Chegou com certo atraso no Netflix, mas chegou, o excelente documentário “Janis: Little Girl Blue”, feito por Cat Powers para a PBS, uma espécie de TV Educativa americana, rodado especificamente para a série American Masters.
E é uma pena que mais documentários desta série não venham regularmente para as telas de TV brasileiras.
Janis Joplin chegou ao meu conhecimento como fã de música no documentário Woodstock, exibido nas nossas praias no falecido cinema Rian, que ficava na Avenida Atlântica, Copacabana, Rio de Janeiro. Se a memória não me trai, o documentário Monterey Pop, também realizado em evento semelhante, foi exibido bem depois, não me lembro por que.
Na minha época do início da faculdade (circa 1971) Janis Joplin era assunto dos colegas de campus mais chegados e com traços da mentalidade hippie, embora na prática nunca o tivessem sido de verdade. Eu mesmo, que tinha cabelos escorrendo pelos ombros, cheguei a receber um convite para morar em uma comunidade, embora nada tivesse a ver comigo ou com o meu jeito de ser, sinceramente. Mas, eu acreditava na franqueza e na singeleza desses meus colegas, todos procurando uma harmonia com o meio ambiente, difícil de achar até hoje!
Como eu cresci ouvindo jazz, a música de Janis Joplin nunca foi estranha, e neste documentário fala-se por alto da sua convivência com negros da sua região, vítimas de intensa exclusão racial em solo americano. Pois Janis Joplin, que logo cedo se identificou com o Blues, também foi alvo de exclusão e segregação, tendo sofrido intensa intimidação (que alguns reconhecem como “bullying”) na escola onde estudava.
A intimidação que Joplin sofreu foi acompanhada de uma humilhação acachapante. Os “colegas” da cantora, membros de uma fraternidade local, chegaram ao ponto de publicar em um jornaleco elegendo Joplin como “o homem mais feio do campus”.
O filme de Cat Powers expõe com competência o reflexo que tudo isso trouxe à vida posterior de Joplin. Uma vez segregada, partiu para outras cidades, eventualmente chegando ao ambiente moderno e libertário de San Francisco, onde ela encontrou o terreno fértil para dar vazão ao seu potencial criativo.
Ouso dizer que se alguém prestar um pouco de atenção irá perceber que o Blues cantado por Janis Joplin tem traços do Blues tradicional das cantoras negras americanas, mas não é igual nem similar em nenhum outro aspecto.
Vários dos músicos de rock se ampararam no Blues de diversas maneiras. Até mesmo o rock-and-roll da década de 1950 apresenta fundamentos conhecidos do estilo “rhythm and blues”, originário do jazz. Toda esta diversidade em torno do mesmo gênero musical permitiu Janis Joplin criar o seu próprio estilo, caracterizado por momentos de intensa gritaria e desespero, em torno das letras das músicas interpretadas naquele período.
O rock-and-roll tem esta peculiaridade: ao externar revolta e histeria na performance e interpretação das músicas, ele atrai adolescentes que passam por turbilhões de crises de emotividade causadas pela revolução hormonal que caracteriza esta faixa de idade.
Mas, Janis Joplin o fez intuitivamente, creio eu. A gritaria contínua de sua voz rouca lhe permitiu extravasar toda aquela revolta em torno da humilhação que sofrera na adolescência, vítima que foi da maldade humana de jovens sem qualquer traço de comiseração com as limitações de terceiros!
Ironicamente, Janis Joplin alcançou uma fama e uma reputação no meio musical e entre os seus fãs que seus antigos colegas de campus não conseguiram, nem que tivessem feito todo o esforço do mundo.
Se não fosse pelo seu apelo autodestrutivo, Janis Joplin teria sobrevivido para humilhar de volta os seus detratores sem precisar fazer esforço algum neste sentido, mas as drogas e principalmente a solidão acabaram por destruir o pouco que lhe restou de vida.
No documentário é fácil perceber a fragilidade de Janis Joplin associada aos traumas de sua vida íntima. E é interessante perceber que muitos grandes artistas que sofreram barbaridades e frustrações na vida pessoal acabaram por se tornar expoentes na arte que praticaram. É que o sofrimento, nesses casos, se tornou um importante elemento impulsionador do processo criativo.
A solidão e a falta de amor e carinho são dois fatores que podem destruir a vida de qualquer pessoa. E é bastante possível ser solitário no meio de um grupo de pessoas! Basta que as identificações parem na superfície das personalidades alheias.
Classificar Janis Joplin como “rainha do blues”, como foi feito na imprensa do passado, é um pouco de exagero, mas certamente ela teria merecido destaque neste tipo de interpretação, já que ninguém antes dela cantou da maneira como ela o fez.
O sofrimento íntimo em formato musical
Um dos meus músicos favoritos de jazz moderno foi Roland Kirk. Versátil, perfeccionista e grande instrumentista, seja como solista seja em grandes grupos. Uma vez eu estava ouvindo o antológico álbum “We Free Kings”, gravado pelo selo Emarcy, da Mercury Records, quando me dei conta de alguma coisa diferente no jeito de Kirk tocar. Lendo o encarte do disco, eu descubro que o músico era cego. No disco, uma das músicas compostas por ele foi escrita em homenagem ao filho que ele nunca viu. A angústia de Roland Kirk fica patente na maneira como a música é tocada, e uma vez percebida é difícil deixar de notar!
Assim como Roland Kirk, Janis Joplin usou o tom melancólico do Blues para botar para fora os seus momentos íntimos de angústia. Se a gente for a fundo nisso, irá notar também que vários músicos desta geração trilharam caminhos semelhantes, e vários deles acabaram por se tornar adeptos da fuga impulsionada pelo uso de drogas com efeito farmacológico poderoso, e que os deixaram “chapados” dentro dos palcos, perante uma plateia que se identificou com aquele tipo de alienação.
O ser humano pode fazer uso de um monte de maneiras de se alienar do ambiente que o cerca, sempre com o objetivo de afastá-lo da sua realidade de vida. Fugas como drogas e sexo sem controle são até hoje associadas ao rock-and-roll e são ambas autodestrutivas.
Alguns tipos de alienação são saudáveis, como o envolvimento com processos criativos. Não se admira, portanto, que Janis Joplin tenha declarado várias vezes que só se sentia feliz pisando no palco e interpretando suas músicas.
Qualquer ser humano, uma vez envolvido em algum processo autodestrutivo termina por ter dificuldade de sair desta condição, principalmente quando ele atinge o fundo do poço.
Nessas horas, a base educacional e porque não dizer o nível de cultura e compreensão das atrocidades do cotidiano são ambos fatores que ajudam a sair do buraco. E se não houver cuidado, volta-se para o buraco de novo, fruto de uma depressão recorrente.
Janis Joplin recorreu ao álcool depois do uso continuado de heroína. Ambos os processos de detoxicação são bastante competitivos e dependem de uma função hepática hígida. Quem não se trata corretamente corre risco de vida. Aconteceu com Billie Holliday e aconteceu com Janis Joplin. Por uma insólita coincidência, ambos eram cantoras de Blues. [Webinsider]
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.