Há um travelling vertical. A câmera contempla brevemente um vistoso galo, passa por duas formas triangulares e o movimento morre ao ver as cabeças de Ivan e Anastácia, simetricamente enquadradas no centro da imagem.
Há um corte em eixo e a agora estamos num plano americano. A pergunta que fica é: por que, exatamente, precisamos desse corte em eixo? Eisenstein não poderia ter simplesmente feito um movimento de câmera e feito um travelling para frente?
A resposta é essencialmente simples: o cinema de Eisenstein não está baseado em movimento, mas sim em montagem; colagem de um quadro em outro. Em qualquer sala de aula num curso de Cinema, ou mesmo numa busca rápida no Google, você fatalmente encontrará a associação do nome de Eisenstein ao termo “Montagem Intelectual”.
Mas, afinal, o que é montagem intelectual? O crítico André Setaro nos diz:
Montagem Intelectual ou Ideológica: operação com um objetivo mais ou menos descritivo que consiste em aproximar planos a fim de comunicar um ponto de vista, um sentimento ou um conteúdo ideológico ao espectador.
Eisenstein escreveu na justificativa de sua montagem de atrações: “uma vez reunidos, dois fragmentos de filme de qualquer tipo combinam-se inevitavelmente em um novo conceito (…)”.[i]
Soa claro para você? Não, nem para mim. André Bazin, em seu ensaio A Evolução da Linguagem Cinematográfica, define “grosseiramente” (mas didaticamente e acertadamente) como:
…o reforço do sentido de uma imagem pela aproximação de outra imagem que não pertence necessariamente ao mesmo acontecimento (…). Nessa forma, a montagem de atrações raramente foi utilizada, até mesmo por seu criador [Eisenstein], mas podemos considerar bem próxima em seu princípio à prática mais geral da elipse, da comparação ou da metáfora (…).[ii]
Claro que as aproximações de Bazin à metáfora e a comparação são grossas e apressadas, mas refletem um gosto histórico do autor francês à continuidade e a ausência de cortes no cinema. A cada novo corte, é possível dizer, o público é despertado; há uma quebra da imersão fílmica quando o montador utiliza sua tesoura. É por isso que Hollywood geralmente utiliza a Montagem Acelerada em cenas de grande importância (set pieces) ou ação.
E o filme pula
O díptico (um trabalho que depende de duas partes para se tornar completo) de Eisenstein Ivan, o Terrível não é tido geralmente como um filme-exemplo de Eisenstein e tampouco é o mais preferido de todos. E também não é em Ivan que utiliza a Montagem Intelectual em toda sua glória e exuberância (apesar de existirem momentos óbvios, os planos que se alternam entre o rosto de Anastácia e moedas de ouro). Ivan, o Terrível, por exemplo, sofre de um problema terrível em sua primeira metade: a montagem é incrivelmente claudicante — observa-se que o problema não é originado de um suposto experimentalismo, mas sim de uma inconstância em sua forma.
Na verdade, talvez eu seja partidário da ideologia de Bazin. A cada novo corte o público desperta da sua própria experiência. Nada pode ser mais tridimensional (imageticamente falando) e impressionante do que um belo plano contínuo com grande profundidade de foco, um plano que podemos ver até onde a vista alcança — e o pior é que vez por outra Eisenstein nos apresenta esses planos belíssimos (falarei de um deles mais tarde).
Vamos retomar o exemplo que abriu este texto: você consegue imaginar um travelling como esse que descrevi, certo? Certo. Uma bela contemplação de um cenário estonteantemente bem desenhado (desenho de produção de Iosif Shpinel e direção de arte do próprio diretor) nos é mutilada para um plano simétrico e sem graça do casal que já estávamos vendo.
O problema aí não é apenas a interrupção de um belo e elegante movimento de câmera (porque Cinema é a repetição da vida, e, na vida, as coisas se movem), mas sim a terrível e enfadonha redundância. A brutalidade da tesoura de Eisenstein é excruciante.
Mas não é, claro, a primeira vez que isso acontece em Ivan, o Terrível. Ao contrário do que pode estar parecendo, eu mão tenho nada contra cortes em eixo (que é o nome dado à “redundância” que apontei); na verdade eu acho admirável quando um cineasta o utiliza — algo que está cada vez mais raro, nesses dias. Por exemplo, uma das sequências mais famosas de 2001: Uma Odisseia no Espaço (2001: A Spacey Odyssey, 1968) envolve uma série de cortes desse estilo (e o famoso olho do computador Hal 9000). A série Os Simpsons e o cineasta John McTiernan (Duro de Matar) utilizam bastante esse recurso.[iv]
Mas eu gosto que utilizem o recurso de forma inteligente. O que acontece em Ivan é uma generalização do recurso. Há pouquíssima mobilidade no filme: tudo parece duro, morto, seco. Sim, o desenho de produção é belíssimo; sim, a fotografia de Andrei Moskvin é um esplendor, mas… e daí? E daí tudo isso se não há exuberância, apenas uma sucessão de cortes impiedosos? Um açougue, eu diria. Em 47 minutos de filme a câmera se movimenta apenas quatro vezes — e um desses movimentos é apenas uma breve panorâmica.
E o pior é que não é um experimentalismo — se fosse, talvez pudéssemos encontrar algum significado ou dizer que a técnica poderia se desenvolver. Poderíamos, mas não podemos: Eisenstein, não faz nada num filme por acaso.
Ele desenhou diagramas compondo cada um dos cenários e infinitos storyboards. Além disso, se você puder ler o roteiro, verificará que cada um dos planos do filme está cuidadosa e minuciosamente planejado. (“O roteiro”, disse o cineasta, “é uma bota, preservando seu formato quando não há nenhum pé calçando-a”).[v]
Isso tira grande parte do fôlego do filme. Uma vez que Ivan tem uma vibe deliberadamente teatral e cartunesca (mantenha em mente que Eisenstein era fã dos trabalhos de Walt Disney e clamou que Branca de Neve e os Sete Anões era o melhor filme do mundo).
Ora, se há toda a preocupação de mostrar que os habitantes do palácio entram e saem das salas por espaços estreitos que nos lembram túneis de ratos, cortar de um plano aberto para um close soa um quase como um desperdício de cenário, não? E afinal de contas, o filme e o público ganham exatamente o quê ao ser apresentado ao czar com uma série de cortes em eixo assim que este sai de sua tenda no campo de batalha de Kazan? Alguém pode dizer que é para acentuar a leve transformação física de Ivan. Eu poderia concordar se fosse apenas um corte, mas aqui temos dois — ou seja, três planos de duração razoável que mostram a mesma coisa e minam o impacto desta entrada. (E, claro, existem outros exemplos, como na coroação de Ivan, em que Eisenstein aproxima cada vez mais a câmera do cantor de canto gregoriano a cada inspiração que ele faz).
O oposto: Ivan, o Terrível – Parte II
Quando falamos da Parte II estamos falando essencialmente sobre contraste. Se a Parte I é notada pela estripulia na mesa de montagem, este segundo filme os planos fluem com a tensão aproximada a de fluxo de pensamento de James Joyce. Os planos são longos e cuidadosamente dirigidos. As imagens de Ivan, o Terrível – Parte II fluem como as águas num rio. Um rio manchado de petróleo, mas um rio.
“Enquanto que suas teorias sobre a ‘montagem'”, escreve David Ehrenstein, “mantiveram teóricos ocupados por décadas, elas eram simplesmente conveniências para ele [Eisenstein] — abandonadas pelo seu mestre assim que o som chegou com Alexander Nevesky e Ivan, o Terrível”.[vi]
Eu discordo de Ehrenstein. Sim, Ivan é de longe um espetáculo — um espetáculo em sua raiz, desde os créditos mostrados sobre uma nuvem negra ao som de um épico sonoro escrito por Sergei Prokofiev (a trilha sonora é um monumento por si só). Mas, mesmo sendo um espetáculo, nem por isso sua Montagem Intelectual e seus planos de reação subtraem suas teorias quanto à forma do filme (sim, trocadilho planejado).
O que há aqui, na verdade, é uma união entre a tesoura e a teatralidade. Quando alguém diz/faz alguma coisa e Eisenstein passa mais de 30 segundos cortando entre os rostos caricaturais da corte de Ivan, ele não está nada mais do que fazendo um reforço do absurdo que são as pessoas que cercam o czar (ou alguém acredita em Efrosínia [vii] como uma pessoa… digamos… plausível?).
Na Parte II há uma quebra do modelo do filme predecessor. O centro de gravidade deixa de ser a unidade do personagem Ivan e os boiardos liderados por Eufrosínia ganham mais proeminência (não é por acaso que o subtítulo original é “O Plano dos Boiardos”). Talvez por isso mesmo a montagem sossegue o facho e passe a ser mais contemplativa e a mise en scène mais vistosa. A Parte II é tomada de um notável senso de determinação. É o segundo ato de um grande filme incompleto [vii] (por isso que adotei o termo “díptico”), e então deve ser calma para que a enorme galeria de personagens possa fazer sentido.
Daí o filme só tem a ganhar: Eisenstein esquece a tesoura e passa a operar com a lente. A utilização da profundidade de foco é intensa e o filme se transforma num belíssimo orgasmo virtual. Mais do que uma enorme sequência de pessoas entrando e saindo de corredores estreitos (e estes passam a ser muito melhor empregados neste segundo filme), Ivan, o Terrível – Parte II é um drama pesado e atmosférico. A loucura não está isolada no czar ou em sua tia Efrosínia: ela está espalhada pelo palácio.
Muito mais que induzir o espectador a aceitar uma ideia preconcebida por Eisenstein sobre seus personagens (ou por qualquer outro, porque não é precisa a Montagem Intelectual para mostrar Ivan IV como louco), a Parte II impugna uma versão hermética da história e nos deixa claro que todos são igualmente insanos. Não há um julgamento sobre o certo e o errado, mas sim entre o errado e o ainda mais errado.
Qualquer momento de lealdade, emoção (de plástico ou puras) e de desejo é como oxigênio em Parte II. É tentador chorar com Ivan puxando seu velho companheiro Fyodor Kolichev pela capa enquanto implora por um amigo. É um momento não apenas de emoção verdadeira, mas é quando a câmera de Eisenstein se afasta um pouco dos seus objetos de estudo e nos permite uma contemplação maior da vastidão e da solidão do abstrato castelo em que eles vivem: veja como suas roupas pretas se contrastam com o branco do salão do trono (além disso, a beleza das capas esvoaçantes dos dois homens é bem elevada).
E a maior prova da importância da moderação do corte e a importância da movimentação da câmera e da profundidade de foco se encontram justamente na climática marcha dos oprichniks, a polícia secreta do czar, já no último ato do filme. A câmera faz travellings apaixonados e se suspende acima dos personagens, acompanhando-os a distância. Se, em close, a fotografia de Andrei Moskvin utilizava um belo jogo de sombras para cavar sulcos cavernosos nos rostos dos personagens, aqui a câmera mais a iluminação atuam quase que como pincéis, aliada ao belo desenho de produção.
Observe o plano em que Vladimir se encontra aparentemente sozinho na catedral, iluminado apenas por um dramático raio de luz, desolado. Há uma espécie de rima visual com o plano que o mandou para lá, quando Malyuta entregou o convite do rei. Se agora Vladimir está sozinho e longe da câmera, Malyuta estava ameaçadoramente inclinado para a frente, falando com a própria câmera. É quase como se Malyuta se desvencilhasse dos laços do filme e indicasse para nós o que vai acontecer.
Mas é claro que eu não sou contra o corte ou qualquer operação de montagem. O caso aqui é que eu estou dando um testemunho contra o exagero. Não há nada de errado com um corte em eixo, como abordei no início: Apenas não apoio a redundância. Aliás, há um belíssimo corte em Potemkin; um que parece ecoar até hoje: O comandante do navio chicoteia as costas de um marinheiro — no exato momento em que o chicote bate na pele do marinheiro, a câmera nos aproxima ainda mais e fica claro que o movimento teve de ser feito duas vezes. Há neste momento uma despertar induzido ao espectador: O impacto é duplicado.
Eisenstein decupou Ivan, o Terrível cuidadosamente — e este parece ser o erro. O excesso de decupagem é interessante, porque reflete a mentalidade cuidadosa do seu criador. Mas quando isso desce ao filme, o gosto — errôneo — que fica é que não é bom decupar demais.
Mas pensar isso é bobagem. A cena mais famosa de Potemkin é aquela da Escadaria da Odessa. Aquela cena é quase toda baseada em cortes. Os cortes ali, ao contrário dos de Ivan, não são gratuitos: observa-se que a decupagem foi cuidadosamente delineada; os cortes estão aliados a movimentos de câmera primorosos. E cortar é uma arte que às vezes nem seu maior domador obedece. E talvez por isso mesmo seja certo dizer que Cinema é muito mais movimento e menos cortes.
…………………..
[i] Ver SETARO, André. A Montagem Intelectual ou Ideológica. Disponível em: http://setarosblog.blogspot.com.br/2009/06/montagem-intelectual-ou-ideologica.html/. Acesso em: 15 ago. 2012.
[ii] BAZIN, André. A Evolução da Linguagem Cinematográfica. In: BERNARDET, Jean-Claude (Org.). O Cinema – Ensaios. 1. ed. [s.l.: s.n.], 1991.
[iii] Um exemplo rápido acontece no episódio em que o Cara dos Quadrinhos diz que Homer é “aceitável”. Ver BORDWELL, David. Seed-beds of style. Disponível em: http://www.davidbordwell.net/blog/2009/11/27/seed-beds-of-style/. Acesso em: 16 ago. 2012.
[iv] EISENSTEIN, Sergei. The Form of the Script. In: S. M. Eisenstein: Selected Works – Writings, 1922-34. Trad. Richard Taylor. Great Britain: BFI Publishing, 1988, v. 1. (S. M. Eisenstein: Selected Works).
[v] EHRENSTEIN, David. Bezhin Meadow. Senses of Cinema. Disponível em: http://sensesofcinema.com/2002/cteq/bezhin/. Acesso em: 16 ago. 2012
[vi] Procurei qualquer coisa sobre a boiarina Efrosinia Staratskaia no Google, mas todos os resultados me faziam referência somente ao filme de Eisenstein — e de Eisenstein apenas. Nem mesmo o longa Tsar, de Pavel Lungin, a apresenta como personagem. O que podemos concluir daí, então?
[vii] Originalmente, Ivan, o Terrível seria composto por três filmes. O último — batizado não oficialmente como “Ivan, o Terrível – Parte III: As Lutas de Ivan” — começou a ser filmado, mas Eisenstein morreu durante as filmagens. O pouco que já havia sido rodado (800 metros, pouco menos de dois rolos brutos) foi lançado em 1988 como curta-metragem.
[Webinsider]
…………………………
Leia também:
- Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge: uma opinião
- 2001, Uma Odisséia No Espaço
- O bom e velho cinema europeu
…………………………
Acompanhe o Webinsider no Twitter e no Facebook.
Assine nossa newsletter e não perca nenhum conteúdo.
Uma resposta
Muito bom o seu texto, Victor Bruno. Para mim, acima de tudo foi esclarecedor.
Há tempos soube do pioneirismo de Eisenstein, mas sou um mero apreciador do dito Cinema de Arte, de Culto e não estudante de Cinema.
Gostei muito da exemplificação do conceito da Montagem, algo que não compreendia antes.
Assisti recentemente ao díptico no Cine Conhecimento do Futura e achei magistral o filme. Mas, no que tange o gosto pessoal discordo de alguns pequenos pontos, pois é justamente essas “facadas compulsivas” (entenda-se a própria Montagem), o que mais encantou-me em Ivan. É notável minha adoração pela Parte 1. E senti falta do que vi antes na Parte 2. Encomodou-me a cor, o travelling e até mesmo o desfecho. Porém, o díptico é soberbo com louvor!
Lembrei que Peter Greenaway (que admiro absurdamente) é muito fã e influenciado por Eisenstein. Mas olhando para a sua filmografia, até mesmo ele não é adepto dessa técnica, de forma tão excessiva e rigorosa como em Eisenstein aplicou em Ivan. Pelo contrário, apesar da teatralidade e de cenas/molduras fascinantes tal qual os filmes do mestre russo, Peter abusa dos travellings e do longos planos-sequência. Ainda não vi “Eisenstein in Guanajuato”: a homenagem de Peter a Sergei (sem a benção da Rússia). Será que há neste, a intenção de também homenagear o conceito que tornou o cineasta russo uma referência mundial até os tempos atuais?
Um abraço.
Rafael