialmente falando, a isso.
Coincidentemente, li uma entrevista que serve como parâmetro entre aluno versus sistema de ensino, a seguir o link: http://revistaescola.abril.com.br/edicoes/0196/aberto/mt_169929.shtml
Tenho certeza que contribuirá com este tema.