Peter Jackson aproveitou cerca de 60 horas de filme 16 mm, para a montagem de um documentário sobre os Beatles, com duração de quase 8 horas, divididos em 3 longos episódios. O resultado está disponível no streaming Disney+ e em breve em Blu-Ray.
Peter Jackson, o infatigável diretor dos filmes sobre a obra do Senhor dos Anéis, volta à cena com outra infatigável obra, desta vez um documentário sobre Os Beatles, quando, em meados de 1969 o grupo ensaiava para uma última apresentação pública, a ser apresentada no filme Let it Be.
Jackson usou de ironia ao intitular o documentário de 3 partes com o título “Get Back”, música que se referia ao pedido de afastamento de alguém, e aqui no caso, um pedido de retorno dos Beatles às telas.
Uma quantidade inacreditável de filme 16 mm foi rodada em 1969, cerca de 60 horas, que foi agora resgatada com enorme qualidade de imagem. Quem assiste, nem acredita que se conseguiu aquela qualidade toda, vinda de um material tão antigo, de uma bitola de relativa baixa definição.
Quem viu o press-release do Blu-Ray não gostou da imagem, achou que houve excesso de tratamento de redução de ruído do filme, com consequências na limpeza daquele material. Na tela de TV onde eu assisti, eu vi o oposto, e não me importei com a retirada da granulação do filme, considerada excessiva por quem viu o Blu-Ray.
O documentário foi produzido para os estúdios Disney e consequentemente aproveitado para a apresentação no seu canal de streaming. Lá, a apresentação foi transmitida em Dolby Vision, com som Dolby Atmos. Este último me pareceu de pouca valia, em função do material de áudio disponível. Existe também à venda, para os interessados, uma versão em Blu-Ray, com Dolby Atmos e PCM 7.1, sem HDR, que deve sair em 12 de julho próximo.
Eu vejo pelos comentários na Internet, que muitos vibraram com o resgate dos filmes, principalmente por parte dos que ainda são fãs do grupo, pelo longo tempo de duração do documentário, num total de 7 horas e 48 minutos, divididos em 3 episódios. Para quem, como eu, não é tão fã assim, eu achei penoso de assistir aquele material todo.
Eu assisti Let It Be no cinema, 35 mm, mono. O original em 16 mm ficou nas mãos de Peter Jackson, que usou o que pode para construir as quase 8 horas do documentário. Se por um lado, os fãs adoraram ver a intimidade dos Beatles, por outro chega a ser uma surpresa ver como eles eram na intimidade, tamanhos os momentos onde se ouve muita conversa jogada fora nos ensaios.
Os fãs da Internet afirmam que certos mitos sobre o grupo foram desmistificados, mas eu sinceramente tenho as minhas dúvidas. Yoko Ono, por exemplo, que na década de 1960 chegou a ser rotulada na imprensa como desagregadora, e cuja presença no estúdio de gravação encarada como causa de desconforto entre os colegas de John Lennon, que foi responsável pela sua presença lá dentro.
Eu tenho cá as minhas dúvidas se houve uma desmistificação a este respeito, nem tanto pelas fofocas nos jornais daquela época, mas pelo simples fato de que qualquer documentário é o espelho da visão do diretor! O espectador vê na tela o que o documentarista se propôs a mostrar.
Seja como for, a gente se pergunta o que diabos a Yoko Ono estava fazendo lá. Pode-se aventar a hipótese de insegurança ou falta de apoio maternal na infância do artista que a convidou para estar lá. E diante do potencial criativo dos Beatles é pouco provável que Yoko Ono tivesse contribuído com qualquer coisa importante.
A atmosfera, exaustivamente mostrada no documentário, traz evidências da falta de maturidade daquele pessoal, ou então, da falta de certeza de que um estágio de auto afirmação como músicos e seres humanos tenha sido atingido. Também não fica claro os reais motivos pelos quais os Beatles criaram laços de antagonismo e depois se separaram.
O que fica sim bem claro é que o grupo foi vítima de uma aversão pelas apresentações em público. Aqui, novamente, é fácil de entender as razões disso, porque eles estiveram em vários conflitos com plateias, John Lennon em particular, falando besteira, como aquela estória de que eles Beatles eram mais populares que Jesus Cristo, episódios que acarretarem reações do público, as quais, no final, abalaram o grupo.
Nos Estados Unidos, os Beatles chegaram a ser acusados de comunistas pelos reacionários de plantão, que convocaram seus pares para queimar os elepês, como se aquilo tivesse voltado aos tempos dos nazistas, durante a segunda guerra mundial. Existem entrevistas filmadas daquela época onde um repórter pergunta a eles se iriam cortar os cabelos. Em outras ocasiões, quando Lennon resolveu fazer campanha contra a guerra do Vietnam, a imprensa novamente o tachou de arrogante!
O último concerto em público
Com a anunciada intenção de chocar o público e o sistema os Beatles aventaram a hipótese de se apresentarem em um local onde chamassem a atenção e fossem reprimidos pela polícia, que foi exatamente o que aconteceu quando Let It Be foi planejado. Na época do filme eu fui um que nem suspeitava disso, mas o documentário atual mostra todo este processo de protesto claramente.
A chegada da polícia não chegou a interromper a filmagem. Nos segmentos capturados com os policiais e o público se ouve algo deste tipo:
Público: “Very nice indeed”
Polícia: “They are disturbing the peace”
O documentário mostra que a polícia foi lá porque uma parte dos vizinhos reclamou do barulho. Houve uma promessa, aparentemente não cumprida, de desligar o PA (Public Address), que é o som amplificado, neste caso, voltado para a rua. Os policiais foram convidados a ir até o telhado daquele prédio, mas ficaram lá só assistindo tudo, nada foi desmontado.
A aparição dos Beatles no prédio onde foi filmado Let It Be só foi mostrada no terceiro episódio, que durou mais de duas horas. Talvez tenha sido o melhor momento. Eu acho meritório o resgate desse material filmado, embora, para mim pelo menos, é na maior parte do tempo, tedioso de se assistir. A montagem das sequências no telhado emulou a do filme Woodstock, de 1970, com exibição das várias tomadas de câmera em um tela dividida.
Por outro lado, eu tive a chance de ver de relance o console de mixagem EMI TG12345, que foi usado na gravação do álbum Abbey Road, de 1969, disco esse que teve versão 5.1 recentemente.
Também foi possível ver o tape deck 3M M23, já com 8 canais em fita de 1 polegada, usado parcialmente no disco Abbey Road e no White Album. O deck é mostrado em um canto, próximo da mesa de mixagem.
Antes disso, o estúdio usava um equipamento composto de mesa console Redd.37 e tape deck Studer J37, o último mantido depois no museu do estúdio. Este sistema era limitado a 4 canais, introduzido em 1965 e removido após 1969.
Get Back não deixa de ser um resgate importante, preservando muito da história dos Beatles. Muito ainda deveria ser melhor explicado porque o grupo fez tanto sucesso e depois desapareceu. Olhando só os ensaios, acho que não é possível entender tudo isso, mas cabe a quem assiste tirar conclusões a este respeito.
Os Beatles foram um fenômeno no mundo todo, antes de se perderem em choques de vaidade entre si. Na minha adolescência, eu não era fã, ouvia somente os elepês na casa dos outros. Achava o som diferente, e não sabia entender por que. Acho até hoje Abbey Road um disco antológico, e o mantenho na minha coleção como referência. Muito da produção dos Beatles não me atraiu, mas é possível até hoje ouvir canções de grande inspiração como composição, algumas com alto grau de universalidade, do tipo que todos nós podemos nos identificar.
Ajuda também a quem viveu por lá, para ter um pouco mais de clareza dos hábitos e da cultura britânicos. Eu conheci muito dessa cultura quando tinha 12 anos de idade, e depois, quando vivi 4 anos seguidos em Cardiff, me dei conta de que não sabia da missa a metade. Valeu, por isso mesmo, como dizia um dos meus primos, como “experiência cultural”! [Webinsider]
Agradecimento:
Eu queria agradecer muito ao Lucas Mendes, amigo do meu filho, que me deu a chance de assistir a este documentário. Foi cansativo, mas valeu a pena!
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.