A indústria fonográfica, estúdios e gravadoras, sempre estiveram tecnologicamente atrás do cinema. Neste último, o pioneirismo fez parte da evolução natural da mídia, primeiro com o som direcional e efeitos especiais (Fantasound, Walt Disney, 1940), depois com o som estereofônico para espalhamento do palco sonoro frontal e surround, através do Cinerama (7 canais, 1952), CinemaScope (4 canais, 1953), e finalmente Todd-AO (6 canais, 1955).
O som estereofônico de dois canais, mais conhecido como “Stereo” só foi colocado em prática pelas gravadoras quando o primeiro elepê estéreo foi comercialmente lançado em 1957. Antes disso, o usuário que quisesse ter som estéreo em casa teria que recorrer a fitas pré-gravadas.
A teimosia em insistir com o Lp mono ou estéreo se deveu em grande parte ao relativo baixo custo da mídia e à percepção dos seus proponentes que, em ambiente doméstico, dois canais seriam suficientes para se atingir o objetivo maior, que é o panorama frontal estereofônico da orquestra sinfônica. Nos estúdios, porém, nem mesmo a gravação de material erudito com três microfones a permanência de dois canais em fita master sobreviveu. Somente o consumidor final ficou prisioneiro de dois canais. Durante a década de 1970, algumas gravadoras perceberam que era possível aguçar o entusiasmo do público com mais canais. E como o disco elepê ainda era a mídia de eleição, criou-se o disco quadrafônico. Este, porém, teve sobrevida curta e só se foi falar em multicanal para música fonográfica cerca de vinte anos depois.
A gravação estereofônica de dois canais continua popular e, portanto, os antigos catálogos de discos elepês estéreo continuam a ser reeditados, em CD, MP3 ou qualquer outra mídia de dois canais.
A preservação ou restauração deste material fonográfico mais antigo, entretanto, exige conhecimento dos processos de captura e dos equipamentos usados no passado, incluindo os tipos de fita magnética usados.
A busca pela perfeição
Métodos de gravação fonográfica diretamente em discos foram suplantados e subsequentemente abandonados com o uso de fitas magnéticas, e só iriam, diga-se de passagem, serem ressuscitados em breve período da década de 1970, por proponentes como Sheffield Lab, Crystal Clear e outros selos, que achavam que o “corte direto” era superior à fita magnética.
Durante a década de 1950, os estúdios cujos donos se tornaram ligados a pesquisadores da área, se propuseram à busca por uma melhor formulação de fita magnética, que uniu fabricantes e engenheiros de gravação. Vários deles, como Robert Fine ou Robert Eberenz, para citar dois que criaram a série Living Presence para a Mercury, tinham seus próprios estúdios e métodos, e os disponibilizaram para terceiros.
A busca pelo aumento de qualidade levou essas pessoas a comparar resultados em fitas magnéticas de ¼ de polegada com a de ½ polegada, em diferentes velocidades e número de pistas. Mas, foi preciso também que os fabricantes de fitas mudassem o suporte no qual o pó magnético era depositado, para materiais menos abrasivos e menos quebradiços, ao mesmo tempo introduzindo lubrificantes e aglutinantes, capazes de tornar a fita como um todo durável e sem perder a sua coercividade magnética.
Um dos objetivos desta busca foi o de diminuir o flutter, que é uma oscilação ou flutuação de velocidade, induzida pela mecânica do gravador e pela qualidade da fita. O resultado do aumento do flutter é a audição de tremulação anormal no som de alguns instrumentos. O caso mais notório é o som do piano, instrumento este que se tornou um dos maiores tormentos para os engenheiros de som da época.
O aumento da uniformidade no transporte da fita magnética e a menor abrasividade da base na frente das cabeças melhoraram sensivelmente a gravação e reprodução da qualidade tonal de cada instrumento, dando assim um som bem mais “realista” e com melhor localização no espaço, esta última essencial para a reprodução estereofônica de dois canais.
A melhoria é compreensível: para que o ouvinte consiga perceber a tonalidade real de cada instrumento é preciso que a reprodução de transientes seja a mais precisa possível. O som transiente é uma onda de rápido e intenso ataque, seguido de queda abrupta.
A reprodução de transientes é crítica, porque ela precisa estar correta durante o processo de captura da onda sonora, até a ponta da cadeia de reprodução. A parte que compete ao estúdio demanda bons microfones, o mínimo de adulteração elétrica do sinal captado, e finalmente o armazenamento em mídia confiável, que foi, em última análise, o que se poderia caracterizar como a busca do santo graal do áudio, enquanto em ambiente analógico.
No que tange ao ouvinte, preservar transientes não é tarefa fácil. É preciso usar amplificadores rápidos, fontes de alimentação capazes de responder à demanda de amplificação sem causar distorção e, idealmente, a menor manipulação de sinal possível na cadeia de amplificação. Esta ausência de manipulação implica, entre outras coisas, não alterar a reprodução com controles de tonalidade. Durante anos, os teóricos chamaram isso de “fio (de amplificação) reto”, termo grosseiramente traduzido de “straight wire design”. E se tudo isso não bastasse, ainda seria preciso se conseguir caixas acústicas competentes.
Nós, até hoje, ainda vemos alto-falantes convencionais, bem melhores que os anteriores, é verdade, mas ainda assim incapazes de transmitir transientes como deveriam. Existem caixas de boa reputação com desequilíbrios tonais audíveis, e isto se deve não só ao alto-falante em si, como à própria rede divisora, aquela que separa graves, médios e agudos antes do sinal ser tocado. Caixas isoplanares melhoram muito o som neste aspecto, mas pecam pela ausência de dinâmica. Caixas eletrostáticas têm o melhor desempenho de transientes para médios e agudos, mas são nulas em baixa frequência e difíceis de casar com subwoofers.
Stereo 35 mm
O cinema usou gravadores Westrex RA-1547, de 6 canais para o processo de filmagem Todd-AO. As gravadoras, como no caso da Command, usaram reprodutores Westrex RA-1551, para alimentar os tornos Scully para o corte de acetato usado para a fabricação de Lps.
A “descoberta” dos gravadores de fita em filme 35 mm moveu os engenheiros de gravação independentes, como o acima citado Robert Fine (Mercury, Command) ou Bert Whyte (Everest) e vários outros, em tentar usá-los, com o objetivo não só de melhorar o transporte da mídia como também obter uma área de magnetização mais generosa, dando assim espaço ao aumento de dinâmica do som capturado.
Um outro fator de interesse é o da diferença do suporte. Nas fitas convencionais (¼ ou ½ de polegada) a espessura gira em torno de 0.5 a 1 milionésimo de polegada, enquanto que no suporte 35 mm este valor sobre para cerca de 5 milionésimos de polegada.
A diferença de espessura dificulta um fenômeno chamado de “print-through”, que é a magnetização de áreas adjacentes à área gravada, quando a fita é enrolada, e soa como um pequeno e falso eco.
Além disso, no filme 35 mm a área de fita a ser gravada aumenta cerca de 4 vezes, permitindo maior fidelidade, para até seis canais de música. Eventualmente, os estúdios vieram a resolver este problema com o uso de fitas de 2 polegadas e com o aperfeiçoamento das cabeças de gravação, mas até então os engenheiros de áudio resolveram apostar na fita em filme 35 mm.
Um dos principais motivos foi o uso de debitadores (rodas dentadas usadas para o para mover o filme), formando o que se chama de “closed loop”, uma espécie de laço composto pelo agrupamento das cabeças e rolos de transporte com o debitador:
O filme magnético 35 mm passa pela cabeça de gravação com uma velocidade padrão de 24 quadros por segundo, porque ele foi feito para sincronismo com filmes de cinema. A velocidade real, no tipo de medida que a indústria fonográfica usava, corresponde a 18 i.p.s. (inches per second ou polegadas por segundo). Em fitas convencionais, as velocidades mais comuns eram 15 ips ou 30 ips. Portanto, era a largura da mídia somada ao aumento de velocidade, que tornou o filme 35 mm um objeto de consumo entre engenheiros de áudio. A gravação obtida tem menos flutter e mais dinâmica, devido ao aumento da relação sinal/ruído.
Preservação e Restauração
A Sondor, empresa que ainda fabrica equipamentos analógicos para filme 35 mm, fornece suporte para a preservação ou restauração de gravações em 35 mm. É possível reproduzir, preservar (copiar) ou restaurar fitas de dois a seis canais.
O filme magnético padece da mesma “síndrome do vinagre” (anteriormente descrita nesta coluna) e, portanto, os estúdios de cinema começaram a transcrever o conteúdo de seus acervos para ambiente digital. É por isso, inclusive, que nós hoje podemos escutar com altíssima fidelidade trilhas sonoras feitas há mais de cinquenta anos atrás.
No caso dos estúdios fonográficos, muito deste material ficou abandonado, tendo depois se verificado que as fitas ficaram inaproveitáveis. O que sobrou e se tornou usável, se prestou para a restauração e digitalização por selos dedicados, seja de música popular ou clássica.
Abandono do formato
Eu confesso que não sei ao certo porque as gravações em filme 35 mm foram abandonadas, mas é possível levantar algumas suspeitas. Já na década de 1960, a fita magnética convencional melhorou em qualidade, e empresas como a Studer na Suíça introduziram decks de gravação cuja mecânica de alta precisão eliminou alguns problemas crônicos de transporte da mídia.
O número de canais nas máquinas analógicas modernas passou de quatro para oito e depois dezesseis ou vinte e quatro canais, sendo que duas máquinas de 16 em síncrono são capazes de gravar em 32 canais.
Mesmo depois de todos esses anos, o produto da restauração do material gravado em filme 35 mm nos mostra as qualidades que seduziram os seus proponentes naquela época. A nossa sorte é que não é preciso muito esforço para se reproduzir uma fonte dessas corretamente, porque o CD, apesar de “limitado” a 44.1 kHz de amostragem e 16 bits de resolução, é perfeitamente capaz de reter integralmente os transientes e harmônicos contidos na fita 35 mm original. Se dermos sorte, acharemos este mesmo material em formatos de alta resolução, tipo SACD ou DVD-Audio, mas sinceramente não creio, salvo melhor juízo, que irá se notar alguma diferença na reprodução. [Webinsider]
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.
2 respostas
Parabéns Paulo, por mais uma precisa aula de Áudio. Não tenho experiência operacional no assunto. Áudio tem muita subjetividade. Não pare de escrever. As novas gerações vão agradecer.
Instalei e trabalhei muito com a Sondor na Som Livre.Parecia uma máquina feita pela STUDER,mas a gente não tem saudade daqueles tempos.Sistema complexo,inclusive para sincronizar com uma máquina de 24 canais através de um Linx Film Interface,sem contar o peso de cada carretel com filme magnetico perfurado.Fizemos uns oito filmes,todos em Dolby pro-logic,um luxo na época.Acabou porque a industria de cinema nacional não pagava fielmente suas dividas,principalmente com os estudios. Fico surpreso da SONDOR ainda existir,pois até um computador Apple de custo acessível a nós,mortais pode sonorizar um filme com Pro-Tools.Abraços