Filmes em VistaVision, a grande maioria em processo de restauração ou preservação, podem formar a base de referência fotográfica, para a avaliação de qualquer tela que seja usada para a exibição de home vídeo, particularmente aquelas com capacidade de alta resolução ou definição.
Na década de 1950, enquanto estúdios como a Fox ou a Warner procuravam respostas para a inovação cinematográfica em fotografia anamórfica e telas super largas, a Paramount Pictures caminhou em direção oposta, criando um processo “widescreen”, porém sem sacrificar a área fotográfica do filme 35 mm, com distorções óticas de qualquer natureza.
Na época em que os cinemas começaram a instalar telas panorâmicas, o filme tradicionalmente fotografado na relação de aspecto chamada de “academy ratio” (1.375:1) teve que ser cortado na janela do projetor para formatos como 1.66:1 ou até 1.85:1.
Foi a partir daí que os executivos e técnicos da Paramount começaram a desenvolver a idéia da fotografia widescreen plana (conceito, aliás, usado até hoje nas telas 16:9 de TV), com a vantagem precípua de poder usar lentes esféricas de altíssima resolução e capazes de uma profundidade de foco admirável.
Para conseguir isso, foi preciso fazer uma mudança radical no processo de filmagem, de maneira a aproveitar o máximo de área fotográfica possível no filme 35 mm.
Nas câmeras e projetores convencionais, o filme roda verticalmente de cima para baixo, limitando a área de exposição para quatro perfurações. No processo fotográfico da Paramount, o filme roda horizontalmente, o que permite o uso de uma área equivalente a oito perfurações, ou seja, 2.66 vezes maior que o negativo 35 mm convencional:
O processo foi chamado de “VistaVision”. As primeiras câmeras foram construídas com lentes Leica de altíssima qualidade, e podiam tanto servir para áreas de exposição e posteriormente de exibição que variam entre 1.85:1 e 1.66:1, e também 2.1:1, 1.75:1 ou 1.77:1, que é a atual área 16:9 das telas de televisão. Mais importante ainda, é que a projeção VistaVision com o projetor rodando o filme lateralmente, era capaz de permitir o uso de telas com enorme altura e área de exposição.
O VistaVision é um processo fotográfico tão apurado, que a própria Paramount o batizou de ?alta fidelidade em filme de cinema?, como mostram os seus logotipos de apresentação:
O que bloqueou o uso extenso do VistaVision pela Paramount e outros estúdios foi o alto custo de produção. Além disso, projetores VistaVision foram instalados em poucos cinemas e apresentaram problemas de manutenção que desanimaram os exibidores. No Brasil, pelo menos, eu não me lembro de ter visto ou de ter sabido de nenhum em operação. Com o abandono desses projetores, a Paramount optou por transferir o negativo VistaVision para filme 35 mm convencional, que foi a maneira como os filmes foram distribuídos e exibidos mundialmente.
As produções em VistaVision tiveram, por isso mesmo, uma curta duração, mas o processo foi ainda usado por vários estúdios no mundo inteiro. Em 1975, o processo foi ressuscitado, quando a Lucasfilm e a Industrial Light and Magic modificaram antigas câmeras VistaVision para fotografar efeitos especiais no filme Star Wars, lançado em 1977. Até hoje, este tipo de fotografia pode ser visto em efeitos especiais de filmes como Forrest Gump, The Mummy e muitos outros.
O legado histórico e a preservação dos negativos
O conceito do aumento da área fotográfica no filme 35 mm foi posteriormente usado em processos como o Super 35 (“The Abyss”, “Titanic”, e outros), com excelentes resultados. No entanto, o legado artístico, deixado por vários cineastas, que inovaram em linguagem e processos de filmagem, com foi o caso de Alfred Hitchcock e John Ford, fez com que o movimento preservacionista dos estúdios tomasse as rédeas da recuperação dos filmes em VistaVision.
Como o processo em si do VistaVision é ao mesmo tempo eclético, versátil e de alta performance, em alguns casos os preservacionistas optaram pela criação de um novo negativo em 65 mm, como foi o caso de “Vertigo”, de Alfred Hitchcock (no Brasil, “Um Corpo Que Cai”). Com isso, a integridade fotográfica é mantida intacta, sem a necessidade de um negativo correndo lateralmente na câmera ou no duplicador.
Transferência do original VistaVision de Vertigo para negativo de preservação e positivo de duplicação de 65 mm.
A exposição ao VistaVision é muitíssimo melhor percebida em alta definição
Verdade seja dita, filmes VistaVision restaurados conseguem apresentar uma bela imagem em DVD, mas é somente na versão em alta definição que é possível dimensionar o alto grau de sofisticação alcançado. E, por causa disso, é preciso alertar o leitor de que este é um dos melhores, senão o melhor, dos modos de conseguir uma referência de reprodução de imagem, que nos permita julgar melhor as qualidades intrínsecas dos displays modernos.
E em função deste alerta, eu vou me permitir tomar a liberdade de sugerir uma edição VistaVision em Blu-Ray prontamente disponível: é a do filme “The Searchers” (no Brasil, ?Rastros de Ódio?), dirigido por John Ford, e lançado em 1956, pela Warner Brothers.
O filme de Ford tem características próprias, que o distinguem de outras produções VistaVision, entre elas a profundidade de foco, tanto de cenas em interior, quanto de exteriores, no local chamado de Monument Valley, nos Estados Unidos.
A obra de John Ford, a restauração e a polêmica
John Ford, para quem não conhece, foi um dos cineastas mais influentes da história do cinema americano. Sua prosa e a sua capacidade de narrativa visual, com o uso de uma câmera de cinema, raramente encontram paralelo em outros cineastas do mesmo calibre. Ford, norte-americano de origem irlandesa, dirigiu um número admirável de filmes, tendo o oeste americano como fonte de inspiração para um formidável estudo da interação entre o homem e a terra. Praticamente todos os seus filmes abordam assuntos de ordem social, paroquiais ou não, e quase sempre com uma forte mensagem moralista ou religiosa, sem jamais atingir um nível de pieguice ou mau gosto estético.
A narrativa dos filmes de Ford incorpora a visão singular do cineasta na composição da cena, no enquadramento e na montagem dos planos. Nos seus filmes, a movimentação da câmera (travelling) é quase nula, mas nem por isso eles são despojados de dinâmica exemplar. Paradoxalmente, são em cenas onde a câmera se movimenta que a dramatização da cena aumenta significativamente. E isto se pode ver claramente em The Searchers.
Ford sabia como ninguém misturar o drama com a comédia. Adepto de poucos diálogos, e ferrenho defensor da mensagem visual, ele contou com roteiristas, diretores de fotografia, assistentes e atores capazes de compreender as suas intenções dentro do set de filmagem. Ford adorava filmar ao ar livre, e nunca se preocupava com as condições de iluminação do local de filmagem. Apesar disso, o impacto visual das imagens de seus filmes é de fato impressionante.
No caso específico da preservação de The Searchers, o negativo VistaVision se deteriorou a ponto de tornar a produção de uma cópia nova quase que impossível, não importa que método fosse usado. Foi então que o time de restauradores da Warner lançou mão das cópias monocromáticas de segurança, chamadas de ?separation masters?, produzidas à época do filme.
A passagem dessas masters para uma cópia em vídeo gerou polêmicas entre críticos, cinéfilos e entusiastas. A principal discussão foi devida à necessidade de ajustar as masters monocromáticas de separação em colorido consistente com a cópia originalmente exibida no cinema. De fato, esta tarefa é muito difícil, sem ter uma cópia de exibição que permitisse pelo menos uma comparação do registro das cores, e como esta cópia não estava disponível, muito desse trabalho foi feito com parâmetros emprestados de outras cópias de filmes em Technicolor.
Muita gente pensou que, por se tratar de um filme em Technicolor, certos tons de cores e o grau de saturação das mesmas devesse seguir o aspecto do antigo Technicolor de 3 negativos. Quer dizer, exigiram um azul mais saturado, um tom vermelho nos créditos, em lugar do marrom, e assim por diante. Porém, The Searchers foi rodado com Technicolor em negativo Eastman de um só filme, em vez de três.
Inconformados, os críticos tomaram como referência uma cópia anterior em vídeo, com azul do céu muito mais saturado, mas ficou provado que, ao mesmo tempo em que se aumentava a saturação do azul, outras cores passavam a ficar totalmente distorcidas em registro.
Esta polêmica começou muito tempo atrás, e ainda foi reavivada em 2007, quando a edição em DVD do filme foi lançada no mercado. Deixando a polêmica de lado, basta dizer que, ao olhar a edição em Blu-Ray quaisquer dúvidas sobre a recuperação do filme caíram por terra, diante da beleza e da fidelidade da imagem. O disco foi masterizado em mídia de 50 Gbytes, de modo a garantir que nem a compressão do material gravado pudesse impedir a qualidade final do trabalho de recuperação e de exibição em telas de alta resolução.
A percepção da beleza é intrínseca a fatores sociais ou psicológicos de cada um
Existem estímulos sensoriais que excitam o ser humano de uma maneira muito específica. A mesma base fisiológica e hormonal que permite estudar as condições de estresse como doença serve, de certa maneira, para compreender também porque uma pessoa reage sensorialmente perante a beleza ou à ausência dela.
Em muitos casos, esta reação é inata. E para pessoas assim, nem é preciso explicar os motivos pelos quais as emoções tomam conta da razão, diante de estímulos desta natureza. A pessoa simplesmente é sensível ao estímulo, seja visual, seja auditivo, ou ambos.
Existe uma quantidade absurda de estímulos visuais e auditivos no cinema, particularmente no cinema feito por grandes cineastas. Mas, nem sempre estes estímulos são prontamente compreendidos ou incorporados, porque freqüentemente a experiência de vida do indivíduo determina o momento certo para que uma reação emocional deste tipo ocorra.
Isto também explica porque pessoas revisitam filmes e os compreendem melhor, ou notam coisas nunca antes percebidas, com o passar da idade.
No caso do cinema, a única forma de re-assistir um filme seria através da sua cópia em vídeo, e isto justifica a construção de uma coleção de filmes em casa, assistidos de tempos em tempos.
Finalmente, John Ford: seus filmes, como de muitos outros cineastas deste nível, são ricos em mensagens subjacentes. No caso, as mensagens são visuais, muito mais do que pelos diálogos.
Análises precipitadas de suas obras podem induzir erros grosseiros de interpretação. The Searchers, por exemplo, foi um dia considerado um filme racista, por causa do ódio do personagem principal, interpretado por John Wayne. Ford fala, na realidade, dos espíritos que não se desarmam, das conseqüências de atitudes sem equilíbrio, sem um pingo de racionalidade, e como isso pode ser revertido por qualquer um. A pista para esta mensagem está na última cena do filme, quando o personagem resgata e salva a adolescente que ele teria desejado matar, por ter sido educada por índios.
The Searchers não é o melhor filme de Ford, mas ele espelha e demonstra as qualidades do cineasta. Visualmente, esteticamente, e na sua narrativa, não há nada que precisasse acrescentar. Para nós, é uma chance de revisitá-lo, com a possibilidade de tomá-lo como referência visual, tanto de cinema quanto de um home theater de qualidade. [Webinsider]
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.
11 respostas
Pois é, Fábio, eu também estudei John Ford há décadas atrás e até hoje me fascina a maneira como ele realizava seus filmes.
Em um documentário da BBC, feito pelo revolucionário cineasta Lindsay Anderson, amigo de Ford, um de seus colaboradores disse que várias vezes enchia o saco do cineasta falando para ele movimentar a câmera, ao invés de deixá-la o tempo todo com planos longos e parada. E aí Ford dizia: meta-se com a sua vida.
E é assim em Rastros de Ódio, planos longos e câmera estática. E no entanto uma construção de linguagem invejável, toque de gênio mesmo!
Paulo, obrigado pela resposta. Eu já tinha visto diversos filmes do J. Ford, mas casualmente esse ainda não. Aproveitei pra conhecer fazem umas poucas semanas, em uma sessão daquele projeto Clássicos Cinemark, que oportuniza ver algumas obras clássicas na tela grande. Evidentemente me apaixonei pelo filme.
Não tem problema, Fábio. Lamento informar que áudio e legendas só em inglês, francês e espanhol. Melhor seria se a Warner lançasse o disco aqui, mas nunca pesquisei se ela o fez.
Desculpe a pergunta meio “off”, mas saberia dizer se essa versão de Rastros de Ódio em BD americana tem legendas no idioma de Camões?
Olá, Thiago,
Muito obrigado pela sua leitura e apreciação positiva do meu trabalho aqui na coluna.
Para mim, é um enorme prazer descrever e discutir assuntos relacionados ao cinema e tentar compartilhar com todos a vivência que eu tenho com ele.
Por favor, fique à vontade para usar este material, caso esteja dando algum curso sobre o assunto, e tudo de bom para o seu trabalho também, aí em BH.
Sou cineasta de formação e crítico cinematográfico.
Vejamos: seus escritos estão entre os melhores que li nos últimos tempos.
Você discorreu brilhantemente a respeito do processo VistaVision; de fato, a maior invenção da Paramount depois de ter Billy Wilder em sua folha de pagamento.
Parabéns é pouco.
Olá Paulo Elias. Vou ser mais claro: o cinema em que eu trabalhava só tinha uma lente de 4 para projetar filmes planos ou seja quadrados e uma lente anamórfica que se abaixava na frente daquela para os filmes cinemascope. Então, no caso dos filmes da PARAMOUNT, como tinham o fotograma com menos altura[deduzo que 1,85X1], a lente de 4 não ampliava suficientemente a imagem para alcançar toda altura da tela. Então ficava a imagem só no centro, bem menor que os filmes planos. Devería ser usada uma lente de + ou – 2,75 para aquele tipo de fotograma, mas o cinema não tinha. Era aí que filmes grandiosos como Os 10 mandamentos perdiam sua majestade. Só agora, lendo seus escritos, entendi aquela situação. Eram filmes 35mm comuns, de 4 perfurações por quadro. A separação de um quadro a outro é que era bem mais alta,grossa, do que no filme plano.
Oi, Honório,
Na verdade, não há registro, até onde eu saiba, de projetores VistaVision instalados no Brasil. Por aqui, a exibição exigia um quadro específico, mas não me lembro de haver nada comparado ao letterbox de hoje.
O que eu me lembro, e muito bem, é a projeção original de Os Dez Mandamentos, época na qual as pessoas chegavam a levar lanches para dentro da sala de projeção, e ninguém se levantava durante o intervalo, nem para ir ao banheiro. Tinha gente que sentava no chão da escadaria do balcão, de tão cheio que o cinema ficava.
Anos mais tarde, eu vi Os Dez Mandamentos em cópia 70 mm, mas a graça já não era a mesma. E hoje em dia, a cópia em DVD é uma boa droga, e eu faço votos que a Paramount se sensibilize e faça desse filme uma excelente edição em Blu-Ray!
Olá Paulo Roberto Elias. è muito bom visitar seus escritos. Quando projecionista, me lembro que os filmes PARAMOUNT, ditos VistaVision, vinham para nós no 35mm comum mas, o que me chamava à atenção era a separação entre os fotogramas, que eram quase da mesma altura que o fotograma. Então tinhamos um fotograma mais largo do que alto, como se fora um cinemascope sem ser anamórfico. Como o cinema em que trabalhava não possuia uma lente para aquele sistema de filme, a imagem ficava com as tarjas horizontais, como é hpje na tv leterbox. Lembro de Os dez mandamentos, por exemplo. Também Sansão e dalila e muitos outros filmes grandiosos da PARAMOUNT que projetei dessa maneira. Só agora entendo o por quê daquilo. Nunca imaginei que aquele sistema, no original, rodava na horizontal.
Meu caro Dr. Carlos Fernando,
Ler e ouvir elogios dos amigos sempre nos traz aquele sentimento de suspeição de que os elogios estão ali por conta da amizade…
Mas, neste caso, eu vou exercer o benefício da dúvida porque eu sei da sua paixão pelo cinema e principalmente pela música.
Como você sabe, não passa dia na minha vida a que eu não me submeta a um constante questionamento do meu trabalho pós-academia. Não que eu não saiba os reais motivos pelos quais eu me envolvo com tudo isso, mas porque eu não quero (e espero) nunca passar a imagem de arrogância, cabotinismo ou vaidade para quem lê as minhas colunas.
Nós somos de uma época onde periódicos dentro das bibliotecas tinham suas páginas arrancadas por alguém que não queria que os outros lessem os artigos.
Hoje, com a Internet, graças a Deus, ninguém mais pode fazer isso, de maneira que a gente desmistificar o que quiser à vontade, e só agüentar a censura se alguém se sentir atingido.
E você sabe também que eu luto por isso, desde os gloriosos e saudosos tempos do MSX, quando tudo isso era feito pelos nossos livros, pelos artigos nas revistas da época, e principalmente pelas longas horas ao telefone com os entusiastas da informática e daquele formato! E veja quanto nós desbravamos e avançamos!
Um abraço e o meu muito obrigado pelo apoio e pelo incentivo. Espero continuar a ser merecedor deles!
Excelente matéria sobre o VistaVision, assim como as anteriores sobre Cinemascope e Cinerama.
Paulo Roberto Elias, com seu vasto conhecimento técnico, adquirido na mescla de sua paixão pelo Cinema e pela Música com as qualidades impostas pelos rígidos cânones da sua vida universitária, trata os temas com competência e concisão, desmistificando conceitos e estabelecendo rumos racionais e seguros, tornando fácil e agradável a leitura.
Parabéns!Queremos mais!