Não haveria como iniciar uma série de artigos sobre a digitalização das relações humanas sem ter como assunto introdutório aquilo que move o mundo, o amor dinheiro.
Por mais puritano, utopista e ‘kumbalaia’ que alguém possa ser, o dinheiro traz, sim, felicidade, e nada me convenceu do contrário. Quer dizer, não o dinheiro em si, mas a tranquilidade que ele pode proporcionar enquanto você vai atrás de usar seu tempo com algo que te deixe feliz.
E, sendo assim tão relevante no mundo em que vivemos, não é de se surpreender que revoluções ocorrem mais rapidamente quando se nota que é possível gerar mais riqueza ao adotar novas tecnologias e novos comportamentos.
O capítulo de hoje na reflexão sobre a digitalização da vida, então, trata das Fintechs, cuja melhor definição que vi para o termo foi do Marc Berry Reid (COO da agência Way to Blue):
Fintechs são startups com abordagens disruptivas que querem fazer com o mercado financeiro o que o Uber fez com os táxis.
Para entender o quanto as Fintechs quebram um modelo “tradicional” de gestão de valores, temos que refletir sobre o quanto fomos (e somos) ludibriados pelo sistema bancário.
Vem pro banco você também, vem! #sqn
O economista François Morin, da Universidade de Toulouse e conselheiro do Banco Central francês, questiona em seu livro L’Hydre Mondial (a Hidra Mundial) o poder de 28 bancos que globalmente formam um oligopólio financeiro e, com isso, controlam e influenciam como o mundo se desenvolve (inclusive, ele sugere a destruição destas empresas em prol do bem público).
Mas como chegamos ao ponto de termos instituições centralizadas na gestão das riquezas?
Não indo muito longe na história, vemos uma mudança de pensamento dos nossos bisavós/avós para hoje. Uma vez aceito que aquele pedaço de papel (dinheiro) tinha valor, nossos bisavós/avós queriam proteger esse valor mantendo-o próximo, por isso as velhas histórias de ‘guardar dinheiro no colchão’.
Nossos pais/avós, porém, perceberam que ele ficaria mais “seguro” se estivesse em algum lugar cheio de guardas e aí começamos a bancarizar o sistema monetário. Ao também perceberem que o dinheiro perdia valor ao longo do tempo (depreciação/inflação), custaram um tempo a entender que o rendimento da poupança não estava “dando dinheiro” pra eles, mas sim compensando, porcamente, esta desvalorização.
No Brasil, especificamente, os tempos de hiperinflação praticamente criaram uma dependência do sistema bancário para proteção do valor do dinheiro (e o lendário “overnight”); o salário era um bloco de gelo na sua mão, que ia derretendo até você guardá-lo no banco e tentar evitar sua estrondosa depreciação.
Os bancos tornaram-se, então, mamutes corporativos, impressionantemente robustos em vários sentidos (quem tiver a chance de visitar a sede do Bradesco, em Osasco, ou o complexo de prédios do Itaú, na região da Conceição, em São Paulo, não perca essa oportunidade; é impressionante).
Mas essa grandiosidade, como em muitos casos, teve como consequência negativa o engessamento dos processos e o distanciamento do pensamento voltado ao cliente.
A transparência e suporte nas decisões diárias para com o cliente é tão ruim nas instituições bancárias tradicionais que deu margem ao surgimento de “intermediários de informação” como, por exemplo, o Guia Bolso, no Brasil, a Mondo, no Reino Unido – apps que consolidam as informações financeiras e de cartões de crédito em um mesmo local, além de ajudar no planejamento e acompanhamento das despesas mensais. Fazem o que os bancos deixaram de fazer: ajudar o cliente a gerenciar seu próprio dinheiro.
Na verdade, o problema dos grandes bancos é o mesmo das grandes empresas: tornaram-se transatlânticos com centenas de capitães, onde, para desviar de um iceberg, levam um ano.
Muita gente para “decidir” (e a maior parte delas lutando para não mudar o modelo com o qual já se acostumaram a trabalhar depois de décadas, refletindo o perfil dos funcionários). Isso os impede de confrontar elementos do status quo.
O primeiro deles: ganhar dinheiro junto com os clientes e não usando-os como matéria-prima para recursos de capital.
A forma mais simples dos bancos ganharem dinheiro hoje em dia é usar o dinheiro dos clientes que o tem guardado e emprestar para aqueles que precisam de mais. Cobram 10% ao mês dos que emprestam deles e pagam de volta 0,8% ao mês pros clientes que emprestaram.
E meu banco ‘tradicional’ quis me ‘vender’ empréstimo pessoal (onde eu pagaria “apenas” 8% ao mês) para cobrir um financiamento imobiliário (onde eu pagava 8% ao ano), quer dizer…
Só isso já mostra o quão ridículo é pagar pela “manutenção da conta” e uma série de outros serviços que os bancos empurram (estou pagando pro banco poder usar meu dinheiro pra ganhar mais dinheiro pra eles).
Lembra quando havia um limite mensal no número de acessos ao internet banking e no número de ‘folhas de cheque’ que poderiam ser usadas?
Funcionário do mês: taxa de juros
Fazendo um parênteses no texto, sua vida muda ao perceber que pode fazer o dinheiro trabalhar pra você. Em um processo de mentoring, eu falava que meu objetivo profissional era “não ter que trabalhar pra ganhar dinheiro” (legalmente, claro).
O trabalho enobrece o homem, é verdade; mas quando seu objetivo principal é “ganhar dinheiro”, acaba tendo que engolir muito sapo pra sustentar o brejo.
Poupar significa ‘vender seu tempo’; poderia ter um carro mais legal, uma casa maior, ter feito uma viagem bacana ou ido em um restaurante da moda; mas optei por não fazer isso, poupar (economizar esse tempo) para vendê-lo depois (e ganhar com isso de forma que, agora, posso fazer essas outras coisas); é uma ‘aposentadoria’ antecipada – e, mantendo o capital, sem consumir o dinheiro que juntou a vida toda (fugindo um pouco da horrível pergunta quando abre um plano de previdência:”quando você acha que vai morrer?”).
Mas… voltando ao tema…
Aí veio a internet!
O internet banking foi uma revolução no atendimento, não no modelo financeiro. Ele automatizou processos que antes fazíamos na boca do caixa ou com o gerente. Claro que isso implicou em uma menor necessidade de bancários, agilizando os comandos; mas, fundamentalmente o que o internet banking fez (e, nos bancos tradicionais, faz) foi transferir para o monitor o que você fazia, antes, com uma interface humana.
As Fintechs não fazem isso; tampouco fazem uma app bonitinha; o que eles fazem é questionar o modelo de relação entre fornecedor e cliente, simplificando-o, deixando mais transparente e ganhando junto com o cliente.
Em todo o mundo, o mercado financeiro é extremamente regulado (no Brasil pela CMV) e o pulo do gato destas Fintechs é ter pessoas que conhecem e respeitam as regras mas não se submetem a burocracias e processos desnecessários. É quando o “é assim que sempre fizemos” perde.
O Paypal inovou ao popularizar o conceito de e-wallet, que, no fundo, é um lugar onde você deposita seu dinheiro para passar para outros (tipo assim, um banco?). O que todas carteiras virtuais (Uol Pagseguro, Bcash, etc) querem é que você deixe seu dinheiro lá para eles o investirem e ganharem com isso. Estão usando seu capital para gerar renda para eles.
E esta fragmentação é vista também em ‘empresas não financeiras’. Ao permitir o carregamento de dinheiro em seu aplicativo, o Starbucks não está tornando a vida de seu consumidor mais simples (permitindo pagar “pela app”), mas sim tornando-se um captador de recursos financeiros (e usando isso para investir e ganhar dinheiro não só vendendo cafés com nome próprio).
Dá para (quase) todo mundo ganhar dinheiro junto
Finalmente chegamos àqueles que corrompem este universo de verdade…
O amor criado pelo cartão de crédito roxinho que não cobra anuidade e ainda tem um atendimento “gente fina” é a resposta imediata ao descaso do modelo tradicional de cartões de crédito. Já falei um pouco sobre isso neste outro artigo.
Se estamos aceitando mais facilmente trocar valores em bits e bytes (e-commerce), usar e-wallets (Paypal, Pagseguro, até o Starbucks), cartões de crédito gerenciados via app – que, aliás, só tem um cartão físico porque ainda não há estrutura para virtualizar a operação (Nubank) e corretoras de investimento/homebroker virtuais, chegará o momento em que questionaremos a simples custódia do dinheiro?
Por exemplo, o Banco Original, outra startup brasileira, busca desburocratizar e, através da conectividade, dar a transparência necessária na relação banco-cliente.
A gente não quer só comida; a gente quer comida e rentabilidade que se reparte
Desde que o dinheiro deixou de ser encarado como algo físico (notas, moedas) e passou majoritariamente a circular através de bits e bytes, em transações eletrônicas, ele passou a contar com diversos benefícios catalisados pelo mundo digital: transparência, agilidade, amigabilidade, humanidade.
Às grandes instituições, descobrirem como incorporarem isso além de sua publicidade, quer dizer, eliminar décadas e décadas de processos burocráticos em prol de uma maior proximidade com o cliente, efetivo dono do dinheiro e que, aos poucos, vem fragmentando a distribuição de sua riqueza.
Em outro movimento, buscar fragmentar seus serviços de forma que o conceito de “correntista” desapareça, e eles passem a ter clientes que podem consumir serviços individualmente, se assim for mais vantajoso.
Em resumo, não queremos mais tomar cafezinho com o gerente, queremos alguém que nos ajude a facilitar nossa vida e ganhar mais dinheiro (se, nesse processo, eles também ganharem, ótimo! Mais que justo).
As Fintechs já sabiam disso, e estão descobrindo como fazê-lo em um dos mais regulados, burocráticos e, até então, engessados mercados do mundo. [Webinsider]
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http://br74.teste.website/~webins22/2016/05/21/digitalizando-os-pilares-da-existencia-humana-1/
JC Rodrigues
JC Rodrigues (@jcrodrigues) é publicitário pela ESPM, pós-graduado pela UFRJ, MBA pela ESPM. Foi professor da ESPM, da Miami Ad School e diretor da Disney Interactive, na The Walt Disney Company.