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Quando Julie Andrews recebeu o Globo de Ouro como melhor atriz, pelo personagem-título em Mary Poppins, ela fez um agradecimento irônico a Jack Warner, um dos irmãos fundadores do estúdio do mesmo nome.

É que quando My Fair Lady foi planejado o velho magnata do cinema resolvera produzir o filme pessoalmente. E, coincidentemente, Miss Andrews foi a atriz que personificou Eliza Doolittle nos palcos de Londres e Nova York, sendo assim a escolha lógica para o papel. Mas, como ela nunca tinha feito um filme sequer até então, Jack Warner preferiu não se arriscar e entregou o papel a Audrey Hepburn, mesmo sabendo que esta última nem sequer sabia cantar como o papel de Eliza exigiria.

Mary Poppins acabou por arrebatar cinco Oscars: atriz em papel principal, montagem, efeitos especiais, música e trilha sonora. E ainda recebeu oito indicações por fora!

A realização do filme exigiu de Walt Disney um esforço danado. Anos se passaram até que P. L. Travers, autora dos livros, cedesse ao cineasta para ver como seria a produção do filme. E mesmo depois disso ela tornou a vida de Disney um suplício. Alguns desses incidentes são agora mostrados no filme “Saving Mr. Banks” (no Brasil, “Walt Nos Bastidores de Mary Poppins”), lançado a propósito do aniversário de cinquenta anos da produção do filme original.

Depois que o filme ficou pronto a autora continuou a criar caso com a produção, exigindo que Disney retirasse a animação. Segundo testemunhas, Disney se recusou e ela teria jurado nunca mais ceder os seus direitos autorais para outros filmes do estúdio.

Travers introduziu nos livros palavras não existentes nas expressões idiomáticas britânicas. Mas, quando os irmãos Sherman fizeram o mesmo dentro das letras das músicas ela não gostou. A objeção especial a “supercaligragilisticexpialidocious” (“uma palavra infernal”, segundo ela) acabou por se tornar uma anedota nos diálogos do filme.

 A versão Disney

Conhecido por adaptar contos de fadas, alterando aspectos da trama, dos personagens e principalmente contos com finais trágicos, Walt Disney inegavelmente tinha a sua própria visão de Mary Poppins e do que devia ser mostrado nas telas de cinema. Entretanto, delegou o roteiro a Don DaGradi e Bill Walsh, seguindo o tratamento feitos pelos irmãos Richard e Robert Sherman.

É ilusão achar que cineastas não adaptem livros para a tela sem alterar o conteúdo. O cinema sempre fez isso e sempre o fará, pois nem tudo o que está escrito no papel funcionaria como obra cinematográfica.

E no caso específico de Walt Disney é preciso levar em consideração o tipo de público para o qual ele destinava os seus filmes. Assim, se Mary Poppins era rude e excessivamente rigorosa com as crianças nos livros, na versão Disney ela é dura sem ser ríspida, e em apenas alguns momentos. E, fora isso, completamente neutra no tratamento a Jane e Michael. No filme, ela está mais para uma educadora moralista do que severa ou ameaçando espancar.

E tudo isso tem um efeito: o de fazer os pais se encaixarem na missão de educadores, passando a prestar mais atenção nos filhos, e fazendo o papel de orientadores, com o carinho que as crianças precisam para se desenvolverem. Na versão de Travers, Mary Poppins aparece para consertar o pai, segundo ela própria declara, mas na de Disney ambos pai e mãe são igualmente distantes dos filhos: o pai, pelo escrúpulo do zelo com o trabalho, e a mãe pelo envolvimento com os problemas políticos que impediam as mulheres de se emanciparem eleitoralmente.

Existe ainda uma sutil guerra dos sexos entre marido e mulher, na forma de comédia: a mãe classifica os homens como “coletivamente estúpidos”, enquanto que o marido acha que o pensamento feminino é desprovido de disciplina e bom senso, e pede explicitamente que a mulher impeça isso na educação dos filhos.

Então, o que Mary Poppins faz no filme é agregar a família em torno do mesmo objetivo de criar seus filhos com a atenção que eles precisam e merecem. E o filme só termina quando isto de fato acontece. Não é mera coincidência a interposição de “Go Fly a Kite”, a música mais alegre de toda a trilha, na sequência final.

 O filme funciona bem do início ao fim

Mary Poppins talvez tenha sido um dos melhores, senão o melhor filme com atores saído do estúdio Disney. O roteiro é cuidadosamente elaborado, e é difícil achar alguma coisa fora do lugar. Lógico que, se alguém assiste e se vê envolvido no entretenimento, se houvesse alguma falha no roteiro ela não seria percebida com facilidade.

Como de hábito nas produções do estúdio, o segredo dos cineastas é transformar a estória em uma fantasia, mas neste caso de tal forma que a trama como um todo seja ajudada no seu desenvolvimento. Na versão de Disney, a heroína é uma mulher capaz de fazer mágica, mas não fica explicado se ela é uma bruxa ou fada. Este detalhe, porém, pouco importa, porque o mais importante nos truques mostrados na tela são os efeitos de mudança de comportamento causados por eles nos outros personagens, particularmente em Michael e Jane.

Julie Andrews, que nunca havia feito um filme até então, está primorosa. E a gente sabe que atores aparecem bem em filmes quando são bem dirigidos e, no caso, bem conduzidos pela mão do diretor. Duvido que ali tenha havido uma exceção. A câmera adora Julie Andrews, e a sobriedade com que ela encarna o papel justifica plenamente ter ela sido recipiente do Globo de Ouro e do Oscar de melhor atriz.

A gente vê até hoje pessoas, na maioria de norte-americanos, reclamarem do sotaque “cockney” imperfeito de Dick Van Dyke. Os críticos esquecem que Van Dyke tinha tudo o que o papel exige: ele é flexível como ator, comediante natural, cantor e até dançarino, quando então o personagem de Bert ganha vida e versatilidade.

O filme como um todo é emotivo, alegre ou triste, dependendo do momento ou da cena. E a maior prova recente disso que eu tive foi quando levei a minha filha para assistir “Saving Mr. Banks” no cinema: várias pessoas atrás de nós choraram a ponto de soluçar, nas cenas finais que lembram o filme já feito. E eu confesso que fiquei emocionado também, apesar das inúmeras vezes que eu o assisti em casa.

 A parte técnica

A fluidez do roteiro torna o filme leve, apesar das duas horas e meia de projeção. O filme foi rodado com enquadramento 1.66:1 plano, preferido pelo estúdio na grossa maioria das suas produções desta época. No entanto, segundo o IMDb, as cópias lançadas em solo norte-americano foram dotadas de 4 trilhas magnéticas de som estereofônico. No Brasil, eu não me lembro de ter visto nos cinemas alguma cópia deste tipo. Na cópia que eu assisti o som era mono, em banda ótica. Existe também registro no IMDb de um intervalo, por volta de 1:29 h de projeção, mas por aqui eu não vi nenhum. Quem quiser ter uma ideia de como soava a trilha sonora magnética original, ela está transcrita na versão em DVD dos 40 anos do filme, e mesmo assim, remixada em algumas cenas para 5.1 Dolby Digital, com alguns efeitos sonoplásticos em surround direcional. Ainda mais próxima da trilha original ficou a versão em Laserdisc, que é PCM Dolby Stereo. Versões posteriores nesta mídia já foram dotadas de trilha AC-3 (Dolby Digital).

O filme é quase todo feito com compósitos no processo “matte painting”, que são pinturas em vidro inseridas no background das imagens, simulando os cenários onde estão os personagens, filmados ao vivo em outro local.

Para tornar a ilusão fotograficamente esmerada foi usado o método por luz de sódio, que consiste na iluminação de fundo branco por lâmpada de vapor de sódio de baixa pressão. A luz que retorna à câmera tem um comprimento de onda que não sensibiliza o filme colorido (RGB), mas é capturado em filme preto e branco. Trata-se de um processo de dupla exposição. Uma câmera modificada, contendo os dois negativos, roda a cena com os atores em primeiro plano contra fundo branco iluminado com a luz de sódio. Abaixo se pode ver o pioneiro Ub Iwerks (primeiro desenhista e criador de Mickey Mouse) com a câmera modificada por ele para a filmagem de Mary Poppins:

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Por causa da luz de sódio refletida no fundo, o filme colorido apresentará os atores em fundo preto. Em contrapartida, a película monocromática mostrará os atores em fundo branco. As duas imagens são posteriormente misturadas, produzindo um negativo isento de contornos luminosos na imagem dos atores ou objetos do primeiro plano. Quando depois o segundo negativo é combinado no optical printer com as pinturas do matte painting, o resultado final é um compósito com personagens e cenários em perfeita harmonia fotográfica. As imagens a seguir mostram exemplos de como isto é feito:

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O processo como um todo é chamado de “chroma key”, e é usado até hoje para vídeo (televisão) ou cinema. Até o desenvolvimento da fotografia com luz de sódio, o background era feito com luz azul. Quando o compósito era feito, a luz azul era facilmente percebida como um halo azulado no contorno dos atores ou objetos. Anos depois, os métodos de chroma key foram aperfeiçoados, e o método por luz de sódio abandonado, por causa do seu alto custo.

 Salvando Mr. Banks e as críticas (injustas e maldosas) contra Walt

Em janeiro deste ano a badalada atriz Meryl Streep entregou um prêmio do National Board of Reviews para a atriz Emma Thompson, de fato esplêndida no novo filme sobre o embroglio envolvendo Pamela Travers na preparação de Mary Poppins. Mas, em o fazendo, Meryl Streep não poupou Walt Disney de críticas absurdas:

Chamou o homem de sexista, misógino (homem que odeia mulheres), antissemita (pessoas que odeiam judeus), e racista. Em outras palavras, Disney teria sido, segundo ela, um homem de duas caras, uma para o público e outra para os seus associados.

Burros somos nós que passamos todos esses anos acreditando o contrário. Mas, ao invés de perder tempo rebatendo essas tolices, eu convido o leitor a assistir um vídeo com o depoimento do animador do estúdio Floyd Norman, estampado pelo periódico Indiewire:

Meryl Streep, no alto de sua suposta autoridade no assunto, presta aos fãs do estúdio um desserviço maldoso, ao denegrir a memória de Walt Disney. Walt foi um cineasta que se tornou depois produtor, e não o contrário. Portanto, o oposto de seus pares do studio system, quando produtores mandavam e desmandavam, à revelia do estafe criativo. Ele, mesmo com o direito da palavra final, se juntava aos outros para discutir o melhor para seus filmes. E, segundo testemunhos de vários artistas, os vencia em vários tipos de argumento.

Todos os filmes de animação, desde curtas até os de longa-metragem, eram feitos com storyboard, ensaio a lápis e só depois a animação final. Detalhista e intuitivo, Disney tinha o pulso da plateia. Muitos dos seus desenhos animados continham mensagens subjacentes dirigidas ao público adulto.

Disney foi pioneiro do som estereofônico no cinema, como já mostrado aqui mesmo na coluna, e o primeiro proponente do som direcional, para fins de efeitos sonoplásticos, encampado depois como mixagem em filmes como Star Wars e na grande maioria dos filmes de ação pós Dolby Digital.

Se Disney era de fato antissemita, como afirma Meryl Streep, eu quero que alguém me explique o carinho nutrido pelos irmãos Sherman a respeito dele. Em “Walt nos Bastidores de Mary Poppins”, Richard Sherman, que ainda está vivo, supervisionou a realização do projeto, já tendo gravado vários depoimentos entre a interação dele e de seu irmão com Disney. Não se houve uma única palavra de censura que tenha sido dita. E Richard faz questão de enfatizar que Walt adorava a trilha de Mary Poppins, em particular a música “Feed the Birds”, cantada por Julie Andrews para as crianças, a propósito da visita deles com o pai ao banco em frente à Catedral onde uma velha senhora pede 2 pence (“tuppence”) para alimentar os pássaros. Esta foi, inclusive, a última cena em filme da veterana atriz Jane Darwell, introduzida para que fosse prestada uma homenagem pelos inúmeros filmes por ela realizados.

Em “Saving Mr. Banks”, uma grande parte do roteiro foi baseada nas fitas gravadas por exigência de P. L. Travers, onde ela mostra o seu lado intolerante com os artistas de Disney e com ele próprio. Travers detestava animação e fez questão de dizer isso na cara do cineasta, chamando seus desenhos de “tolos”. Notem que o título em inglês do filme – “Saving Mr. Banks” – tem duplo significado: o primeiro, do fato da autora ter declarado que Mary Poppins aparece para redimir o seu pai biológico, transformado em livro pelo personagem Mr. Banks. O segundo aspecto foi a luta de Disney para conseguir a autorização de filmagem e seguir adiante com o projeto, que nesta altura, já havia consumido uma verba substancial e um esforço concentrado e de árdua criação de seus colaboradores.

 As versões em disco

Mary Poppins teve várias edições em videodisco (Laserdisc), e em DVD. Neste último, a inserção de uma trilha sonora aperfeiçoada para mixagem 5.1 se mostrou desastrosa. Mas, para sorte dos cinéfilos, a trilha Dolby 5.1 convencional é muito boa, com alguns efeitos direcionais na cena de dança do telhado (“Step in time”).

Na edição em Blu-Ray, foi feita uma significativa modificação da trilha sonora original. Aqui os técnicos optaram por adotar uma mixagem do tipo “mixagem de palco” (ou “stage mixing”), com a orquestra mais espalhada na frente, por força da interação entre os canais esquerdo e direito com os seus respectivos canais surround. A sensação, bastante prazerosa de se ouvir, é a de estar de frente, mas bem próximo da orquestra. Nas cenas do final (“Go fly a kyte”), o coral está agora mais ao centro, porém mantendo a dinâmica próxima do som original.

Eu posso estar enganado, mas eu acredito que a gravação desta trilha sonora deve ter sido feita em filme magnético 35 mm em seis canais. Embora seja teoricamente possível se conseguir esta nova mixagem com apenas três canais, a qualidade do som revela detalhes na mixagem que apontam para um número de canais maior.

Seja como for, o som atual, em trilha DTS HD MA, é excepcional. Existe uma discrepância entre as especificações do disco lançado na América do Norte e o brasileiro. No de lá, a trilha está especificada como 7.1, enquanto que a nossa é 5.1. Não acredito, entretanto, que o resultado possa ser diferente uma da outra, já que os efeitos surround acima mencionado são todos direcionais.

Finalmente, vale mencionar que a qualidade da imagem está dentro dos padrões de qualidade dos discos Blu-Ray do estúdio, com a perfeita preservação da granulação do negativo. Mesmo com a apurada técnica de composição com a luz de sódio, ainda é possível se detectar halos nos atores, mas nada que ofenda a visão de cada um.

Mary Poppins é um filme icônico da época em que foi feito. Como obra artística, suplanta as mais pessimistas das expectativas. Ganhou merecidamente a premiação que deveria ser entregue a My Fair Lady. Este último filme não é ruim, mas o ritmo é lento, moroso até próximo do final, e só não chegou a ser cansativo quando foi exibido no cinema, por conta da esplêndida apresentação em projeção 70 mm. Mary Poppins, por sua vez, em filme plano e mono, deu um banho de entretenimento e mensagens da melhor qualidade.

Parabéns ao estúdio Disney pelo esforço de preservação de seu material de arquivo por todos esses anos. Para benefício, sem dúvida, de estudantes e fãs de cinema. [Webinsider]

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Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.

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