“Que minhas primeiras palavras diante deste Parlamento Mundial sejam de confiança na capacidade humana de vencer desafios e evoluir para formas superiores de convivência no interior das nações e no plano internacional”.
Assim começou o discurso de Lula nas Nações Unidas, em setembro de 2003. Assim mesmo, em português. Foi a primeira vez que a sede da ONU ouviu nos seus microfones a nossa língua, em um discurso oficial.
Parece–me estranho, e até mesmo chocante, que na sede da organização internacional por excelência, nunca antes se tivesse usado o sétimo idioma com mais falantes nativos do mundo. Será que só eu me espanto ? Será que é tão claro assim que devemos nos expressar na(s) língua da(s) metrópole(s) e, o que é pior, ter os valores da metrópole ? Isso me lembra Nicolas Guillén…
Nicolas Guillén (1902–1989), poeta cubano, considerado por muitos o maior expoente da poesia negra latino–americana. Em uma época em que Cuba encontrava–se sob o domínio estadunidense, Guillén foi um dos primeiros a levantar a voz e gritar bem alto que o negro cubano era tão (ou mais) bonito que o branco ianque, que o espanhol era tão ou mais rico que o inglês, e que a cultura da ilha era tão importante como o sonho americano ou os refinamentos europeus.
Teu amigo Mr. Smith,
inglês ou ianque, eu não sei,
se rebela quando escreves shell.
(Parece que comes um ele,
e que além de tudo pronuncias chel.)
Bem, e daí?
Quando for tua vez,
manda–le dizer cacarejador
e pergunta onde fica a serra da Diamantina
e quem foi Zumbi,
e em que lugar deste planeta morreu Tiradentes.
Um favor:
que te falem sempre em português.
Obviamente, Guillén não tinha estas referências tão brasileiras (e qualquer falha no ritmo e na poesia, culpem minha tradução), mas falou de seu povo, sua cultura (leia o poema original).
Mas porque toda essa conversa lingüística por aqui, no Webinsider ? É que ainda repercute a invasão brasileira nas diversas manias da internet. Foi assim com o mundo dos blogs. Foi assim com os fotologs (tanto que se criou até um limite diário de quantas pessoas podiam se cadastrar por dia, por país), é assim no Orkut.
No Orkut, essa nova mania criada pelo Google, em particular, há toda uma movimentação (muitas vezes coordenadas por brasileiros) para que se fale inglês. Já vi mais de um reclamando que ao buscar comunidades (as listas de discussão do Orkut), saem dez mil comunidades em português e que isso não deveria ser assim. Será que não? Saiamos um pouco do virtual e vamos ao real…
Somos invadidos, nas nossas ruas, nos nossos cinemas, nas nossas rádios, pela cultura norte–americana. O português então, sofre: todos os dias, quem passeia pelas ruas de qualquer grande cidade no Brasil vai, cedo ou tarde, encontrar uma loja com “50% off”, vai poder comprar um “cheeseburger” passando pelo “drive–through” e até mesmo cortar o cabelo no “hair–dresser”. O fluxo no sentido inverso é sempre extremamente limitado: é um Jobim que faz sucesso, um Cidade de Deus que ganha reconhecimento. Coisa pouca, coisa rara.
Com a internet, entretanto, pela primeira vez, invadimos. Invadimos mesmo, invadimos geral, como se gosta de dizer. Invadimos como eles nos invadem. E, meus amigos, quando eles experimentam da fruta amarga da qual comemos, cada dia, até o caroço, eles acham ruim!
Isso tudo me faz pensar nos gregos: quando os romanos conquistaram definitivamente a Grécia, impuseram as leis do resto do Império. Os gregos, menos poderosos militarmente mas com sua cultura muito mais rica, acabaram por impor, implicitamente, diversos dos seus valores, efetuando uma verdadeira conquista às inversas. A mente é mais poderosa que o corpo! Lição que, infelizmente, o mundo ainda não aprendeu (vide os srs. Bush, Blair e Aznar),
Fico aqui, viajando na história e sonhando acordado, perguntando–me se a internet não pode ser, justamente, a nossa pitada grega nesses dias modernos. A nossa via de liberação, a nossa porta de saída para o mundo, um mundo mais justo e igualitário, onde todos podem partilhar suas raízes, em trocas equiparáveis. Em uma língua que seja escolhida pela sua adequação à comunicação internacional, sem privilégios nem prejuízos para ninguém, e não segundo o poderio militar/econômico dos seus falantes. Ou melhor, cada um em sua língua e que a tradução se torne a profissão do futuro.
Isso tudo pode parecer, aos ouvidos desatentos, uma grande bobagem. Por que simplesmente não aprendemos todos inglês e se acabou o problema ? É que a questão é mais delicada e envolve dominantes e dominados. A língua é muito mais que um amontoado de palavras. A língua é a nossa forma de comunicação com um mundo. De uma certa forma, a língua é o que nos torna humanos e não meros animais. É em português que eu sou eu mesmo. É nessa língua doce e melodiosa, cheia de curvas e montanhas, que eu posso dizer quem sou. Mais que isso, é apenas em português que eu posso saber quem sou.
Que fazer ? Seguramente há que se impor alguma oposição à metrópole, à língua da metrópole… Como fazem os brasileiros quando se comunicam em português no Orkut, quando escrevem em português nos seus blogues. Não queremos, entretanto, nos tornar, no caminho, odiados mundo afora como um povo sectário. Para encontrar o bom–senso, o meio termo, será necessário, sem dúvida, uma grande luta.
E nós, com conhecida capacidade de agregação, somos o povo ideal para conduzir esta batalha . E que as minhas últimas palavras neste texto sejam as do nosso presidente, palavras de “confiança na capacidade humana de vencer desafios e evoluir para formas superiores de convivência no interior das nações e no plano internacional”. [Webinsider]
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Alysson M. Costa
<strong>Alysson M. Costa</strong> (alysson@gmail.com) é professor do ICMC/USP São Carlos e trabalha na área de otimização combinatória.