Orson Welles deixou vários filmes inacabados, mas o último deles foi resgatado por cineastas admiradores. E agora temos a chance de ver “O Outro Lado do Vento” no Netflix.
Foi no Festival de Cinema do Rio de Janeiro, que eu assisti no ano de 2003 uma palestra do diretor de fotografia Gary Graver, sobre restauração de filmes.
Foi um privilégio conhecer a obra deste cineasta, que trabalhou cerca de 15 anos com o seu ídolo Orson Welles. O encontro foi planejado pelo Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro (CPCB), que eu não conhecia, e incluiu o trabalho de outro restaurador.
Gary Graver discorreu com detalhes contando o esforço de restauração de alguns dos filmes de Orson Welles com os quais havia se envolvido. Graver trabalhou com Welles nos seus últimos quinze anos.
Por coincidência, uns dias atrás eu achei aqui em casa umas anotações que fiz com dificuldades (com a folha de papel em cima da perna) e sem tradução mesmo, durante a passagem de Graver, e tirei uma pequena imagem para que o leitor possa vê-la. Claro que se anota tudo que se pode, pois não se sabe depois se aquilo vai cair no esquecimento, e cai!
Anotei na época, como se vê, “Sem dinheiro para restauração” e “A Paramount não se importa”, com referência ao filme “It’s All True”, inacabado e rodado inclusive no Rio de Janeiro.
Posteriormente, foi feito um documentário sobre este filme (ver imagem do DVD abaixo), lançado pela própria Paramount. Não sei que fim levou a restauração, mas na época havia esforços financeiros para que tal ocorresse.
A vida de Orson Welles foi cheia de percalços. Quando rodava “É Tudo Verdade” os homens em Hollywood estavam perpetrando cortes no seu último filme. Esta foi uma das várias facadas nas costas das quais Welles nunca se recuperou.
Detalhes sobre este e outros episódios podem ser vistos agora no documentário do Netflix “Serei Amado Quando Morrer”, de 2018, e que está agora à disposição dos assinantes. O título é irônico, mas revela o que Welles pensava a seu respeito, ou mais exatamente sobre a falta de respeito que tiveram com ele.
No meu entender, o fã de cinema que por acaso for assinante do Netflix não deve perder a chance de vê-lo. O principal assunto do documentário se refere, entretanto, ao último filme rodado por Welles, também inacabado, mas recuperado por cineastas fãs do diretor, entre eles Peter Bogdanovich:
O Outro Lado do Vento foi em teoria o último filme rodado por Welles e é notoriamente autobiográfico.
O Netflix disponibilizou o filme simultaneamente ao documentário, e o fã ainda pode assistir clássicos do cineasta como, por exemplo, A Marca da Maldade (“Touch of Evil”), outro filme que lhe rendeu problemas de toda sorte.
Sobre O Outro Lado do Vento
Quem se dispuser a ver este filme eu sugiro que deve ter um pouco de paciência e aguçar a percepção do que está se passando na tela, e na realidade eu sugeriria também assistir o documentário acima mencionado depois de ver o filme, porque isto em parte facilita a sua compreensão para os não iniciados em obras de autor.
Aparentemente caótico, o filme de Welles levou cerca de 6 anos para terminar de ser feito, enfrentando todas as dificuldades possíveis e imagináveis, um vexame considerando-se a estatura do cineasta. Novamente tudo isso por falta de recursos. Com Welles ainda vivo, o filme foi considerado inacabado.
Nesse tempo todo Gary Graver o acompanhou com a câmera em punho. Welles confiou ao seu grande amigo e também grande cineasta John Huston a responsabilidade de personificar um diretor de cinema já consagrado que emerge da obscuridade para tentar terminar o derradeiro filme. Coincidência?
No documentário, sabe-se que Gary Graver suou sangue para acompanhar Welles. Diz-se que ele foi ao diretor, e disse a ele que queria trabalhar como seu diretor de fotografia. E Welles comentou que já era a segunda vez que um diretor de fotografia havia feito isso, referindo-se a Gregg Toland em Cidadão Kane.
Welles pagou caro por ter feito Cidadão Kane, mas não só por causa da perseguição que fizeram com ele, ameaça de queimar o negativo, etc., mas porque quando Kane passou a ser tratado como uma obra prima, que de fato o é, as comparações e exigências feitas ao cineasta se tornaram inevitáveis, o que em alguns momentos de entrevistas, deixou Welles bastante irritado.
Em O Outro Lado do Vento, Orson Welles divide o roteiro com a atriz Oja Kodar, com quem se relacionava na época. E embora tenha se declarado avesso à nudez em filmes, o que se vê é Oja não só em nudez total como em cenas onde o erotismo sugere relações sexuais explícitas.
É curioso, e digno de nota, que O Outro Lado do Vento tem dois aspectos que tangenciam o filme de Welles com a obra do diretor francês François Truffaut: o primeiro, que Truffaut também se opunha à exposição de corpos nus nos filmes, por considera-la uma distração que desviava a atenção do espectador da trama do filme.
A segunda que Truffaut fez um filme com o titulo “A Noite Americana” (“La Nuit Américaine”), alguns anos depois (1973) de Welles ter começado a rodar O Outro Lado do Vento (de 1970 até 1976). Ambos os filmes mostram a realização de um filme dentro do filme propriamente dito.
E existem ainda referências claríssimas a Zabriskie Point, do cineasta italiano Michelangelo Antonioni, bem como a presença em cena de diretores de renome, um deles o próprio John Huston e o francês Claude Chabrol.
Apesar de ter uma narrativa confusa, o filme derradeiro de Welles é extremamente dinâmico. Há uma intenção de mostrar um lado de Hollywood que a maioria das pessoas não vê. E neste ponto as mensagens subliminares aparecem em tal profusão, que nos obriga a ver o filme mais de uma vez, para tentar capturar tudo.
O personagem principal (John Huston) é o de um diretor que sai da obscuridade, que em meio a uma atmosfera surrealista, tenta dar um fim ao seu último filme. Como de praxe, Welles deixa aberto para o público a interpretação das cenas.
Se o espectador prestar atenção verá ali toques do gênio, talvez uma espécie de legado deixado pelo cineasta, que um dia sonhou em fazer cinema sem compromissos.
Orson Welles, o homem, não o cineasta, foi autor de comentários memoráveis, e um deles aparece neste último documentário. Na frente da câmera, ele diz que o homem nasce, cresce e morre sozinho. O mais próximo da ilusão de que ele não está sozinho acontece quando ele se relaciona com a namorada ou esposa. Mas, é só ilusão… _Outrolado_
. . .
Leia também:
Winston Churchill e a Segunda Guerra Mundial de volta nas telas
Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.