Comparados às apresentações espetáculo do cinema no passado, os filmes quando vão para os discos decepcionam os fãs e entusiastas.
Desde tempos imemoriais os filmes de cinema são transcritos dos fotogramas para vídeo, analógico ou digital mais recentemente, através de equipamentos chamados de telecines. No início, pouca importância se deu à relação de aspecto (altura x largura do enquadramento de câmera) e, pior ainda, nos casos de fotogramas anamórficos, apenas uma parte da imagem podia ser vista, com o enquadramento de vídeo se deslocando lateralmente, processo este chamado de “pan & scan”.
As mídias de discos com vídeo começaram a aparecer comercialmente na década de 1970. Os primeiros discos com filmes de impacto tecnológico foram aqueles desenvolvidos pela Philips (DiscoVision) com leitura ótica, através de emissão com raio laser, uma novidade na época:
A comercialização do Laserdisc durou até bastante tempo depois do aparecimento do DVD. À época do lançamento deste último esperava-se que algumas lições do processamento de telecinagem tivessem sido aprendidas, mas infelizmente não foi o que aconteceu. Usuários pelo mundo afora perceberam que os grandes estúdios estavam transcrevendo velhas matrizes de Laserdisc para os DVDs, às vezes com chancela da THX.
Um caso esdrúxulo deste tipo foi o do DVD duplo do filme “The Abyss”, de James Cameron, fotografado em negativo Super 35, posteriormente convertido em 35 mm e 70 mm, para exibição nos cinema. O disco saiu em widescreen, mas sem correção de pixels para o formato anamórfico, resultando em uma imagem de baixíssima resolução. Isso tornou evidente o vício adquirido anos antes com os videodiscos analógicos. E este tipo de lançamento degradou o logo THX, acompanhado dos protestos dos entusiastas e fãs.
O problema central nas transcrições de filmes para vídeo sempre esteve focado em um único aspecto: a tela de TV seguiu, por décadas a fio, o formato da academia (1.37:1), e assim quem produzia mídia de vídeo achava que as telas de cinema não poderiam ser transcritas no formato de tela original.
Nos cinemas propriamente ditos (e isso pode ser facilmente constatado em todos os filmes de catálogo) o tamanho e a largura da tela começaram a variar tremendamente, de modo a mostrar ao público o potencial de uma tela de cinema, em relação a uma tela de TV qualquer, que tinha formato fixo. No diagrama a seguir, pode-se ter uma ideia de como os formatos de enquadramento mudaram:
Uma parte deste caos de enquadramento melhorou com a introdução da tela de alta definição (HDTV), que contempla primariamente uma contemporização entre as relações de aspecto dos fotogramas do formato da academia (aproximado na tela de TV para 1.33:1) e do formato “scope” de 35 mm (2.35:1).
Foi Kerns H, Powers, membro da sociedade americana de engenheiros de cinema e TV (SMPTE), quem propôs a média geométrica entre essas duas relações de aspecto, resultando em 1.77:1 (ou 1.78:1, no valor arredondado).
A tela de HDTV padrão de 1.78:1 permanece intocável, porque continua a ser o melhor compromisso entre todos os enquadramentos. A tela 21:9, ainda em perspectiva, funciona bem para 2.35:1, mas não para outras relações de aspecto. Outras soluções envolvem o uso de lentes especiais em projetores.
DVDs anamórficos entraram em conflito com edições “letterbox”, que nada mais eram do que antigas matrizes telecinadas em 4:3 a partir de fotogramas de tela larga. Nestes casos, a relação de aspecto original é mantida, mas às custas de uma perda enorme de resolução.
Durante um longo período de tempo fãs e entusiastas reclamaram disso, e o resultado claro foi quando se implantou o formato de 1080p em definitivo, todos os discos, sem exceção, passaram a ser autorados em transcrição anamórfica. Neste processamento, a imagem, seja 1.85:1 ou 2.35:1 e outras, é comprimida para o disco e depois retificada na reprodução, como mostra a figura a seguir:
Claro que durante muito tempo muitas pessoas reclamaram das “barras pretas” na tela da TV, necessárias para manter a relação de aspecto correta, e até hoje se nota que muitas versões de filmes em vídeo, particularmente aquelas feitas para TV, adulteram a relação de aspecto, para contentar este segmento de público!
Com o som os problemas de adaptação são outros
Do mono ao estereofônico multicanal as versões de filmes em vídeo contemplaram a transcrição dos elementos de áudio originais e não a transcrição feita pela simples leitura das bandas óticas ou magnéticas, que poderia resultar em uma relação sinal/ruído problemática e difícil de disfarçar.
A transcrição com o material original gravado permitiu que os estúdios pudessem fazer restaurações e/ou remixagens da trilha sonora, algumas delas exemplares, bem antes do trabalho final de autoração estar concluído.
Porém, as apresentações em cinema do passado em filmes de maior impacto incluíam segmentos em película, específicos do show a ser apresentado, cujo roteiro era enviado aos cinemas. Esses segmentos são os seguintes:
Segmento |
Terminologia em inglês |
Abertura (música com cortinas fechadas) | Overture |
Intervalo | Intermission |
Entreato (música com cortinas fechadas) | Entr’acte |
Música de encerramento (com cortinas fechadas) | Exit Music |
Nos cinemas da minha época de adolescente era exibido um cartão do certificado de censura com o título do filme, entre outras informações. Nos cinemas que projetavam 35 e 70 mm, este cartão era projetado em 35 mm, com a informação “70 mm”. Depois disso, as cortinas eram fechadas e som da Abertura era ouvido.
O Intervalo, seja 35 ou 70 mm, é anunciado com um título na tela, muitas vezes sem som. Os intervalos costumavam durar entre 10 a 15 minutos, com as cortinas fechadas.
O cartão do Entreato em película eu nunca vi, creio que nunca existiu! A propósito, “entreato” significa “entre atos”, ou seja, segmento prévio à segunda parte da estória. Ainda com as cortinas fechadas, a música do Entreato era tocada, dando um sinal para a plateia para todos voltarem aos seus lugares. Aliás, na maioria das vezes quase ninguém ao meu lado saía do lugar, porque os assentos não eram numerados. Nos grandes espetáculos, ao final do Entreato as luzes eram paulatinamente apagadas, até o segundo ato começar com o abrir das cortinas. Muitos cinemas que eu frequentei tinham dimmer, que é um atenuador mecânico de tensão da linha que alimentava as lâmpadas, dando um efeito no auditório muito bonito.
Terminado o espetáculo, as cortinas se fechavam com a reprodução da música de encerramento.
Em pelo menos dois filmes que eu assisti nos cinemas a Abertura foi apresentada com imagem: um deles foi My Fair Lady (70 mm) e o outro West Side Story (35 mm e 70 mm). Neste último, o Intervalo foi recuperado na edição em Blu-Ray, para sorte dos colecionadores.
Até hoje, raramente eu vi esta rotina ser totalmente respeitada em disco, em alguns casos talvez pelo medo de que pessoas inexperientes pudessem presumir que o som sem imagem pudesse ser defeito da mídia!
A introdução de cartões com os termos “Overture”, “Intermission”, etc. NUNCA existiram nas apresentações em cinema dos respectivos filmes!
Pior ainda, e isso é uma falha que ocorre até hoje, é a omissão sistemática desses segmentos, problema crônico que se arrasta apesar dos protestos seguidos em fóruns diversos pela Internet.
É fato histórico de que durante a febre da bitola 70 mm os filmes rodados em Panavision convencional ou até em 35 mm plano a 1.85:1 foram ampliados para aquela bitola e os segmentos citados acima criados especificamente para esta versão.
Em várias das edições em vídeo subsequentes, inclusive em Blu-Ray, os segmentos desses filmes foram sumariamente excluídos, como se nunca tivessem existido!
A indústria de home vídeo parece que continua insensível aos protestos daqueles que tiveram chance de assistir todos estes filmes no formato do cinema. Agora mesmo, na reedição do filme “Sweet Charity”, dirigido por Bob Fosse, rodado em Panavision, mas apresentado em Cinerama 70 mm, a Kino Lorber omitiu toda a música do Entreato e a música de encerramento. Pode isso? Em um filme no qual um dos pontos fortes é justamente a trilha sonora?
Extravagâncias dos exibidores
Eu fui assíduo e ávido frequentador de cinemas que estavam exibindo filmes em 70 mm. No meu bairro, nós tínhamos nada menos do que quatro cinemas com esta bitola, a saber: Tijuca, o primeiro deles, Rio, Bruni-Tijuca e Tijuca Palace, antes de se dividir em dois.
Com exceção do Tijuca, os demais cinemas não estavam equipados com projetores de 35 mm separados, e assim iam direto para o filme, sem jornal, sem trailer, sem nada.
Mas, os operadores do Tijuca tinham o estranho hábito de rodar um dos projetores de 70 ao mesmo tempo em que o projetor de 35 estava exibindo qualquer coisa. Com isso, a gente ouvia a Abertura do filme junto com o que estava passando na tela. Em uma dessas ocasiões, o filme era “Dracula”, dirigido por John Badham. A Abertura acabou e os bravos rapazes da cabine desligaram o projetor de 70. Lá pelas tantas, os trailers em 35 mm acabaram, o cinema estava vazio, e eu ouvi um operador gritando para o outro “Vai!…” e o colega de cabine rodou o 70 mm de novo, só que sem a Abertura! Seria trágico se não fosse cômico. Essa gente bem que poderia ter arrumado um emprego na indústria de home vídeo. Garanto que seriam bem recebidos! Outrolado_
. . .
Leia também:
Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.
0 resposta
Olá Paulo. Este tema é meu favorito, as adaptações (muitas delas mal feitas) dos filmes em película para mídias e TV’s. Apesar que algumas Redes de TV’s cometerem verdadeiros “crimes” alterando o formato e proporção original dos filmes, para se encaixar dentro da tela de TV 16:9. Mas o resultado disso na maioria das vezes é desastroso, pois várias vezes acabei não assistindo alguns filmes na TV, pelo total despreparo em quem realizou uma adaptação mal feita, que deixou a cena toda distorcida. Mas indo ao foco do assunto, aproveito para tirar duas dúvidas. Com o advento das modernas filmadoras totalmente digitais, a conversão de qualquer filme no formato digital torna-se automática. Mas os Diretores dos Estúdios de Cinema ainda preferem utilizar as famosas câmeras de película, tipo ARRI Alexa XT Plus , Panavision Panaflex Millennium XL2 e outras. Daí vem o foco principal deste meu questionamento, ainda é preciso utilizar o processo de telecinagem para converter estes filmes de analógico (película), para o digital ? Esse processo teve algum melhoramento ou modernização ao longo dos anos ? Abraço
Oi, Rogério,
“Traduttore, Traditore”, esta é, essencialmente, a lambança que se comete nas legendas e nas dublagens, as quais eu sou frontalmente contra! Eu já ouvi um personagem dizer em um seriado dublado da década de 60, acredite se quiser, “vamos fazer uma torrada”, no lugar de “let’s make a toast” (KKKKKKK), e vai por aí. Durante muito tempo, os tais tradutores não conseguiram entender o que significa “fine line”, que se traduz por “linha tênue”, então eles colocaram “linha fina”. Os exemplos são inúmeros.
Sobre filmagem, o que se observa muitas vezes, e isso é lamentável, é a total falta de descaso com o consumidor (fã) de cinema!
Hoje em dia, não se sabe mais que tipo de relação de aspecto é essa, que varia tremendamente, de um filme para o outro, e, note bem, não tem qualquer relação com os enquadramentos conhecidos.
Cineastas que preferem continuar usando película é porque eles acreditam que a resolução da imagem é superior, e em muitos casos (The Hateful Eight, em Ultra Panavision 70 mm) é mesmo.
Mas as atuais câmeras digitais superam tudo, apesar de críticas ao contrário. Elas tem resolução satisfatória até 8K, e nunca precisam de adaptação na telecinagem, como a película. Para esta não tem outra maneira de passar para vídeo. Os telecines modernos escaneiam fotograma por fotograma. A telecinagem digital pode ir até 8K. E depois do intermediário digital criado, a adaptação para Blu-Ray, descendo até 1080p, continua sendo exemplar. Veja isso em Samsara e Baraka, do mesmo autor.
Olá Paulo. Este tema é meu favorito, as adaptações (muitas delas mal feitas) dos filmes em película para mídias e TV’s. Apesar que algumas Redes de TV’s cometerem verdadeiros “crimes” alterando o formato e proporção original dos filmes, para se encaixar dentro da tela de TV 16:9. Mas o resultado disso na maioria das vezes é desastroso, pois várias vezes acabei não assistindo alguns filmes na TV, pelo total despreparo em quem realizou uma adaptação mal feita, que deixou a cena toda distorcida. Mas indo ao foco do assunto, aproveito para tirar duas dúvidas. Com o advento das modernas filmadoras totalmente digitais, a conversão de qualquer filme no formato digital torna-se automática. Mas os Diretores dos Estúdios de Cinema ainda preferem utilizar as famosas câmeras de película, tipo ARRI Alexa XT Plus , Panavision Panaflex Millennium XL2 e outras. Daí vem o foco principal deste meu questionamento, ainda é preciso utilizar o processo de telecinagem para converter estes filmes de analógico (película), para o digital ? Esse processo teve algum melhoramento ou modernização ao longo dos anos ? Abraço
Oi, Rogério,
“Traduttore, Traditore”, esta é, essencialmente, a lambança que se comete nas legendas e nas dublagens, as quais eu sou frontalmente contra! Eu já ouvi um personagem dizer em um seriado dublado da década de 60, acredite se quiser, “vamos fazer uma torrada”, no lugar de “let’s make a toast” (KKKKKKK), e vai por aí. Durante muito tempo, os tais tradutores não conseguiram entender o que significa “fine line”, que se traduz por “linha tênue”, então eles colocaram “linha fina”. Os exemplos são inúmeros.
Sobre filmagem, o que se observa muitas vezes, e isso é lamentável, é a total falta de descaso com o consumidor (fã) de cinema!
Hoje em dia, não se sabe mais que tipo de relação de aspecto é essa, que varia tremendamente, de um filme para o outro, e, note bem, não tem qualquer relação com os enquadramentos conhecidos.
Cineastas que preferem continuar usando película é porque eles acreditam que a resolução da imagem é superior, e em muitos casos (The Hateful Eight, em Ultra Panavision 70 mm) é mesmo.
Mas as atuais câmeras digitais superam tudo, apesar de críticas ao contrário. Elas tem resolução satisfatória até 8K, e nunca precisam de adaptação na telecinagem, como a película. Para esta não tem outra maneira de passar para vídeo. Os telecines modernos escaneiam fotograma por fotograma. A telecinagem digital pode ir até 8K. E depois do intermediário digital criado, a adaptação para Blu-Ray, descendo até 1080p, continua sendo exemplar. Veja isso em Samsara e Baraka, do mesmo autor.