Uma das coisas que mais me impressionaram na transmissão dos desfiles de carnaval pela Rede Globo não foram as escolas (embora maravilhosas – e aqui lamento o incidente com a Velha Guarda da Portela, minha escola do coração), nem as madrinhas e rainhas de bateria (lindas), mas com a quantidade de erros de português cometidos pelos repórteres que faziam a cobertura.
Não sejamos tão duros com os repórteres: afinal, cobrir um evento ao vivo não é nada fácil. Erros são comuns, e até esperados. Mas uma coisa é você se atrapalhar com as palavras na hora de entrevistar as celebridades que estão prestes a desfilar (principalmente figuras lendárias como Jamelão, sabidamente difíceis de entrevistar). Outra, bem diferente, é o repórter dizer “todas escolas de samba que participam deste primeiro dia…” Frisei o todas escolas porque esta é a prova de um crime hediondo: o assassinato do artigo definido. Onde está o artigo “as”?
Esta omissão do artigo não é exclusividade da Globo, e nem mesmo dos dois ou três repórteres que a cometeram durante a transmissão. É um fenômeno que, assim como o infamemente popular gerundismo (“vamos estar atendendo o senhor assim que possível”, por exemplo), está se disseminando pela população mais rapidamente que um vírus.
Esse tipo de “assassinato” sempre me traz à mente o famoso livro de George Orwell, 1984. O regime totalitário futurista descrito nessa história se dedicava, entre outras atividades, a compilar anualmente um dicionário de Newspeak (na ótima tradução para o português, novilíngua), onde, ao invés de cumprir a função de um dicionário tradicional, ou seja, registrar as palavras já existentes na língua, os gramáticos do regime se dedicavam a criar novas palavras e expressões, geralmente aglutinações, justaposições e abreviações, tudo dedicado a tornar a língua o mais sintetizada e simplificada possível. Tudo com o propósito de facilitar a manipulação das massas através da simplificação do pensamento dos indivíduos que a compõem.
Parecia ficção, mas está se tornando realidade. Claro que, diferente do livro de Orwell, não se trata de nenhuma manipulação totalitarista nem necessariamente da mídia (se bem que as barbaridades perpetradas pelos membros de todas as edições do programa Big Brother Brasil e seus congêneres de outras emissoras também não ajudam, mas deixemos isso de lado por enquanto), mas é preocupante mesmo assim.
Alguns leitores poderão argumentar: mas isso não é normal? Não faz parte do processo de uma língua viva estar em constante mutação? É perfeitamente normal, e saudável, que a língua mude para acomodar as mudanças sociais, políticas, econômicas, culturais e tecnológicas. Mas uma coisa é mudar através da criação de neologismos (palavras novas, inventadas para explicar algo que antes simplesmente não existia, como por exemplo informática ou nanotecnologia), incorporações de outros idiomas (como as palavras de língua inglesa hardware e software, ou a finlandesa sauna) ou ainda o aportuguesamento de palavras estrangeiras (como o nosso querido futebol, que nada mais é que a transformação fonética da palavra inglesa football). Outra coisa é eliminar elementos da frase e modificar seu significado ou prejudicar sua compreensão por pressa ou simples desconhecimento.
Exagero deste escriba? Parafraseando Machado de Assis, mudou a língua ou mudamos nós? Tire o leitor suas conclusões. [Webinsider]
Fábio Fernandes
Fábio Fernandes é jornalista, tradutor e escritor. Na PUC-SP, é responsável pelo grupo de pesquisa Observatório do Futuro, que estuda narrativas de ficção científica e a forma como elas interpretam e são interpretadas pelo campo do real.