Entre os muitos tropeços de produção de filmes de animação, O Caldeirão Mágico gerou disputas e ressentimentos entre cineastas e executivos do estúdio Disney. Somente muito tempo depois o filme se tornou um cult para os fãs de filmes de animação.
O estúdio fundado por Walt Disney sobreviveu anos a fio com grande sacrifício dos que participaram dele, de seu fundador, que era um visionário, e seus colaboradores, técnicos e cineastas. Da mesma forma como nos outros grandes estúdios, Walt controlava tudo, mas tinha o que parecia ser uma capacidade inata de reconhecer talentos e dar chance a eles.
Durante a sua vida, e mesmo depois de ter morrido, Walt Disney foi vítima de críticas maldosas e injustas, porém toda a sua obra introduziu inovações que outros estúdios de porte maior não conseguiram realizar. Inovou no som estereofônico, com Fantasia, esteve atento às mudanças de formatos e relações de aspecto de tela larga.
Com a morte de Disney o estúdio ficou à deriva. E sobreviveu graças a antigos animadores que sabiam o que ele queria, os assim chamados por seus pares mais jovens de “os nove homens velhos”. Todos esses “velhos” eram artistas de ponta, que continuaram o que Disney deixou para trás.
Porém, havia uma urgente necessidade de revitalizar o setor de animação, o mais forte ponto historicamente conquistado nesta área de filmagem. E assim, novas gerações seriam recrutadas, para dar continuidade ao trabalho de produzir e filmar longas de animação. Para tal, teriam que ser avaliados antigos projetos e pesquisar novos temas para serem planejados e, se fosse o caso, filmados.
O episódio ocorrido na mega produção de The Black Cauldron
Um dos antigos projetos a serem reavaliados foi o do conjunto de livros escritos por Lloyd Alexander, em cima de uma mitologia galêsa, que levou o nome de “As Crônicas de Prydain”. Apenas os dois primeiros livros foram adaptados. A estória é similar à do conjunto de obras conhecido como O Senhor dos Anéis.
Depois de uma produção tumultuada, o filme foi lançado em 1985 com o título “The Black Cauldron” (no Brasil, “O Caldeirão Mágico”). Logo de início, foi decidido que a filme seria apresentado em 70 mm, o que tornou a produção cara. Para isso, lançou-se mão do processo de fotografia Super Technirama 70: um negativo de 35 mm horizontal é fotografado com uma lente anamórfica, podendo depois gerar cópias de 35 scope e 70 mm, com grande fidelidade de imagem.
Este tipo de filmagem fora usado em A Bela Adormecida, quando o próprio Disney resolveu inovar em apresentações das suas animações, e o resultado foi espetacular.
O filme mudou de mãos várias vezes, e acabou com a direção de Ted Berman e Richard Rich, produzidos por Joe Hale. Várias modificações a partir do storyboard original foram feitas, aumentando a dinâmica do filme, e encurtando-o com a remoção de cenas que não contribuíam ao andamento da trama.
Entretanto, o pior ainda estava por vir: o executivo do estúdio Jeffrey Katzenberg assistiu a primeia versão e ordenou que fossem cortados 10 minutos que ele diagnosticou como de “excessiva violência gráfica”.
O produtor Joe Hale ficou furioso e tentou reagir. Mas, no final, Katzenberg acabou mutilando o filme com cortes que somaram 12 minutos do projeto final.
Até hoje, entusiastas e colecionadores tentam recuperar o que foi tirado do filme, mas este esforço coletivo tem sido em vão. A decisão de Katzemberg foi errada e equivocada, porque ele achava que a violência exposta no filme não era conveniente para o público infantil.
Tudo faz crer que Katzemberg desconhecia o histórico do estúdio e dos filmes de animação. Walt Disney já tinha feito uso de cenas sombrias e assustadoras décadas antes, basta ver o segmento de A Noite No Monte Calvo, de Fantasia, de 1940. Na cena, o demônio convoca os mortos para uma missa negra, somente derrotado pelo canto da Ave Maria, dando um fim católico no epílogo do filme.
Em O Senhor dos Anéis com animação dirigida por Ralph Bakshi, de 1978, a violência gráfica foi exposta sem pudores. O filme foi extensamente “rotoscopado”, com atores redesenhados o filme todo. Ao contrário do filme de Disney, que foi desenhado à moda antiga, e assim mais atístico e menos agressivo aos olhos.
O Caldeirão Mágico em home vídeo
O filme saiu em Blu-Ray 2K anos atrás, mas só importando e pagando um preço muito alto hoje para se conseguir uma cópia. Eu ainda tenho o DVD importado antigo, mas a imagem não é lá dessas coisas.
A boa notícia, porém, é a disponibilidade do filme em alta resolução pelo streaming Disney+: a apresentação da imagem é impecável e o som de ótima qualidade. É anunciado que seria apresentado com Dolby Vision, mas na minha TV ele não dá as caras.
Agora, a mixagem do som é algo à parte: os diálogos são direcionados, simulando 5 canais atrás da tela (padrão Todd-AO de 70 mm). Nos cinemas, o filme foi apresentado em Dolby Stereo, mas neste formato, os diálogos são obrigatoriamente encarcerados no canal central, o que sugere que a trilha 5.1 apresentada no streaming foi construída a partir da mixagem em 70 mm.
As vozes usadas no filme foram de atores britânicos conhecidos, todos impecáveis como seria de se esperar, dando ênfase à dramaticidade da fantasia, mas sem exageros.
Antes de terminar, um detalhe que vale a pena ser mencionado: muita coisa do trabalho de animação nunca foi direcionada às crianças, com cenas de violência gratuita. Tal fato nunca impediu as crianças de gostar dos curtas, e eu posso falar por mim mesmo, no meio de uma multidão de crianças presentes nos festivais Tom & Jerry. Se Katzemberg entendesse de animação nunca teria mutilado a obra de terceiros. Seu dano mostrou-se irreparável, o que é lamentável para todos os fãs e estudiosos do cinema de animação.
A relação interpessoal entre Katzemberg e Roy Disney azedou no correr do tempo. Roy percebeu que ele arrebatava para si todos os sucessos do estúdio e concentrava poder espúrio e ditatorial nas produções. Com o aumento cada vez maior da pressão em cima dele, ele acabou pedindo demissão. Michael Eisner, seu protetor, foi pelo mesmo caminho, e os fãs de animação até hoje agradecem. [Webinsider]
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.