Para quem já está ouvindo música a sério faz algum tempo, fica cada vez mais patente o que os antigos engenheiros de áudio já percebiam: a música estereofônica convencional, restrita a dois canais (ou caixas acústicas) frontais, é incapaz de reconstruir corretamente o ambiente no qual a música foi gravada.
A gravação em apenas dois canais, em modo “ao vivo” (sem edição), foi um vício adquirido por selos dedicados a audiófilos durante décadas. Ironicamente, as primeiras experiências com som estereofônico pelos diversos laboratórios previam a captura do som em pelo menos três canais, e quando a gente tem chance de ter às mãos um SACD autorado com uma fonte dessas (a série Living Stereo, por exemplo), dá para perceber a enorme diferença sônica na reprodução.
O problema é o que fazer com aquelas gravações cujas matrizes não existem mais. Há algum tempo atrás, eu dei uma dica sobre o uso de Dolby ProLogic II em Music Mode, mas de lá para cá toda esta tecnologia se diversificou.
Essencialmente, independente da tecnologia de aperfeiçoamento usada, a estratégia é a mesma ou bastante parecida. Ela se baseia na capacidade de distribuição de instrumentos musicais no espaço e na “ambiência” na qual eles estão localizados.
A ambiência se refere à atmosfera sonora que circunda a reprodução de um dado instrumento. O ouvinte tem então a sensação mais precisa do local onde aquele instrumento foi gravado.
As gravações de áudio variam em ambiência. Quando ela é nula, a gravação é dita como “seca” (ou “dry”, no termo em inglês). São “secas” as gravações feitas em estúdios com alto grau de amortecimento, ou seja, a energia acústica é parcial ou totalmente absorvida pelas paredes adjacentes. Pilhas de gravações dedicadas ao audiófilo são feitas desta maneira, com a desculpa de se estar aumentando o grau de acuidade na reprodução dos instrumentos. Em tese, esta afirmativa está correta, quando os microfones eliminam sons ao redor, que poderiam adulterar o som do instrumento, tornando-o sem “foco”.
Mas, as gravações “secas” são mais desagradáveis aos nossos ouvidos, tudo porque o nosso cérebro registra o espaço original das gravações quando ele se faz presente. Talvez, por isso, a melhor tradução para “dry” seria “árida”, já que os músicos parecem estar desprovidos de qualquer tipo de atmosfera ambiente.
O cinema moderno tenta compensar ambiência adicionando efeitos sonoplásticos aos canais surround, o que dá uma sensação complementar à imagem, de “estar naquele ambiente onde a cena se desenrola”.
E no caso da música esta perspectiva não é diferente, exceto que, ao invés de efeitos sonoplásticos, é o som dos instrumentos que são captados ou distribuídos espacialmente, com a ajuda dos canais traseiros, chamados, aliás, de “surround”, não por mera coincidência, mas porque se referem ao som que circunda o ouvinte.
E, de fato, tanto a distribuição frontal quanto a distribuição no ambiente são bastante afetadas pelos canais surround, para melhor ou para pior. Quem percebeu isso no passado distante foi David Hafler, que tentou fazer algo a respeito, criando um circuito (já comentado na coluna) para compensar este tipo de deficiência.
Um circuito como o de Hafler funciona muito bem quando se trata de dispersar o som pelo ambiente, por isso ele trabalha corretamente em trilhas Dolby Surround (Dolby Stereo). Mas, o controle sobre o resto das funções é praticamente nenhum.
Métodos mais sofisticados controlam o alargamento da reprodução dos instrumentos no palco sonoro que é criado na frente do ouvinte. Sons são agora ouvidos mais à esquerda ou mais à direita, independentes da profundidade do palco. Mas, esta profundidade pode também ser controlada, e colocar instrumentos mais para trás ou mais para frente, como se fosse um efeito estereoscópico (3D) auditivo.
Abaixo se pode ver um diagrama resumindo todos estes efeitos de percepção.
O controle de largura e profundidade só é possível através do controle ativo sobre o que é reproduzido nos canais central, surround esquerdo e direito.
Na década de 1970, um sistema chamado de Ambisonics se propôs a realizar este tipo de controle. Ele não se refere somente à reprodução, mas principalmente à maneira como o som é gravado em múltiplos canais, no caso 4. Ele também se presta aos hobbyistas, que querem construir microfones compatíveis, que obedecem à complexa matemática do processo. Vários dos algoritmos dos atuais decodificadores modernos, por hardware ou software, usam também as fórmulas Ambisonics.
Arquivos Ambisonics (com extensão “*.amb”) podem ser criados ou baixados, caso sejam compartilhados por alguém, e reproduzidos por programas dedicados. Entretanto, a decodificação em estúdio da gravação Ambisonics pode ser salva diretamente em discos com formato 5.1 canais, tornando-se assim disponível para qualquer usuário.
Discos em CD (2 canais) também podem ser codificados, no processo “UHJ”. Uma lista destes discos é mantida em site de fãs do formato. A reprodução desses discos requer um decodificador, caso contrário eles serão reproduzidos como estéreo convencional. O decodificador recria as perspectivas tridimensionais das escalas W, X, Y e Z (também conhecidas como “formato B”).
Fabricantes high-end como a Meridian oferecem decodificadores 5.1 com Ambisonics incluído. Infelizmente, o projeto original em si não seguiu adiante por diversos motivos. Para quem tiver interesse no assunto, eu sugiro a leitura desta página do site Ambisonic.net.
Conversão por hardware
Embora o Ambisonics seja tecnicamente competente, o usuário final poderá dispor de outros meios de conversão estéreo para 5.1, às vezes com controle sobre o resultado final. Neste caso, a fonte de áudio será qualquer gravação estéreo convencional.
O conversor estará normalmente em circuito integrado de alta densidade, podendo ser do tipo “single-chip solution”. Caberá ao fabricante projetar que tipos de processamento de áudio serão acrescentados aos decodificadores instalados, ou circuitos proprietários.
Além do já citado Dolby ProLogic II/IIx Music Mode, estão disponíveis os formatos DTS Neo:6 Music, THX (S2) Music, etc. Se instalados e configurados alto-falantes para “Front High” ou “Front Wide”, outros tipos poderão estar disponíveis, como por exemplo, o Audyssey DSX. Este último formato, entretanto, foge do escopo deste texto.
Os termos usados para os ajustes (quando disponíveis) variam de um formato para outro, mas tem o mesmo significado. Por exemplo: nos ajustes do Dolby ProLogic II/IIx, o termo “Panorama” se refere ao alargamento do palco, enquanto que “Dimension” se refere à profundidade do mesmo, tanto para frente quanto para trás. Além deles, o ajuste “Center Width” (ou “Center Mode”) se refere à aproximação ou afastamento dos sons, tomando o centro (canal central) como referência.
O leitor deverá procurar no manual do equipamento os termos usados especificamente para os ajustes implementados, e de acordo com a orientação de ajuste dada aos mesmos.
Conversão por software
A Virtual Studio Technology, conhecida como VST, é uma interface criada pelo braço de programadores da empresa alemã Steinberg, que tem como objetivo o acoplamento, na forma de plug-ins, de módulos que permitam edição, criação de efeitos ou síntese de áudio, em programas escritos por qualquer software-house dedicada. Abaixo, pode-se ver a imagem do painel de ajustes do plug-in V.I, escrito por Steve Thomson, para conversão de estéreo a 5.1, incluído nos programas da Cirlinca. Nestes tipos de programa é feita também uma integração entre a autoração de um disco de áudio com o plug-in, não sendo necessário processar cada módulo individualmente, para só então depois montar o disco. Eu fiz a opção de explicação para o leitor através do módulo integrado, que é mais simples. Porém, o que for descrito para ele pode ser aplicado a plug-ins VST semelhantes.
O módulo VST do plug-in de conversão V.I permite a comparação entre os ajustes efetuados e o sinal da fonte, através do botão “ON/OFF”, localizado no canto superior direito do editor. O comando é muito útil para se ter noção das mudanças nos ajustes, uma espécie de antes e depois (“preview”), ou comparação “A/B”.
“Width Correction” (“Correção de Largura”) é uma barra de slide cujo centro é a posição default. O ajuste serve para acertar a largura do palco, como visto no diagrama acima. Se a fonte estéreo foi gravada com sinais totalmente à esquerda ou à direita (“hard left” e “hard right”, respectivamente) é possível que o afastamento default acabe tornando a largura do palco excessiva. Neste caso, a correção pode ser feita arrastando-se a botão da barra para a esquerda. Se a gravação fonte exibe uma concentração excessiva de instrumentos ao centro, o botão então deverá ser deslocado para a direita, aumentando assim a largura do palco sonoro frontal, e “abrindo” a reprodução frontal.
O botão “Movie Mode” (“Modo de Filme de Cinema”) faz o mesmo efeito de diminuição da largura do palco, centralizando mais a reprodução dos instrumentos, exceto que para um valor fixo de ajuste. O termo usado “Movie” se refere à modificação do formato Dolby Stereo, de deslocamento dos diálogos espalhados pelos três canais da tela (CinemaScope) para a reprodução exclusive no canal central. O “Movie Mode” poderá ser útil para usuários que não têm interesse ou não querem gastar tempo com o ajuste de largura acima descrito.
O controle “Front Ambience” (“Ambiência Frontal”) modifica a profundidade do palco sonoro frontal. A ambiência é conseguida pela ênfase da presença de harmônicos de cada tipo de instrumento. O usuário poderá deixar o ajuste de largura do palco inalterado e modificar um pouco a ambiência com este ajuste, já que um afeta o outro.
Já em “Rear Ambience” (“Ambiência Traseira”) o autor do plug-in alega ter usado cálculos do formato Ambisonics, para separar harmônicos em todo o som jogado para os canais surround. O ajuste precisa ser acompanhado do controle de amplitude dos canais traseiros, o que é conseguido pelo botão do “Rear Level” (“Nível Traseiro”). Se o nível de volume dos canais surround for excessivo, o som frontal será irremediavelmente afetado, tornando-se confuso ou com pouco foco. O nível ideal é aquele no qual a ambiência do palco frontal é correta, dando a sensação de espaço ao redor do mesmo, e sem a perda de localização dos instrumentos. Pode-se alcançar esta situação aumentando-se gradativamente o nível de reprodução dos canais surround, até notar o colapso do palco frontal, e depois reduzi-lo para eliminar a interferência dos mesmos.
O botão assinalado como “LFE” comanda a inserção informação “.1” para os programas convertidos. Normalmente, o LFE não é usado para a reprodução de áudio em cinco canais, e quando o programa é formatado em “5.1” nas mídias comerciais (SACD, por exemplo), o LFE não contém informação alguma. Por isso, a posição default deste comando no plug-in é “LFE desligado”.
Comentários
As gravações estereofônicas mais antigas, particularmente aquelas que exploraram a separação radical de instrumentos para a esquerda ou para a direita, deram pouca ênfase para o conteúdo de áudio na parte central do palco, deixando-o para a exibição de efeitos artificiais de ambiência, como aqueles das câmaras de eco.
Idealmente, a meu ver, a distribuição de som na parte frontal deveria ser uniforme, com a presença do canal central, de forma a se garantir a reprodução com o mesmo nível de amplitude (volume) entre os três canais. Quando é possível ser feita a instalação de uma caixa central com timbre idêntico ao das laterais a chance de sucesso aumenta significativamente. Tanto assim que alguns fabricantes preferem fornecer caixas frontais casadas para o consumidor.
O aumento da largura do palco frontal, mantendo-se esta uniformidade, torna a percepção dos arranjos orquestrais bastante agradável, dando a sensação de maior proximidade ou então de envolvimento com os instrumentos.
Este sensação de espaço não seria possível com o uso de apenas duas caixas frontais. A conversão de material estereofônico para multicanal, em instalações compatíveis, torna-se, portanto, bastante justificada.
Para a reprodução de música, o conjunto de caixas em formato 5.1 atende a todas essas necessidades. Uma lista sobre os vários formatos disponíveis pode ser achada nesta página da internet. [Webinsider]
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Leia também:
- Everest Stereo 35 mm
- As raízes do Dolby Stereo
- Marchas e contramarchas da ciência e da tecnologia
- O som que não dá certo
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- Anatomia de um Blu ray player
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.
9 respostas
Nestas páginas encontram-se o circuito Hafler entre outros assemelhados:
A. https://midimagic.sgc-hosting.com/quadindx.htm
B. https://midimagic.sgc-hosting.com/quadrafon.htm
c. https://midimagic.sgc-hosting.com/surrfeld.htm
D. https://midimagic.sgc-hosting.com/uq-1a.htm
E. https://kantack.com/surround/surround2.html
Olá, Robson,
7.2 é a mesmíssima coisa que 7.1, apenas com o acréscimo de um subwoofer, pode ser instalado na parte traseira da sala.
O formato 7.1 é uma extensão do 6.1 (três canais na frente, dois surround laterais e um surround traseiro (chamado de Surround Back ou SB). Na montagem original previu-se dividir o Surround Back em dois canais, mesmo tocando em mono (6.1). Nos equipamentos subsequentes, o SB foi dividido em esquerdo e direito, mas retro compatível com 6.1 e 5.1, não importa quantas caixas sejam instaladas no sistema.
Eu chamo a sua atenção para o seguinte: é o usuário quem determina quantas caixas e de tipo elas são instaladas. O decodificador Dolby Digital, que foi a base dos atuais decodificadores, prevê que se deve instalar um par estéreo frontal como instalação mínima. O decodificador então simula o canal central e ignora os canais surround. Quanto mais caixas forem instaladas menor será a ação de simulação do decodificador. Assim, você pode instalar 5.1 e ter a reprodução de material 6.1 ou 7.1.
É claro que, se a instalação for completa, o resultado obtido será bem melhor. Só que, a princípio, não há necessidade de se instalar 7.2, a não ser que existam razões acústicas para tal.
Não há dano algum em se instalar menor número de caixas do que o previsto. Os A/V receivers são projetados para alimentar as caixas instaladas dentro do previsto nos modelos. Além disso, circuitos de proteção nas saídas irão impedir danos típicos de caixas inadequadas ou mal instaladas.
[ 1º ] Robson FernandesData : 10/08/2014 às 22:03
Cidade: Teófilo Otoni-MG
Atividade:
Professor… o receiver que disse apresenta 7.2… sendo que 4 caixas seriam surround (duas + duas traseiras)… pergunto-lhe: obrigatoriamente tenho que conectar caixas surround nesses canais??? o que aconteceria se eu plugasse caixas acústicas, como as frontais, por exemplo??? Outra pergunta…. posso usar normalmente alguns canais, duas caixas por exemplo SONY SS-F55H deixar os demais canais sem usar? Danifica o receiver?? Leigo no assunto, ok. Abraços, professor!
Oi, Allan,
Obrigado pelo link. O texto lembra muita coisa da minha época de menino, quando muita gente lá da rua já sabia que Moacyr Silva era o Bob Fleming. Por acaso, o pai de um amigo de infância trabalhava na indústria de discos e conhecia bem o Nilo Sergio. Pena que ele não está mais conosco para recontar essas estórias.
O Tom eu descobri por um amigo meu, que acompanhou algumas das sessões onde o compositor gravava, e chegou a ter algumas cópias das fitas, todas elas depois perdidas, por qualquer motivo.
Eu concordo contigo que ainda tem muita memória para ser preservada, e qualquer coisa que se faça neste sentido terá todo o meu apoio. Não só a preservação em si, mas principalmente a divulgação dela ao público.
Caro Paulo Roberto,
Veja que artigo interessante ( https://medium.com/from-brazil-brasil/cce0da7a075c ) . Lembrei dos seus comentários sobre tanta história.
Seria muito interessante um local ou mesmo artigo dos bastidores de como tantas músicas “famosas” hoje em dia, foram desenvolvidas para se tornarem clássicas.
Como deve ter sido uma gravação de Chovendo na Roseira?
Abraços.
Oi, Érika,
Já mandei mensagem junto ao Vicente Tardin, obrigado pelo convite.
Bom dia, Paulo.
Gostaria de convidá-lo para uma entrevista para um quadro do Globo Cidadania. A pauta é tecnologia OLED.
Caso tenha interesse, me passe, por gentileza, o seu contato, para que possamos nos falar melhor.
A gravação seria amanhã, 16/05.
Obrigada.
Um abraço,
Uma aula de áudio. Escutei muito stereo como Dolby Pro-Logic II sem saber direito que o que fazia estava certo ou não 🙂
Ainda não pude acertar um modo 5.1 mas já experimentei bons surrounds.
Paulo, agora que me aposentei posso ler seus textos com mais tempo. Quanto mais você escrever sobre Àudio, melhor. Quem ouve um surround 5.1 em local adequado, não aceita mais stereo. Em uma NAB a NHK mostrou um layout para um arranjo de 22.2 (não estou muito certo nesses valores). Foi um sucesso. Não pare de escrever.