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Os momentos mais felizes da minha vida
foram aqueles, poucos, que pude passar em
minha casa com a minha família.

Thomas Jefferson (Político norte americano, 1743 – 1826)

Cena 1: Mãe e filho entram no restaurante. Sentam-se, o garoto deve ter por volta de 3 ou 4 anos, a mãe no máximo 30. Pedem refrigerantes. Ele não tira os olhos do tablet, ela tecla freneticamente o smartphone. Pausa para o pedido, depois seguem, cada um com seu gadget. Cronometrei: 17 minutos sem absolutamente trocarem uma palavra. Corte rápido para cena 2.

Cena 2: Mesmo restaurante, 3 minutos após início da cena 1. Marido chega, senta-se e pede uma tônica com gelo e limão. Olhar fixo no smartphone. Esposa chega, não se beijam. Ela senta, diz “Oi”, ele faz um pequeno aceno com a cabeça, mas não tira os olhos do smartphone. Após um breve momento, ela também começa a teclar em seu smartphone. Estariam trocando SMSs entre si? Pedem “o de sempre”. Cronometrei: 12 minutos sem um diálogo. Corte para minhas reflexões na mesa ao lado.

Não é roteiro de filme, não é ficção. As cenas são reais. De um lado as famílias estão conectadas, online, fascinadas e dependentes de seus gadgets. De outro, pais e filhos parecem estar próximos e distantes, casamentos não sobrevivem aos vícios cibernéticos. momentos de lazer e educação estão sendo virtualizados e conversas transformadas em SMSs e posts.

Temos um cenário de hiperconectividade, o qual está alterando profundamente as relações familiares e talvez para pior. A solução entretanto não está em abandonar por completo smartphones, tablets e redes sociais, afinal nossa sociedade está cada vez mais imersa em bits e este é um caminho sem volta. O que está em jogo não são as ferramentas em si, mas como as estamos utilizando.

Devido a densidade do tema, resolvi escrever dois artigos, juntos compõe uma breve reflexão sobre como as novas tecnologias de comunicação e informação (TICs) estão modificando nossas relações familiares. Meu objetivo porém foi ir além e fazer uma “chamada para ação” pois acredito é possível usarmos de forma construtiva e não dependente estas novas ferramentas, redes sociais e outros gadgets, adotando atitudes e regras simples capazes de valorizar a interação familiar, o afeto e a troca de experiências entre pais e filhos.

Paradoxos da tecnologia

Sociedade da informação, tecnocultura, cibercultura, muitos são os termos e definições do momento que vivemos. Hoje, a tecnologia digital nos permite reduzir o tempo e a distância, traz conforto, comodidade (quem não gosta de comprar livros e outros objetos em websites de comércio eletrônico e recebê-los em casa?) e provê segurança e acesso à informação em tempo real. Porém, diferentes autores (Bauman, 2008; Chesley, 2005; Conley, 2011; Keen, 2011; Lanier,2010; Maushart,2011; Turkle,2011) têm nos alertado sobre os efeitos negativos da tecnologia em nossos relacionamentos pessoais.

Ao observarmos nosso comportamento, em especial em nossos lares, entre pais e filhos, vamos notar que em diferentes momentos estamos fisicamente presentes, mas totalmente alheios ao contexto, isto porque estamos usando algum dispositivo móvel, conectados, vivenciando uma outra experiência. Afinal, o que está acontecendo?

Chamarei de “primeira onda” aquela que, a partir do uso de computadores pessoais e depois celulares, transformou lares em extensão das empresas e de “segunda onda”, ao uso por todos (ou quase todos) os membros de uma família de dispositivos móveis e acesso às redes sociais.

A primeira onda foi alavancada pela nova economia e a expansão do acesso à internet, fatores que ajudaram a diminuir as barreiras entre o local de trabalho e nossos lares. Acesso aos e-mails e diferentes sistemas corporativos, bem como o uso de celulares para manter contato com as atividades da empresa, fazem parte do cotidiano de milhões de profissionais ao redor do planeta. E embora diferentes autores (Castells, 2000; De Masi, 2000) observem este movimento como positivo, existe um preço a pagar.

“A solidariedade familiar depende de uma sincronização das agendas de seus membros, algo cada vez mais difícil de se conseguir, considerando os regimes flexíveis de trabalho atuais.” (Wajcman et all, 2008). O problema que as famílias precisam resolver quando pais adotam o “home office” é como separar, dentro do espaço de seus lares, trabalho e atenção para o próprio relacionamento e para os filhos.

Com a adoção de tecnologias móveis, em especial smatphones e tablets por crianças e adolescentes, a “segunda onda” apresenta desafios ainda maiores para o convívio familiar. Agora não somente os pais estão conectados, os filhos também. Alguns números impressionam:

  • Pesquisa global conduzida pela F-Secure com usuários de banda larga em 14 países identificou que 31% das crianças brasileiras de até 12 anos já fazem uso de smartphones conectados à internet. O estudo ouviu 6,4 mil pessoas.
  • Um estudo realizado pela Trend Micro chamado Segurança de Internet para Crianças & Famílias (Internet Safety for Kids & Families) em sete países, descobriu que as crianças brasileiras são as que entram mais cedo nas redes sociais com, em média, 9 anos de idade, sendo que 6 entre 10 pais permitem que os seus filhos tenham perfis nesses sites de relacionamento, representando 63% do total. Além disso, 90% dos pais brasileiros estão entre os contatos de seus filhos nas redes sociais, o que os mantem informados sobre o comportamento de seus filhos.

Outra pesquisa revela números semelhantes:

  • A pesquisa TIC Kids Online Brasil 2012, realizada Comitê Gestor da Internet do Brasil, revelou que, no país, 70% das crianças e dos adolescentes entrevistados têm perfil próprio nas redes sociais. Entre os menores de 13 anos, 42% dos entrevistados (na faixa de 9 e 10 anos) e 71% (de 11 e 12 anos) já fazem uso delas.

No contexto das redes sociais, o cenário é ainda mais complicado para os pais. De certa forma, eles estão em xeque-mate: Se não permitem que seus filhos entrem nas redes, correm o risco de “deixá-lo de fora do grupo”. Quando apoiam a iniciativa, ficam inseguros pois sabem que é praticamente impossível monitorar o que acontece nas redes sociais em tempo real. Dedicar tempo para vasculhar centenas de perfis, posts e fotos não é tarefa das mais fáceis. De fato, o receio dos pais é justificado. A pesquisa TIC Kids Online, continua:

    A maioria desses jovens coloca em seu perfil foto que mostra claramente o rosto (86%), expõe o sobrenome (69%) e pode navegar nas redes sociais quando quiser, sem acompanhamento dos pais (63%).

Assim, ao que parece, os pais jogaram a toalha. Fato preocupante se considerarmos que nenhuma rede social é capaz de garantir que crianças e adolescentes não tenham contato com pessoas fora de seu círculo de amizades, evitando por exemplo que sejam assediadas por algum psicopata. Assim, é observando o comportamento do filho, que os pais irão descobrir se algum tipo de assédio, bullying ou agressão virtual ocorreu. Infelizmente, as ações são sempre mais reativas que pró-ativas.

Nas redes sociais impressiona o alto grau de exposição dos jovens. Algo que ocorre de forma espontânea. Falam tudo e um pouco mais sobre si mesmos. Isto porém revela um lado sombrio das redes sociais: que elas foram construídas para que seus usuários escrevam e publiquem o máximo sobre si mesmos.

Isto é a galinha dos ovos de ouro das redes sociais, o que permite contextualizar publicidade de acordo com o perfil dos usuários (Bauman, 2008; Keen, 2012). Não por acaso, redes sociais são também conhecidas como “indutores” ou “estimuladores” de comportamento. De fato, crianças e adolescentes conectados nas redes sociais são vistas como uma classe de consumidores.

Individualismo em alta

Se observarmos com cuidado as novas ferramentas de comunicação, observamos que foram desenvolvidas para serem usadas por somente uma pessoa. Nenhum de nós empresta ou compartilha seu smartphone ou tablet. Isto porque fazemos uso do alto nível de personalização destes dispositivos, gravando telefones, fotos, músicas, senhas de acesso a diferentes aplicativos e outras informações particulares que talvez deveriam estar dentro de um cofre. Não por acaso, perder um smartphone pode significar semanas de lamentações. Este mesmo princípio de personalização vale para tablets e notebooks. Importante notar que nos notebooks podemos criar diferentes perfis, para que outras pessoas acessem o mesmo, mas dificilmente isto é feito. A combinação de um dispositivo pessoal conectado à internet, com acesso às redes sociais, as quais estimulam seus usuários a falarem sobre si, o tempo todo, resulta em comportamentos cada vez mais individualistas, egocentrados. Dentro de um grupo familiar, o individualismo divide, separa e afasta. Estamos ficando juntos mas sozinhos dentro de nossos lares (Maushart, 2011; Turkle, 2011). É comum presenciarmos cenas de pais e filhos, lado a lado, cada um conectado, usando seu próprio dispositivo, dentro de alguma rede social, enviando mensagens ou postando fotos. Segundo o psicólogo Marcelo Quirino:

“As bases afetivas de um relacionamento familiar saudável se fixam sobre o respeito, o amor e o carinho. Os aspectos comportamentais incluem a colaboração, a dedicação e o companheirismo. Já as bases cognitivas se fixam sobre a comunicação direta e clara, a informação sincera e sobre a empatia, buscando entender o outro sempre antes de emitir opiniões.”

Assim, o relacionamento familiar não se desenvolve em espaços virtuais, via skype ou por meio de “likes”, ações superficiais que estão longe de promover qualquer tipo de afetividade ou sentimento verdadeiro. O espaço virtual, das redes sociais em especial, é por sua própria natureza, uma forma de reducionismo, algo construído matematicamente, dentro do qual cada pessoa não passa de bits, informações armazenadas em bancos de dados.

“O primeiro princípio desta nova cultura (digital) é que toda a realidade, incluindo nós seres-humanos, é um grande sistema de informação” (Lanier, 2010). Ainda não foi concebido um sistema computacional capaz de compreender ou de simular a complexidade de nossas vidas, a profundidade de nossas emoções e sentimentos. Quando migramos para o universo virtual, devemos estar cientes que estamos entrando num espaço finito, restrito e pré-determinado.

As novas tecnologias representam uma forma prática, rápida e pré-formatada de relacionamento interpessoal, útil no relacionamento profissional, nas trocas comerciais e de negócios. Porém, dentro do ambiente familiar, uma troca de mensagens via SMS não substitui uma boa conversa e videogames estão muito longe de proporcionar o mesmo prazer de um passeio de bicicleta.

Acredito que pais e filhos precisam aprender a lidar e dominar as novas tecnologias de comunicação como se estas fossem mais uma ferramenta. Se para dirigir um carro é preciso respeitar regras e observar limites, o mesmo se aplica para um smartphone ou qualquer outro gadget. Quanto o assunto são redes sociais, recomendo usar com maior prudência, discrição e disciplina. Se de um lado, as interações nas redes sociais estimulam o individualismo, cabe aos pais valorizar a individualidade, isto é, as virtudes e originalidade da personalidade de seus filhos.

Referências

BAUMAN, Z. (2008) Vida para Consumo – A transformação das pessoas em mercadorias. Zahar Editora, Rio de Janeiro.

BAUMAN, Z. (2004) Amor Líquido. Zahar Editora, Rio de Janeiro.

BARABÁSI, A. (2002) Linked: The New Science of Networks. Perseus Publishing.

BENEVENUTO, F. et all (2009) Characterizing user behavior in online social networks. Proceedings of the 9th ACM SIGCOMM conference on Internet measurement conference, Chicago, Illinois, USA.

CASTELLS, M. (2002) A sociedade em Rede – a era da informação: economia, sociedade e cultura. Volume 1. São Paulo: Paz e Terra.

CASTELLS, M. (2003) A Galáxia da Internet. Zahar Editor, Rio de Janeiro.

COLEMAN, B. (2011) Hello Avatar – Rise of the networked generation. MIT Press, New York.

CHESLEY, N. (2005) Blurring Boundaries? Linking Technology Use, Spillover, Individual Distress, and Family Satisfaction. Journal of Marriage and Family. 67(5):1237- 1248. Pesquisado em Maio 27, 2013.

CONLEY, D. (2011) Wired for Distraction: Kids and Social Media. Time Magazine, Saturday, Mar. 19, 2011. Acessado em 20 de maio de 2013.

DE MASI, D. (2000) Ócio criativo. tradução: Lea Manzi. – Rio de Janeiro, Sextante.

DOWNES, D. (2005) Interactive Realism – The poetics of cyberspace. Québec, Canada, McGill-Queen’s University Press.

KEEN, A. (2012) Vertigem digital – Porque as redes sociais estão nos dividindo, diminuindo e desorientando. Zahar Editora, Rio de Janeiro.

KELLY, K. (2010) What Technology Wants. New York, Penguin Books.

LANIER, J. (2010) Your are not a Gadget. A Manifesto. Phaidon Press. New York.

LEMOS, A. (2002) Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea. Porto Alegre: Sulina.

MAUSHART, S. (2011) O inverno de nossa desconexão. São Paulo, Paz e Terra.

MCGRATH, S. (2012) The Impact of New of new media technologies on social interaction in the household. Department of Sociology, National University of Ireland Maynooth. SOHE Culture.

MCLUHAN, M. and LAPHAN, L.H. (1994) Understanding Media: The Extensions of Man. New York, MIT Press.

MCLUHAN, M. and POWERS, B. R. (1994) The Global Village: Transformations in World Life and Media in the 21st Century. New York, Oxford University Press.

MONTEIRO, S. D. (2007) O Ciberespaço: o termo, a definição e o conceito. DataGramaZero – Revista de Ciência da Informação – ARTIGO 03. v.8 n.3, Jun/07.

PERRONS, D., FAGAN, C., McDOWELL, L., RAY, K. & WARD, K. (2005). Work, Life and Time in The New Economy. Time & Society.

QUIRINO, M. Blog Marcelo Quirino – Psicólogo.

SILVER, C. (2009) Social Media & Family: Finding the Balance. Wired. 08.27.09.

TURKLE, S. (2011) Alone Together: Why We Expect More from Technology and Less from Each Other. Basic Book, New York, NY.

WAJCMAN, J., BITTMAN, M .and BROWN, J.E. (2008) Families without borders: mobile phones, connectedness and work-home divisions. Sociology, 42 (4), pp.635- 652.

Fontes de dados

Olhar Digital
No Brasil, 31% das crianças têm smartphones com acesso à internet. 12 de setembro de 2012.

Cetic.br
TIC KIDS ONLINE 2012

Pew Internet
Teens, Social Media, and Privacy. May 21, 2013
Teens and Technology. May 13, 2013

[Webinsider]

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Ricardo Murer é graduado em Ciências da Computação (USP) e mestre em Comunicação (USP). Especialista em estratégia digital e novas tecnologias. Mantém o Twitter @rdmurer.

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