Com Luciene Santos.
A chamada crise do jornalismo acontece em um momento de esgarçamento de pilares da sociedade liberal. Tudo isso remete à natureza do jornalismo, atividade encarada como fundamental para a construção da cidadania. Então, pensar em jornalismo e jornalistas como função social é ao mesmo tempo um exercício de reflexão sobre as possíveis mudanças que podem impactar o modelo de negócio que sustenta, há mais de um século, a produção, publicação e consumo de notícias. Uma coisa já ocorreu: a perda de credibilidade do jornalismo e dos jornalistas.
No Brasil, dados de recentes pesquisas mostram a queda em torno de 45 a 50% da tiragem dos principais jornais impressos do Brasil, entre eles, a Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, O Globo e Correio Brasiliense. Os levantamentos remontam os últimos dez anos, segundo dados de 2010 da Associação Nacional dos Jornais (ANJ). Ao mesmo tempo, observa-se uma perda da credibilidade do jornalismo os Estados Unidos, cuja nação que se orgulha de ter sido a primeira a garantir a “liberdade de expressão” em seu texto constitucional.
Segundo pesquisa realizada pela Escola de Governo JFK da Universidade de Harvard, em 2007, a imprensa era a última colocada no quesito credibilidade entre 15 instituições estadunidenses. A imprensa perde até mesmo para o Poder Executivo naquele momento comandado pelo desgastado presidente George W. Bush. Esta perda de credibilidade acontece também no Brasil. Uma pesquisa, realizada pelo DataFolha em dezembro de 2012, constatou que o percentual de pessoas que “confiam muito na imprensa” é de apenas 22%, enquanto os que não confiam é de 28%.
A inversão da forma pelo conteúdo
No jornalismo, a inversão da forma pelo conteúdo mata a notícia como valor social. Essa inversão ocorre quando a forma de apresentação do conteúdo ganha mais valor em relação ao conteúdo transmitido. Perseu refere-se também à inversão da versão do fato quando é dado, por exemplo, mais importância à voz oficial do que à versão dos atores sociais do fato, e à inversão da informação pela opinião.
Essa situação se configura toda a vez que o jornalista impõe ao leitor o seu juízo de valor em relação ao fato apresentado. No caso do jornal impresso e online, o texto tem mais relevância que a informação em si. Para vender, a maioria dos articulistas renomados dos grandes jornais opta pela estética literária. Um bom exemplo de inversão de relevância da informação foi colocada em discussão pelo ombudsman da Folha, Marcelo Beraba.
No dia 05 de dezembro de 2004, Berada fez uma comparação de como foi feita a cobertura da notícia de que Aécio Neves, então governador de Minas Gerais, estava conseguindo acabar com o déficit do estado. A falácia do “déficit zero” saiu dos muros do Palácio da Liberdade e ganhou às redações dos principais de Minas e do Brasil com um simples toque de Midas, sem qualquer base nos fatos. Como os jornalistas puderam ser tão “tolos”?
A pergunta coloca em perspectiva os meios de comunicação como grandes conglomerados empresariais, cujos interesses econômicos e políticos oprimem ao invés de liberar o cidadão. Na América Latina, os monopólios midiáticos têm um poder fenomenal que vêm cumprindo na função de substituir os partidos políticos de direita que caíram em descrédito e que não têm capacidade de chamar a atenção nem a vontade dos setores conservadores da sociedade.
É desta forma que o cientista social argentino, Atilio Boron, caracteriza a denominada canalha midiática. Para a mesma direção aponta o fundador do Wikileaks, Julian Assange. Refugiado na embaixada do Equador em Londres, Assange afirma que um dos principais problemas da América Latina é a concentração da mídia. “No Brasil, seis famílias controlam 70% da informação”.
Jornalistas, publicitários, relações públicas…
No Brasil, o curso de Comunicação Social acolheu as habilitações: Jornalismo, Relações Públicas e Publicidade e Propaganda. Assim, o curso de Jornalismo no Brasil, antes independente, passou a ser parte integrante desse novo curso, instituído por meio do Parecer nº 631 de 1969. Se em muitos casos a notícia em si já é publicitária, o jornalista não deveria se confundir ainda mais com a função de publicitário, ou relações públicas.
No interior do Brasil é comum jornalistas serem escalados uma vez por semana para vender anúncios, prática que não coaduna com o livre exercício da profissão de jornalista como função social. No interior, o problema é ainda mais grave, pois a prefeitura da cidade é o maior anunciante do jornal. Ora, se a maior parte das lutas sociais é gerada a partir da relação entre governos municipais e cidadãos, o jornalismo como fator de construção social perde credibilidade e respeito da sociedade.
Essa relação promíscua do jornalismo produzido no Brasil e Portugal mata a notícia como perspectiva de mudanças sociais. Ora, se o jornalismo é o último baluarte do espaço público, como equacionar o problema da dependência financeira das empresas jornalísticas de órgãos públicos? Para Medger (In Dickson, 2000: 147), a natureza e a missão do jornalista é diferente da natureza e da missão dos outros campos da comunicação”, como “a publicidade ou as relações públicas”.
Essas áreas “representam interesses particulares”, ao contrário do jornalismo, que “atua centrado no interesse geral”. Medger considera que a interseção de ramos como a publicidade, as relações públicas, o marketing com o jornalismo pode contaminar esta última área de forma vil. Por isso, defende a definição clara da identidade de cada ramo. Como alertava James Carey, “o jornalismo está a desaparecer dentro do mundo mais amplo da comunicação”, sob pena de criarmos meros comunicadores generalistas sem nenhum apelo pelas grandes causas sociais.
Para Nancy Ramadan, pós-doutora pela Universidade do Minho de Portugal, a bibliografia existente aponta para a necessidade de atender a um mercado no qual a função do jornalista se confunde com a função do publicitário, do propagandista e do profissional de relações públicas. É preciso ficar nítida a função do jornalista entre os agentes e analistas de sociedades em formação. No Brasil, atualmente, são chamados “comunicadores” ou “homens de comunicação”, o que reduz a separação que deve haver entre Jornalismo, Publicidade e Propaganda e Relações Públicas.
Ética e o pesadelo do jornalismo
“Como agentes de comunicação, entre os quais estão os jornalistas, os profissionais de imprensa têm responsabilidades maiores, principalmente no campo ético, e para exercê-las prescindem de formação congruente com este papel que assumem no mundo”. Essa posição é defendida pela docente Nancy Ramadan (2013). Segundo ela, é no campo social que deve atuar o jornalista.
Beverly Kees, uma ex-repórter e editora de jornais em Minneapolis e atual editora residente do Freedom Forum, em Oakland (EUA), considera que o maior pesadelo do jornalismo reside no desaparecimento dos estudantes de jornalismo e na sua substituição por criaturas brandas, sem formação específica que lhes permita fazer as perguntas relevantes, e incapazes de analisarem, e de organizarem, a informação de verdadeiro interesse público (1996: 04).
Para ser ético, segundo Manuel Carlos Chaparro, “o Jornalismo tem de assumir, como fonte das suas próprias razões de ser, os valores civilizacionais consagrados pela experiência humana de viver, que dão conteúdo à Declaração Universal dos Direitos Humanos”. Um bom conhecimento da Ética foi o item, proporcionalmente, que a maior parte dos docentes assinalou como conhecimento indispensável para os estudantes durante a licenciatura.
O professor da ECA, José Sobrinho (2013), retoma a importância da apuração. A omissão é bastante recorrente dentro da taxionomia dos padrões de manipulação jornalística. Mas, para tanto, a sociedade clama por um jornalismo formado por jornalistas cônscios de seu papel profissional e de suas prerrogativas sociais. O que deve ser condenado é a priorização de aspectos irrelevantes do fato e sua descontextualização com a intenção de criar uma realidade artificial.
Tecnologia, aplicativos e jornalismo
Depois da ética, os docentes consideram fundamental para a qualificação dos novos jornalistas o conhecimento das teorias da comunicação e de ontologia do jornalismo, aliado às disciplinas laboratoriais e ao domínio das novas tecnologias da informação. No Brasil, os professores da área prescindem de formação que ofereça elementos pedagógicos que deem conta da prática jornalística em seu novo cenário tecnológico-global.
Se o jornalista precisa estar preparado para atuar profissionalmente nesse novo ambiente, as escolas precisam, também, estar preparadas para receber os novos alunos dotados desse perfil proveniente da cultura digital. Mesmo porque, a maioria dos jovens, que chegam aos cursos de Jornalismo, já está conectada com a realidade virtual por meio de blogs, redes sociais e outros instrumentos, em processo de velocidade rápida e com o compartilhamento imediato da informação.
Nessa perspectiva, é interessante assinalar três dos seis tópicos que abordam o conceito de cultura digital (Castells, 2008) em favor da produção jornalística:
- Habilidade para comunicar ou mesclar qualquer produto baseado em uma linguagem comum digital;
- Habilidade para comunicar desde o local até o global em tempo real e, vice-versa, para poder diluir o processo de interação;
- Existência de múltiplas modalidades de comunicação.
Em geral, a bibliografia sobre o assunto é voltada à formação do jornalista “doméstico”, já que pouco considera a abrangência atual das novas tecnologias em profundidade. Segundo a professora Nancy Ramadan, os docentes de jornalismo necessitam de formação que possibilite a articulação entre a teoria e prática de forma a contemplar o novo cenário midiático. Aparentemente, as “facilidades” técnicas para a produção de material jornalístico e a velocidade embutida na nova paisagem tecnológica dariam conta de tudo.
Encantados com as novidades da era digital, os docentes, em sua maioria, pouco questionaram a implantação e o uso do novo instrumental técnico. E ainda mais grave, a maioria acolheu sem a crítica necessária toda a ideologia embutida nas novas tecnologias, como por exemplo, o imediatismo das soluções editoriais que já vêm prontas nos softwares, sem vislumbrar como fim a qualidade da informação. Ainda são poucas as publicações em rede que apresentam uma concepção com conteúdo totalmente voltado para a internet.
Se por um lado a tecnologia contribuiu para didatizar a notícia, por outro a internet redefiniu as relações de força antes definidas pelas armas. Todas as sociedades com qualquer desenvolvimento tecnológico se fundiram na web. Hoje, não há uma separação entre sociedade, indivíduos, Estados e internet. Esse fenômeno gerou um forte impacto na forma como os jornalistas devem atuar.
O desenvolvimento da tecnologia interfere na produção da notícia. Assim como o telégrafo provocou o surgimento do lead (Souza, 2001:12), a internet ‘roubou’ do jornalista a primazia da apuração. O caráter deste cenário tecnológico ainda é bastante experimental. Porém, os jornalistas já estão lidando com um novo tipo de edição, que está sempre em atualização, uma edição sem ‘fechamento’. O chamado furo jornalístico, hoje, se mede em segundos.
O jornalismo, mais fortemente que outras áreas de atividade, se ressente das mudanças nos seus modos de produção. Isso não diz respeito apenas à técnica, já que a rede de computadores não está no espaço, ela é o espaço (FRANCO: 1997). Aparentemente, diante da velocidade imprimida pela internet, não há tempo para se pensar em ensino sob os prismas humanísticos, que fogem à eficiência técnica imediata. Muito menos para pensar no futuro jornalista também como cidadão acima de qualquer suspeita.
Em Portugal, uma experiência tem sido feita pelo portal de notícias P3, na tentativa de mudar essa realidade atual do jornalismo. Criado em 1999, o portal busca pautar-se pela publicação de notícias relevantes com elevado teor crítico. Outra novidade é a forma de disposição dos anúncios, bem mais contida que na maioria dos portais. As notícias ocupam maior espaço em um ambiente mais clean e despoluído. Para acessar lojas eletrônicas é preciso clicar numa aba lateral, próximo à barra de rolagem (scroll).
Dentro desse modelo de engajamento social, a Teoria dos NewsGames se apresenta como uma possibilidade de propor uma reflexão social através dos games como emuladores de informação e notícia. Neste contexto lúdico, os jovens (jornalistas ou não) são convidados a participar de forma colaborativa da discussão de temas relevantes de cidades onde moram. Ao debater assuntos de interesses comuns, os novos mediadores da informação podem propor soluções sustentáveis para problemas recorrentes, porque estão pessoalmente envolvidos com a informação que lhes interessa.
Leia também a primeira parte do artigo: Resgate do jornalismo como função social. Missão impossível?. [Webinsider]
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Leia também:
- Robert Kaiser e o jornalismo de hoje
- Previsões para o jornalismo digital em 2013 – Parte I
- Jornalismo e redes sociais, como anda essa relação?
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Geraldo Seabra
Geraldo Seabra, (@newsgames) jornalista e professor, mestre em estudos midiáticos e tecnologia, e especialista em informação visual e em games como informação e notícia. É editor e produtor do Blog dos NewsGames.