Grande número de filmes clássicos com processamento HDR já feito estão sendo lançados em Blu-Ray UHD. Mas há a questão do claro escuro.
Quando recentemente eu li uma declaração de um executivo da Warner Brothers dizendo que a empresa estava fazendo uma pesquisa do catálogo e testando quais filmes podem ou devem ser pós processados com imagem HDR (High Dynamic Range).
Quando ele colocou em dúvida se este aprimoramento valia ou não a pena, eu me lembrei que havia me feito a mesma pergunta.
A postura, aparentemente conservadora, ou cautelosa, se quiserem, tem a sua razão de ser: por volta de 1995/1996 a trilha com som Dolby Digital 5.1 havia se tornado padrão obrigatório nos discos DVD.
E nesta época os estúdios passaram muitas trilhas sonoras mono para este padrão. Houve choro e ranger de dentes. Usuários de fóruns sobre home theater se sentiram insultados com aquela decisão e partiram furiosamente em busca de ressarcimento.
Eventualmente, alguns lançamentos foram feitos com som nos dois formatos, um original (mono) e outro remasterizado (até 5.1). Na minha coleção apareceram discos com Dolby Digital 2.1, 3.1 e até hoje eu ainda tenho um disco com 4.1, feito a partir de uma gravação para Cinerama.
Muitos dos furiosos daquela época se esqueceram de que houve um hiato na produção de filmes, com o abandono quase permanente da banda magnética multicanal, 4 e 6, para 35 e 70 mm, respectivamente. Então, com a era DVD os estúdios acharam oportuno resgatar as trilhas multicanais que nunca foram exibidas nos cinemas.
Eu até já comentei nesta coluna que esta decisão de gravar o disco com 5.1 canais está correta, porque quando o AC-3, codec do Dolby Digital, foi projetado, foi previsto retrocompatibilidade para reprodução em mono, ou seja, ninguém teria saído perdendo. Mas os usuários daquela época reagiram com ignorância e de forma passional.
A propósito: acabaram não ganhando nada, porque os próprios cineastas insistiram que as trilhas fossem modificadas. Isso se vê com frequência com filmes originariamente lançados nos cinemas em Dolby Stereo (4.0), que saíram em disco com som 5.1.
No que tange à imagem o receio é bem fundamentado: a intromissão do HDR impõe valores de abertura do diafragma da câmera muito acima dos valores originalmente usados para compor os fotogramas dos filmes. E sendo assim, é possível e até provável que a imagem original seja desnecessariamente adulterada, ao ponto de não ser factível conserta-la para exibição na casa do usuário.
Claros e escuros
A coisa fica crítica quando mesmo em filmes modernos, a ambiência nas imagens é propositalmente construída com alternâncias entre zonas claras e escuras. Cineastas do passado distante se apoiaram muito em técnicas de filmagem chamadas de claro-escuro (ou chiaroescuro), cujo resultado prático tem enormes vantagens na narrativa de alguns roteiros. Cineastas recentes, como Clint Eastwood e outros, fazem uso constante de zonas de contraste, com partes da imagem no maior breu.
Nos filmes de terror e de suspense a inserção de zonas escuras é fundamental para a criação do clima proposto pela cineasta para a sua plateia. O cineasta usa técnicas que assustam quem assiste tirando pessoas ou objetos das sombras para a luz, ou então criam ansiedade no espectador quando ele ou ela, uma vez dominados pela ambiência da imagem, não conseguem enxergar personagens envolvidos na cena. Quando E.T. foi exibido nos cinemas muitas crianças alegaram não conseguir enxergar o personagem até um certo ponto do filme!
Em Cidadão Kane, Gregg Toland filmou várias cenas com luz expressionista, deixando alguns dos personagens completamente no escuro. No seminário sobre conservação de película que eu assisti anos atrás, o diretor de fotografia Gary Graver fez críticas pesadas à primeira edição de Cidadão Kane em DVD (eu ainda tenho este disco), alegando que a imagem foi transferida com contraste exagerado, jogando luz em partes das cenas que não eram para serem vistas. Graver trabalhou com Orson Welles e sabia muito bem do que estava dizendo!
Os técnicos da Warner Brothers fazem, portanto, muito bem em testar o processamento com HDR antes de aprovar o aprimoramento. Cidadão Kane não é, em absoluto, um caso isolado. Orson Welles aprendeu com John Ford a maneira como se faz determinados filmes, e o veterano cineasta já havia feito uso de chiaroescuro, inclusive com Gregg Toland na direção de fotografia!
Eu sou plenamente a favor do uso de HDR, mas não creio que ele seja radicalmente necessário em qualquer peça filmada ou gravada.
O HDR tem méritos inegáveis, mas estes são usados com mais produtividade em cenas onde objetos deveriam aparecer com a luz correta. Os laboratórios Dolby publicaram no passado um trabalho mostrando como o HDR melhora a observação de objetos em cena, baseada na iluminação correta:
Os valores de luminância expostos na imagem acima são teóricos. Uma tela de TV com ampla gama dinâmica exibe imagens em torno de 1000 a 1200 nits, ou acima.
O HDR também tem o mérito de aumentar a palheta de cores de forma substancial, podendo chegar até 12 bits de resolução, o que suaviza a transição de gradação das zonas de sombra na escala de cinza da imagem.
Quando o HDR parece valer a pena ser usado
Segundo quem trabalha com película a faixa dinâmica de luz em negativos é maior do que nas cópias dele obtidas, e neste caso é possível que, se trabalhado corretamente, o uso de HDR poderá finalmente resgatar as informações de luz e sombra que as cópias perderam.
É bom lembrar que estamos hoje no domínio digital, ou seja, passamos película (ambiente analógico) para um intermediário digital. É nesta passagem que o tratamento com HDR pode ser benéfico.
Quem é cinéfilo antigo como eu passou anos assistindo película com projetores de diversos tipos de lanterna. Para quem não está familiarizado com o assunto, a lanterna é a parte traseira do projetor que contém a fonte de luz utilizada. Em tempos remotos, esta fonte de luz era o arco voltaico, com alimentação elétrica que variava em amperagem.
Os melhores cinemas trabalhavam com lanternas acima de 100 amperes. E no caso específico da projeção em 70 mm, as lanternas tinham que ser obrigatoriamente mais potentes, na faixa de 120 a 130 amperes, dependendo do tamanho do auditório.
A projeção com arco voltaico fornecia um brilho fora do comum. Quando a fonte de luz mudou para lâmpadas xênon, a intensidade de luz caiu subitamente. Novos tipos de cópias precisaram ser feitas para compensar esta deficiência.
Se a gente somar estes fatores, irá notar que a deficiência de luz em cenas filmadas é também resultado de cópias para exibição mal feitas também.
Ao trabalhar com o negativo, as chances de melhor iluminação de cenas na cópia digital aumentam substancialmente. Nos casos onde o negativo ficou imprestável, o uso de interpositivo deve passar pelos mesmos critérios de inspeção, para só então decidir se compensa o tratamento da imagem com HDR.
Existem, neste momento, números cada vez maiores de filmes clássicos com tratamento HDR já feitos, a serem lançados em Blu-Ray UHD. Entre eles, “2001, Uma Odisseia no Espaço”, tem lançamento previsto para final de outubro de 2018.
Até agora, o que se sabe é que a película foi transferida com 4K nativos e foi tratada com Dolby Vision. O que se pode esperar disso ninguém sabe, porque “2001” é um filme visualmente complexo. E por isso eu aposto que muita gente irá deixar para comprar depois que as primeiras análises sobre a nova edição sejam publicadas. _Outrolado_
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.
0 resposta
Paulo parabéns pela matéria. Bem técnica com ótimo embasamento. Mas quero colocar um detalhe importante. Esse aprimoramento do HDR em filmes antigos de catálogo, pode não dar o resultado esperado (se pensarmos nos novíssimos modelos de TV Oled), pois esses painéis (e os próximos que virão) estão evoluindo muito em nitidez e com melhoria consideráveis na fidelidade da imagem original da película. Então o uso do HDR pode “clipar” o nível de vídeo (brilho e contraste), como também haver algum prejuízo na chrominancia (como você disse Paulo, em que o cinéfilo não conseguirá corrigir esse vídeo saturado). Creio que apenas o processo de restauro dos fotogramas (corrigindo perdas de qualidade pelo efeito do tempo), já seriam adequados. Mas não seremos nós que decidiremos isso não é mesmo ? Abração
Rogério, mais uma vez muito obrigado pelo comentário.
Note que, em princípio, as telas HDR estão preparadas para alto nível de contraste, com luminância que excede a 1000 nits. A questão é saber se a aplicação do HDR vai alterar o aspecto visual pretendido pela produção do filme. Análises publicadas são bem vindas, mas mesmo assim eu prefiro ir com cautela.
Paulo parabéns pela matéria. Bem técnica com ótimo embasamento. Mas quero colocar um detalhe importante. Esse aprimoramento do HDR em filmes antigos de catálogo, pode não dar o resultado esperado (se pensarmos nos novíssimos modelos de TV Oled), pois esses painéis (e os próximos que virão) estão evoluindo muito em nitidez e com melhoria consideráveis na fidelidade da imagem original da película. Então o uso do HDR pode “clipar” o nível de vídeo (brilho e contraste), como também haver algum prejuízo na chrominancia (como você disse Paulo, em que o cinéfilo não conseguirá corrigir esse vídeo saturado). Creio que apenas o processo de restauro dos fotogramas (corrigindo perdas de qualidade pelo efeito do tempo), já seriam adequados. Mas não seremos nós que decidiremos isso não é mesmo ? Abração
Rogério, mais uma vez muito obrigado pelo comentário.
Note que, em princípio, as telas HDR estão preparadas para alto nível de contraste, com luminância que excede a 1000 nits. A questão é saber se a aplicação do HDR vai alterar o aspecto visual pretendido pela produção do filme. Análises publicadas são bem vindas, mas mesmo assim eu prefiro ir com cautela.