Uma das coisas mais odiosas que um ser humano pode fazer com outro é o que se convenciona chamar de humilhação, noção que se aplica ao resultado de vários formatos e tipos de conduta de um agente agressor.
Pior ainda é quando, por vingança ou egocentrismo, uma pessoa tira a vida de outra. E quando se trata de guerras, esses assassinatos são cometidos em nome de um ideal político, igualmente desprezível!
E aconteceu que na América Latina a infiltração comunista criou vários tipos de células e partidos, que deixaram partes das populações de vários países se sentindo ameaçadas. A guerra política começou quando militares de linha dura e os anticomunistas de carteirinha tomaram o poder à força.
O Brasil, que já havia passado pela ditadura do Estado Novo, passa por momentos conturbados na década de 1960, que acabou redundando, pelos mesmíssimos motivos, na revolução militar de 1964. Ao longo deste período e em volume cada vez crescente grupos armados da esquerda radical foram combatidos por organizações militares e paramilitares. O pico da repressão militar aconteceu a partir do início da década de 1970, como todo o tipo de arbítrio, amparado por uma legislação imposta pelo regime no fim dos anos sessenta.
Em 2008, eu fui ao cinema assistir Os Desafinados, de Walter Lima Jr., e logo me pareceu ter visto algo familiar no personagem Joaquim, personificado pelo ator Rodrigo Santoro.
E eis que no final do filme Joaquim é preso na Argentina e desaparece. Aí, é claro, caiu a ficha: o roteiro pinçou o que acontecera com o talentoso pianista, oriundo do movimento de bossa nova no Rio de Janeiro, Tenório Jr. Tenório saiu do hotel de madrugada para comprar cigarro (dizem alguns “comer um sanduíche”) e remédio, e nunca mais voltou. Somente em tempos recentes se confirmou o que todo mundo suspeitava: o grande músico havia sido preso pela repressão argentina, torturado e depois assassinado.
Por coincidência, esse foi um dos traumas que eu descobri enquanto ouvinte de música na minha adolescência, o outro, comentado aqui mesmo, foi o de Lee Morgan, morto pela mulher dele, em um crime passional absurdo.
Mas, convenhamos, um crime cometido por um motivo político, sem chance de defesa, portanto covarde, é duzentas vezes pior. Tenório Jr. foi preso em 18 de março de 1976 e tudo indica torturado e assassinato alguns dias depois. Denúncias em 1986, divulgadas pela revista Senhor, contam detalhes do que supostamente havia acontecido naquele março de 1976. Nada daquilo poderia ter aplacado a dor da família que Tenório deixou para trás. Para os fãs, uma perda irreparável, brutal e altamente condenável, ponto!
A curta carreira de um grande músico
Francisco Tenório Junior nasceu e se criou no bairro de Laranjeiras, Rio de Janeiro, em 1941. Teria hoje 76 anos de vida. Segundo consta, foi aluno da Faculdade Nacional de Medicina (atual Faculdade de Medicina da UFRJ, onde trabalhei), mas foi como músico talentoso que se firmou nas noites dos grandes instrumentistas da fase inicial da bossa nova, que ocorreram em recintos do lendário Beco das Garrafas, em Copacabana.
Em meados de 1964, Tenorinho, como era conhecido pelos seus pares, grava o Lp Embalo, pela mambembe RGE, no qual se pode ouvir uma síntese do samba jazz daquela época.
A fita master original foi remasterizada anos atrás, e editada tanto pela Dubas Musica quanto pela Som Livre, que herdou o catálogo RGE. Deste disco, uma das faixas que mais me agrada é “Fim de Semana em Eldorado”, que o leitor pode ouvir abaixo:
Vai ser difícil atualmente achar qualquer das duas edições em CD do disco Embalo, mas o leitor poderá achar todas as faixas transcritas no YouTube.
O trabalho de Tenório Jr. pode ser apreciado na discografia de outros músicos. Muitos dos CDs de bossa nova desapareceram do mercado e com isso fica difícil recuperar o seu trabalho em estúdio. Entre os discos raros está o de Édison Machado “É Samba Novo”, gravado pela CBS e já comentado nesta coluna.
Sem desculpas
Às vezes eu me pergunto, olhando para o cenário político-social brasileiro: até quando as pessoas vão continuar acreditando em promessas de políticos?
Nós saímos de várias das mais brutais ditaduras militares, onde gente inocente foi torturada e morreu vítima da repressão clandestina, como Tenório Jr., que foi uma espécie de efeito colateral de uma guerra que não lhe pertencia.
Saíram os militares, voltaram os políticos, infelizmente com aquele discurso demagógico, combinado com a auto investidura de salvadores da pátria. Nestas circunstâncias, é muito fácil a qualquer um que tenha vivido as duas épocas se sentir traído. O mínimo que se esperaria é que lições tivessem sido aprendidas, para que nada do passado fosse repetido.
Político nenhum irá salvar este país. Nos anos pós-ditadura nós assistimos a prova viva de que isso é real e verdadeiro, e hoje nos deparamos com notícias tristes, dando conta da corrupção, da roubalheira e da destruição das instituições públicas que outrora eram patrimônio intocável da cultura brasileira.
Somente a consciência popular poderá mudar isso, desde que ela se manifeste corretamente nas urnas. Claro, com candidatos escassos, tal tarefa é quase impossível, mas mesmo assim o povo pode, e a meu ver deve, se manifestar, nem que seja abrindo mão do direito de votar. Como cada um sabe o que é melhor para si, eu só posso desejar que as pessoas comecem a agir com bom senso, e coloquem para fora em definitivo essa gente que diz que trabalha para o povo, mas no final é apenas parte de um processo para se manterem no poder. [Webinsider]
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.
2 respostas
ESPETACULAR velho amigo Paulo!!!
Quantas lembranças….havia um velho piano na sala do diretório da FNM. Por muitas vezes vi Tenório tocar. Haviam mais 2 excelentes pianistas. Um deles viria a ser o pediatra dos meus filhos, Arthur ele era jazz puro ! O outro era o Eloi , colega de turma é mais afinado com o estilo do Tenorio . Infelizmente Eloi morreu tragicamente após a formatura quando voltava para sua cidade natal.
Tive a oportunidade de soprar meu velho trompete com eles………..velhos , bons e saudosos tempos
Caro amigo, obrigado pela contribuição da memória. Eu me lembro bem daquele piano na Praia Vermelha, e depois que o prédio foi demolido (aliás, para tristeza de muita gente) o piano foi guardado e depois foi colocado no saguão da entrada principal do Centro de Ciências da Saúde, como lembrança do prédio antigo e com uma foto do mesmo ao lado. Eu fui àquele prédio durante a demolição junto com o chefe do departamento, para retirar um monte de equipamentos e levar para o Fundão. O meu chefe, que foi seu professor inclusive, encheu os olhos de lágrimas ao ver os laboratórios destruídos. Todo mundo sabia que os militares demoliram aquilo tudo como uma vingança do movimento de esquerda dentro da Faculdade de Medicina, que aliás não tinha força política alguma, mas assustava os homens da repressão. Coisas da vida, meu amigo, só quem viveu é que sabe.