Em julho deste ano, vídeos povoaram o YouTube, feitos por audiófilos radicais, com reclamações contra a Mobile Fidelity, selo tradicional deste segmento de discos, alegando terem sido enganados há anos por terem compra elepês resultado de masterização digital. A controvérsia expõe o permanente e duradouro estado de ânimo daqueles que não toleram e não aceitam o som digital. Expõe também o lado irônico dessa intolerância, quando os reclamantes antes disso gostavam do que ouviam!
Parece mentira, mas estamos em julho de 2022, e ainda assim persistem preconceitos envolvendo a antiga questão som analógico versus digital, muito embora a eletrônica presente na maioria dos equipamentos hoje em dia de ambiente analógico não tem quase mais nada!
Neste mês eu assisti inúmeros vídeos no YouTube com audiófilos fortemente indignados com o que a Mobile Fidelity havia feito com eles. A empresa há vários anos vem masterizando acetatos para elepês de alta qualidade usando como fonte de sinal arquivos DSD, ao invés da fita analógica de origem, mas não disse nada a ninguém. No encarte dos elepês e no site de venda o processo de masterização, chamado de “One Step”, é explicado:
Basicamente, o que é feito é cortar o acetato e convertê-lo em negativo, direto para a estamparia. O processo em si não é novo. Ele já foi tentado no disco da Sonic Technology batizado de “Direct-Pressed Disc”, com a gravação de Moe Kaufman com a versão em rock das 4 estações de Vivaldi. Eu ganhei este disco de brinde na década de 1970, o som era bastante interessante, mas não excepcional. O processo de fabricação em si pareceu nunca ter ido adiante, mas a ideia foi reaproveitada, como se pode perceber agora.
Algumas modificações a meu ver importantes foram tentadas, uma delas referente ao tipo de massa usada na prensagem. A massa de vinil no elepê ideal deve ter o maior grau de pureza possível. As sobras saídas da prensa, chamadas de “scrap” pelos técnicos, não podem ser reaproveitadas. Um disco de vinil ultra puro produz muito pouco ruído de massa, e assim ele é preferido por qualquer audiófilo.
A Mobile Fidelity alega usar um “Super Vinil”, desenvolvido para reduzir o ruído de fundo e manter a integridade dos sulcos. Os elepês são então chamados de “Ultradiscs”.
Histórico
A Mobile Fidelity ganhou justificada fama perante os audiófilos, com a decisão de cortar acetatos a meia velocidade, uma tecnologia batizada de “Half Speed Mastering”. A ideia de reduzir a velocidade do corte seria a de facilitar o entalhamento de frequências mais elevadas, dando consistência à preservação e reprodução de sons agudos vindos da fita master.
Em síntese, a qualidade do disco deles seria resultado do uso da fita analógica original, supondo-se de 1ª geração, aliada a um corte de acetato sofisticado e prensagem com vinil de boa qualidade. Eu tive vários desses discos, que soavam muito bem. Mais tarde, ficou claro para qualquer um que eles mexiam na equalização previamente ao corte.
Com o declínio de vendas dos elepês e o alto custo de prensagem a Mobile Fidelity passou a se dedicar ao lançamento de CDs. Um deles, que está na minha coleção desde a década de 1980, é esse mostrado abaixo. A menção “Original Master Recording” estampada no selo foi mantida:
Até hoje não é fácil comprar um disco MoFi sem gastar uma pequena fortuna, tamanho o prestígio do selo, e muitos acreditam que algumas dessas edições, inclusive as em CD, serem insuperáveis em qualidade de reprodução. A empresa modernizou-se com o lançamento de discos SACD e o faz até hoje, vendendo diretamente do próprio site.
As edições em SACD são comercializadas com o rótulo de “Ultradisc UHR GAIN” (Ultra High Resolution, Greater Ambient Information Network), com fonte de sinal DSD 4X (Quad-DSD), ou seja, DSD com taxa de amostragem 256 vezes maior do que a de um CD (44.1 kHz), daí a terminologia DSD256.
A controvérsia atual
A Mobile Fidelity tirou uma enorme vantagem da masterização com o uso de DSD, como descrito acima. Quando esta bulha tomou corpo, seus engenheiros descreveram o novo processo de remasterização a partir das fitas analógicas originais. E confessaram que vinham usando arquivos DSD256 para cortar acetatos e prensar elepês.
Historicamente, a tática de lançamentos da Mobile Fidelity sempre foi a de licenciar o disco desejado diretamente com os estúdios, pedir a autorização de emprego da fita original e cortar o disco.
Este procedimento tem uma série de inconvenientes, pouco econômicos por natureza. Com os recursos atuais, os engenheiros de masterização passaram a converter as fitas originais de estúdio para DSD e os arquivos resultantes usados para cortar seus elepês. Seria como se fosse parecido com o Intermediário Digital (DI) usado no cinema, que pode ser usado para fazer uma cópia analógica em película.
A vantagem deste processo é óbvia, porque, entre outras coisas, o estúdio pode se dar ao luxo de cortar vários acetatos sem precisar usar de novo a fita original, e estender a prensagem para um número maior de discos.
Uma vez inquiridos a este respeito, os engenheiros argumentaram que, comparando a fita master com o arquivo DSD, este último é um retrato fiel da sua origem analógica. Segundo eles, foi impossível distinguir uma mídia da outra. O DSD, segundo alguns de seus admiradores, tem como resultado de remasterização a obtenção de um som mais próximo possível do analógico, daí ninguém ficar surpreso com o que disseram os engenheiros da Mobile Fidelity.
O mais interessante é que, antes disso tudo ser revelado, fãs que compraram esses elepês se confessaram admirados com a qualidade do som obtido! Então, por que essa reclamação toda?
Porque esses elepês foram “contaminados” com som digital, contrariando a afirmação de que o som ouvido no elepê seria o da fita original de estúdio. No diagrama do tal processo “One-Step” isso não fica claro, e sim se algo deste tipo fosse mencionado:
Muito antes do CD ser lançado as gravadoras já haviam usado fitas digitais para cortar elepês, portanto o processo em si está longe de ser novo, e na realidade depois que o CD foi lançado houve muito audiófilo afirmando que o elepê com fonte digital soava muito melhor do que o mesmo disco em CD!
Só que agora, os puristas se consideraram traídos! Pouco importa, no caso, se o arquivo DSD soe igual ao som da fita master original!
Sob o ponto de vista do consumidor os reclamantes estão certos. Mas, daí a acusar a Mobile Fidelity de engana-los e exigir indenizações vai uma distância muito grande. Um dos comentaristas no YouTube que discutiu o assunto disse a eles que eles tinham que superar este preconceito contra o digital. E porque não, se eles mesmos gostaram do que ouviram, antes da controvérsia tomar corpo?
A impressão que sempre me passou é que a intolerância histórica contra o som digital resulta de um preconceito que muita gente contra não conseguiu superar mesmo. Muitos audiófilos que eu conheci eram arraigados com o elepê, toleravam ruído, distorção e estalidos. Alguns partiram para o CD sem se preocuparem com a substituição de títulos, mantendo ambas as coleções.
Aparentemente, existem pessoas que não conseguem viver sem algum tipo de polêmica sem o menor sentido. Eu já vi dentro dos ambientes de fóruns de audiófilos gente reclamando da amostragem de “baixa resolução do CD”, do PCM, e posteriormente, do DVD-Audio, enquanto outros se queixaram do DSD, achando que a amostragem a 1 bit era baixa demais e introduzia distorção. O que me leva a crer que, não importa o progresso que se atinja, nem todo mundo irá ficar satisfeito com ele!
Nesta debacle da Mobile Fidelity a raiva maior parece que era de se ter gostado de algo que anteriormente se detestava ou desprezava. Se este detalhe da masterização do vinil nunca tivesse vindo à tona toda esta gente provavelmente iria continuar gostando do que estava ouvindo e afirmando com convicção que o som digital nunca vai ser páreo para o elepê! Outrolado_
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.
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Quanto a essas prensagens nacionais de títulos antigos, é quase certo que utilizam de uma digitalização de menos bits se comparado com os Mobile Fidelity ?
Oi, Lucas,
Pelo que eu soube, uma das fábricas daqui, não me lembro qual, estava usando CDs como master para cortar o acetato. No passado distante, eu tive a chance de conversar com técnicos de corte, nenhum deles acreditava que o consumidor brasileiro fosse capaz de discernir se o corte foi bem feito ou não. Uma pessoa que tinha condição de fazer era o Nilo Sergio, dono da Musidisc, que exigia uma prova da prensagem, antes de lançar os discos, e quando ele não gostava mandava cortar de novo.
Agora, sobre o uso de CDs eu até entendo que esse pessoal sofre na obtenção das matrizes originais dos discos antigos, porque muita coisa do acervo das gravadoras foi perdido ou se deteriorou.
Quanta ignorância dessa gente. Afinal será que desconhecem que, na origem, os sons hoje em 99% dos casos passam por editores de áudio em computador? Não vejo, salvo engano, ninguém mais gravando em fitas quilométricas a partir de uma mesa de mixagem. Portanto, todo sinal de áudio foi convertido para digital na captação. E o saudosismo dos lps, me parece ter mais a ver com a arte gráfica, o objeto em si, reservado para uma “elite”. DSD ou PCM, para mim estão de bom tamanho, no seu formato ótico, desde sua invenção.
Exatamente, Felipe, faz anos em que eu tomei conhecimento sobre o uso do Pro Tools pelos estúdios, ao invés das fitas analógicas, estas últimas usadas mais para arquivamentos, e ainda mesmo debaixo de risco de deterioração, já comentada por mim anos atrás.