Nunca imaginei estar vivo para poder ver o lançamento em alta qualidade de imagem e som do filme da Metro Cantando Na Chuva (Singin’ In The Rain), dentro de uma edição de home vídeo. Infelizmente, muitos dos meus melhores amigos e parentes próximos não estão mais aí para dizer o mesmo.
Cantando Na Chuva bem que poderia ter sido mais um dos muitos e bons musicais da M-G-M, mas ele transcende o mero aspecto de filme do gênero, para dar testemunho ao principal momento histórico da evolução do cinema: a transição entre o cinema mudo e o falado! E o faz com inacreditável senso de humor e didatismo. Quem um dia ler ou estudar a história do cinema norte-americano irá reparar que este filme mostra praticamente tudo o que aconteceu na época. E não é por mera coincidência que muitos destes eventos tenham acontecido justamente no estúdio dentro do qual o filme foi feito.
A passagem do filme mudo para o sonoro não aconteceu sem deixar produtores e cineastas dentro de um estressante dilema, sem saber se seria mais uma novidade que iria se desgastar tão rapidamente quanto apareceu nas telas pela primeira vez. Vários produtores e cineastas desta época acreditavam que o lançamento de O Cantor de Jazz, em Vitaphone (som no disco sincronizado com o projetor) teria sido um risco demasiadamente grande para os irmãos Warner, e que poderia leva-los à falência em curto espaço de tempo.
Na própria M-G-M, Irving Thalberg, considerado por muitos um prodígio do métier, uma espécie de wunderkind do cinema, chegou a ter publicada a sua opinião dizendo que o cinema sonoro não iria muito longe. Tão bem que a M-G-M foi o último dos grandes estúdios a aderir à novidade. E quando o fez, se deu conta rapidamente que o veículo até então desprezado era ótimo para a produção de filmes musicais, seu principal carro chave, até a grande derrocada financeira do estúdio, ao final da década de 1950.
E como Cantando Na Chuva fala de um filme sendo feito dentro do próprio filme, seus realizadores tomaram o cuidado de não citar Thalberg diretamente, preferindo transferir a citação de desprezo ao cinema sonoro ao personagem do diretor Roscoe Dexter.
A outra importante citação desta transição, referente à destruição e perda de emprego de grandes artistas do cinema mudo, ficou por conta da personagem Nina Lamont, interpretada pela excelente comediante Jean Hagen. E também aqui astros da M-G-M não escaparam da degola, como foi o caso já mencionado nesta coluna, do ator John Gilbert, cuja voz se mostrou totalmente inadequada à nova mídia.
As dificuldades técnicas
A introdução do som junto com a projeção da película trouxe consigo uma série de problemas, eventualmente obrigando técnicos a arrumar soluções e se tornarem especialistas no assunto. A primeira e principal dificuldade enfrentada foi a da posição fixa do microfone dentro da cena. Cantando Na Chuva faz deste ponto um dos momentos de comédia do filme, todos eles verdadeiros!
A solução definitiva para a captura correta do som em cena só aconteceu com a invenção do boom: o microfone é fixado na ponta de um braço móvel, podendo ser girado em qualquer posição, levantado ou abaixado, de acordo com a necessidade das cenas. A invenção do “microfone boom” é creditada à diretora de cinema Dorothy Arzner, uma das poucas mulheres que atravessaram este período de transição entre o cinema mudo e o sonoro.
Um dos méritos do boom de microfone é a capacidade de capturar som de baixo para cima. Este método é usado com eficiência até hoje, na gravação de música sinfônica ou até de música popular executada por grupos.
Outro problema gigantesco enfrentado pelos pioneiros do cinema sonoro foi a edição das trilhas contendo diálogos, fundo musical, e eventualmente algum efeito sonoplástico. Credita-se ao diretor Rouben Mamoulian os primeiros usos do processo de dubbing (ou duplicação) de sons gravados separadamente, para o filme Applause”, de 1929. Mamoulian usou duas trilhas óticas em filme 35 mm interligadas para gravar o som, e as usou para mixar (literalmente) em uma trilha sonora final. Com o passar do tempo, consoles (mesas) para edição foram criadas com quatro ou mais canais, de forma a misturar (mixar) o som de forma eficiente.
A limitação tecnológica não se limitou, porém, ao uso de disco ou filme, como fonte de mixagem. Mesmo depois de pronta, a trilha dos primeiros filmes sonoros era de péssima qualidade. No caso de som no filme, a chamada banda ótica, a resposta de frequência ia de 100 Hz a 4 kHz, insuficiente para a reprodução até mesmo dos diálogos. Coube a Douglas Shearer, da M-G-M, financiar o projeto de aperfeiçoamento de reprodução da banda ótica, capitaneado pelo engenheiro acústico John Hilliard. Junto com Harry Kimball, ele ajudou a desenvolver a curva da academia, na realidade um processo de filtragem que atenuava a gravação de som em 7 dB em 40 Hz e cerca de 15 dB em 8 kHz. Em 1937, a curva foi aprovada para uso nas salas de exibição, com adaptações para os principais tipos de alto-falantes instalados naquela época. E ficou em uso até a década de 1970, quando o Dolby Stereo começou a ser desenvolvido.
Mesmo com todo o esforço desenvolvido pelos pioneiros do som gravado em filme, a mídia ótica se mostrou inconsistente com a grandeza das cenas dos filmes, em grande parte graças à baixíssima dinâmica alcançada: cerca de 30 dB! Gravações típicas em mídia magnética, ainda na década de 40 e 50, alcançam mais de 60 dB de dinâmica, daí a enorme diferença no impacto da reprodução do som quando a banda magnética foi introduzida no Cinerama e depois no CinemaScope!
O dubbing (conhecido depois também como dublagem) foi, em última análise, o processo que permitiu aos técnicos a substituição das vozes inadequadas aos projetos de filmes em andamentos por outras que o diretor considerasse corretas, fato este mencionado em Cantando Na Chuva, quando Kathy Selden dubla a esganiçada e desafinada estrela Lina Lamont.
A abrangência e o discurso contemporâneo de Cantando Na Chuva
A linguagem usada em Cantando Na Chuva é extraordinariamente moderna. Os segmentos musicais, em vez de estanques, são contíguos e contribuem com a narrativa da estória. A coreografia é ousada, e usa o máximo possível dos cenários. É ainda impressionante a tomada de planos longos, em perfeita harmonia com as rotinas de dança. Isto obrigou, é óbvio, uma autodisciplina e preparação por parte de atores e dançarinos. Na época, Debbie Reynolds era ainda jovem e inexperiente, sem qualquer formação de dança ou canto e, no entanto, o que se vê em cena é a personalidade de uma experimentada veterana.
O que é fantástico em Cantando Na Chuva é que a estória se desenrola no limiar entre a fantasia e a realidade dos personagens o tempo todo! E o roteiro faz uso inteligente da narrativa em monólogo, ao mostrar o herói Don Lockwood (Kelly) contar a sua trajetória de fama no cinema, ao mesmo tempo em que mostra na tela o que de fato aconteceu.
O desenvolvimento da trama traz no subtexto a própria história do filme musical. No início das filmagens com som no filme, há uma citação clara aos mosaicos criados pelo diretor Busby Berkeley, na década de 1930:
Berkeley talvez tenha sido quem primeiro teve consciência das limitações de encenações de coreografias diante das câmeras, e por isto tenha tentado formas de transcender o visual mundano das mesmas pela criação de figuras geométricas, algumas das quais com o aspecto caleidoscópico exibidos em alguns de seus filmes.
Mas, o diretor ficou para trás, com a passagem pela M-G-M de dançarinos coreógrafos como o próprio Gene Kelly, ou de outros, como Fred Astaire, que não criava as suas rotinas de dança, porém apresentava um estilo rítmico inconfundível, parecendo às vezes uma bateria ambulante. Se alguém se lembra, Astaire dança e interage com uma bateria, em uma cena de Easter Parade (“Desfile de Páscoa”), de 1948.
O fã de cinema tem em Cantando Na Chuva um espaço considerável para ilações diversas, sobre o próprio cinema, sua evolução técnica, seus dramas íntimos e suas fantasias.
Como cinema, ele é, sem sombra de dúvida, um divisor de águas. O filme deixa definitivamente para trás a noção de que os filmes musicais são apenas para a apreciação isolada de danças e músicas, e encaixam a exploração de ambos no desenvolvimento do roteiro. Uma parte deste mérito, não por acaso, é devido aos roteiristas Betty Comden e Adolph Green, que uma vez de posse da ordem de montar um filme musical contendo músicas de Arthur Freed, partiram para uma colagem de temas que iriam contribuir para a explicação do período de mudança estética no cinema e da consequência que isto teria nas vidas daqueles envolvidos com o métier neste período.
A nova edição
Cantando Na Chuva chega ao Blu-Ray depois de um longo período de espera. Mas, por uma razão mais do que justa: a antiga master, feita no processo Ultra Resolution, foi adequada para a edição em DVD, mas muito abaixo do potencial que o Blu-Ray pode alcançar. Por isto, a Warner, que é detentora dos direitos de duplicação do filme, voltou aos três negativos Technicolor onde foi possível, e remasterizou este material com 4 K de resolução nativa. O resultado é o melhor que se poderia esperar de um filme feito no início da década de 1950 com partes de negativo perdidas, e eu iria mais além, afirmando com confiança ser esta uma oportunidade única de assistir o filme com um detalhamento nunca antes imaginado através de uma tela de televisão.
Também o som, originalmente captado em vários canais, por conta de experimentações do estúdio, sofre aqui uma restauração mais do que exemplar. Em alguns trechos é possível notar o aumento de resolução, por conta desta separação de captura de seções de instrumentos da orquestra. Não se trata, que fique claro, de som multicanal derivado de qualquer mixagem pós Cinerama ou CinemaScope, mas do tratamento do processo de gravação da época, criteriosamente recuperado e transcrito em canais separados. Acreditem: melhor não fica!
Cantando Na Chuva marca uma época e deixa saudades para quem um dia frequentou os cinemas Metro. Com algum esforço, é possível trazer à memória a qualidade do som e da projeção daqueles cinemas, e lembrar que um dia o cinema de estúdio, mesmo com a intenção de não ser intelectual ou erudito, conseguiu deixar marcas indeléveis do gênio criativo dos seus realizadores. [Webinsider]
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.
2 respostas
Oi, Leeosvald,
Sem dúvida, este ano promete. Um dos lançamentos que eu pessoalmente mais aguardo é o de Lawrence da Arábia, de David Lean, cuja remasterização foi também refeita, e quem já viu diz estar acima de qualquer expectativa. Vamos esperar que sim!
Olá Paulo.
Muito bom saber dessa nova restauração da Warner, alis a Warner é a que mais investi em restauraçao em seus titulos importantes,outra novidade que vem por ai,é a coleção completa do box Indiana Jones com 4 filmes mais um Bd de extras, e o primeiro filme foi restaurado em 4k,esperamos que venha com um excelente transfer mesmo.