Quando a Bossa Nova começou a ser divulgada na América, uma repentina quantidade de músicos de Jazz foi atraída pelo novo gênero, especialmente saxofonistas já consagrados. Músicos americanos vieram ao Rio de Janeiro para divulgar o seu trabalho e voltaram para casa com muitos discos do então novo gênero.
É no mínimo curioso que não foram poucos os músicos de Jazz enviados pelo governo americano para fomentar a chamada política de boa vizinhança, no caso para exportar a música americana de qualidade.
Só que quando esses músicos chegaram no Rio de Janeiro, cidade ainda nesta época capital do país, eles esbarraram em um tipo de música que nunca tinham ouvido antes e ficaram fascinados com o que ouviram. De imediato, vários deles voltaram para casa com um monte de discos gravados aqui, convencidos que estavam diante de algo novo, excitante, e por que não dizer revolucionário!
A música feita naquele momento aparentemente nunca teve este tipo de objetivo, mas talvez sem perceberem, os músicos e compositores brasileiros haviam criado um estilo de batida e harmonia que refletiam a paisagem da cidade e o bem estar (naquela época) de estar vivendo ali. Então, aquilo que seria somente uma música local se espalhou de forma impressionante, em curto espaço de tempo, não só na América, mas no mundo todo.
Como “impressionante” foi a reação dos músicos americanos que estiveram aqui. Foi o caso, por exemplo, do guitarrista Charlie Byrd, que não só levou discos de Bossa Nova para casa, como, em um encontro com o saxofonista Stan Getz, os dois fizeram um projeto de gravação, realizado no disco Jazz Samba, da Verve, que estourou nas paradas, não só na América, mas no resto do mundo. O disco foi gravado no Pierce Hall, em 1962, ainda com uma batida incipiente, mas com arranjos sedutores:
Assim, como se percebe, o efeito da visita daqueles músicos ao Rio fez o efeito oposto: quem veio influenciar acabou voltando influenciado!
Jazz Samba teve uma repercussão enorme na mídia, como mostra esse clipe do show de TV do cantor Perry Como:
Notem que, lá pelas tantas, Como diz a seus convidados: “onde estava a Bossa Nova quando eu precisei dela?”, frente à quantidade absurda de discos vendidos. Essa vendagem fora do comum para um disco com músicos de Jazz foi o que provavelmente disparou a raiva do crítico José Ramos Tinhorão, quando ele disse na época que a Bossa Nova estava ajudando a ressuscitar músicos como Stan Getz, que já não vendiam mais discos.
Eu era adolescente quando este cidadão disparou este tipo de crítica. Anos mais tarde foi o excelente José Domingos Raffaelli quem me revelou que Tinhorão odiava Jazz!
Quem, como eu, não via nada disso com os mesmos olhos mordazes do Tinhorão, pôde apreciar todos os efeitos desta profícua fusão de gêneros. Todos os meus amigos, sem exceção, fizeram isso. Aliás, qual seria o fã de Jazz que não ouvia Stan Getz?
A presença de Paul Winter no Rio
Eu já não me lembro mais quem me chamou a atenção de que o saxofonista Paul Winter havia vindo ao Rio com o seu sexteto em 1962. Mas, foi somente quando o pessoal da Bossa Nova foi dar um concerto no Carnegie Hall naquele ano que Winter conheceu Carlos Lyra.
A CBS autorizou Paul Winter a gravar com Lyra, se ele se dispusesse em voltar ao Rio, que foi o que ele fez. O disco que resultou desta parceria foi The Sound of Ipanema, gravado em 1965.
Paul Winter já havia se apresentado antes na Casa Branca tocando Bossa Nova. Os seus contatos no Rio (abaixo se pode vê-lo ao lado de Vinícius de Moraes, na boate Zum Zum, em 1965) explicam porque ele assimilou tão bem o que estava ouvindo.
Talvez por isso, ele não se deteve em gravar mais, o que fez com Rio. Por acaso, eu conversei com o Bebeto do Tamba Trio sobre este disco, e ele me confirmou que estava lá junto com Luiz Eça.
Quando Paul Winter voltou aos Estados Unidos ele gravou Jazz Meets The Bossa Nova, para a CBS. Algumas faixas do disco já haviam sido gravadas no Rio de Janeiro e juntadas depois no novo disco. Não há, que eu saiba, músicos brasileiros neste projeto, o acompanhamento foi o do seu sexteto.
No disco de 1962, a capa fala em “The Exciting New South American Rhythm”, e é provável que este deve ter sido o sentimento dos músicos envolvidos.
Ao que consta, Paul Winter fez vários relacionamentos com músicos brasileiros, e em um dos seus mais recentes projetos, de 1998, ele envolveu a presença de Oscar Castro Neves, com o título Brazilian Days, uma espécie de reminiscências do seu convívio. O disco foi gravado em casa, e pode ser ouvido no Spotify, entre outros serviços.
Os saxofonistas e a Bossa Nova
Até hoje, não sei quem influenciou quem, mas não foi só Stan Getz que mergulhou na Bossa Nova. Conta-se que Cannonball Adderley convidou o Bossa Rio para ir ao estúdio e gravar “Cannonball’s Bossa Nova”, para a Capitol, em Nova York. O disco é brilhante, e talvez um dos melhores feitos lá fora, muito provavelmente por causa do acompanhamento, que traz uma autenticidade que as outras gravações não conseguem.
Jazz Samba, de Getz e Byrd, apresenta uma batida confessadamente desajeitada, e a situação não é diferente quando o saxofonista Charlie Rouse fez “Bossa Nova Bacchanal” para a Blue Note. Rouse acompanhou Thelonious Monk, em alguns discos magníficos. Eu só posso imaginar que ele tenha ficado atraído pelo novo gênero e quis ver se chegava perto. O título do disco é meio maroto, porque implica em orgia, mas enfim…
Melhores resultados, a meu ver, em uma gravação tecnicamente superior, foi o disco do celebrado Coleman Hawkins para a Impulse, com o título “Desafinado”. Qualquer semelhança com o disco de Getz e Byrd não pode ser mera coincidência!
Mas, a produção é muito bem cuidada, e o som e ataque inconfundíveis de Hawkins cristaliza uma adaptação de maneira de tocar, muito mais “cool” (sem trocadilho com a alegada influência jazzística na Bossa Nova) do que o Jazz habitualmente tocado por ele e seus pares. Nada demais nisso: Paul Winter tocava Bebop, mas assimilou a Bossa Nova como poucos.
A Bossa Nova já era conhecida nos Estados Unidos bem antes de 1962, mas foi a presença brasileira por lá que deflagrou muita coisa positiva. No meu texto sobre Tom Jobim eu compartilho um vídeo do Tom com o antológico saxofonista Gerry Mulligan, que levou Tom para a sua casa logo após os músicos brasileiros chegarem em Nova York. Mulligan era um dos que estavam no aeroporto esperando aquele grupo chegar. Roberto Menescal relatou depois que ficou impressionado em ser recebido pelos músicos de Jazz.
É relativamente fácil para o fã de Jazz notar as diferenças de abordagem musical, quando todos esses saxofonistas e outros tantos músicos lá fora tocam temas ou composições de Bossa Nova. Mas, a música é isso, a invenção faz parte do seu contexto, e por isso não existe empecilho auditivo quando se ouve músicos do quilate dos acima mencionados e de inúmeros outros da mesma proficiência musical, quando eles abordam o que nasceu aqui e as suas próprias composições.
No resgate de fonogramas, eu fiz o que eu pude, tendo consciência de que muito do material gravado aqui ficou para trás, sem chance e recuperação. Quando o meu falecido amigo Fernando Blanco me pediu ajuda para editar o único disco do Quarteto 004 “Retrato em Branco e Preto”, gravado em 1968 para a obscura Codil, eu corri para ver o que podia fazer. O Blanco tinha remasterizado o seu muito bem preservado elepê (ele era muito amigo do grupo), tinha me dado uma cópia, mas quando um amigo dele pediu para passar o conteúdo para um CD que seria produzido comercialmente, ele então me fez aquele pedido, com alterações que ele achava que seriam melhor feitas aqui em casa.
O CD do 004 saiu, eu nunca tive uma cópia por cortesia do editor e nem percebi quando a prensagem se esgotou nas lojas. O 004 havia participado do disco “Batida Diferente”, a convite do compositor e músico Durval Ferreira, vizinho do Blanco, e esta foi, infelizmente, a última gravação de ambos.
É por essas e outras que eu sempre toco no assunto Bossa Nova e na sua memória, além de todo esforço na preservação do que para nós é mais importante. Se mais não faço é porque não posso! Outrolado_
. . .
Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.