A importância de mover a câmera: o travelling no cinema

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Alguns cineastas utilizam o travelling como forma de chamar a atenção do espectador. Acima, Martin Scorsese utiliza um travelling rítmico-formal para retomar a linha do tempo de A Última Tentação de Cristo de forma chocante e econômica.

Algo me chama atenção no cinema recente de Paul Thomas Anderson. É a maturidade, talvez. Talvez — não estou certo se é isso.

Provavelmente o que eu estou chamando de maturidade seja, na verdade, o tal do experimentalismo. Anderson, a começar por sua maior obra-prima, Sangue Negro, caminha cada vez mais distante daquelas piruetas e firulas que marcaram Magnólia, Boogie Nights e Embriagado de Amor. Você se lembra, certo? Planos-sequência; câmera indo para frente e para trás apenas pelo simples prazer de pôr movimento nos quadros… enfim, Anderson na vibe Scorsese.

Eu não sou contra o movimento de câmera. Se você achou isso por um segundo ou menos, por favor, releia o título do artigo. Na verdade, eu não consigo entender como um cineasta pode pensar que consegue fazer um filme sem fazer um travelling que seja. Mover é viver. O cinema é uma imitação da vida — e se imita, significa que exagera. Ninguém vive uma vida parado — sempre tudo se movimenta.

No cinema, o celuloide dentro da câmera (ou o HD recebendo dados, já que estamos na era do cinema digital) se move para captar as imagens. Logo, não faz o mínimo sentido usar um quadro sem movimento. Nenhum. Mover é mais que uma necessidade: É uma qualidade. Neste artigo, tentarei demonstrar para você os quatro tipos de movimentos de câmera (daqui para frente, travellings) que considero principais dentro da Sétima Arte.

Tipos de travellings

O travelling rítmico-formal

Vamos começar por John Ford. Ford, como eu disse em meu texto sobre O Sol Brilha na Imensidão, não é um cineasta que é dado a movimentos gratuitos.

Pelo contrário — a câmera só se mexe em qualquer um dos seus filmes quando alguma revelação ou em algum momento de forte impacto emocional, e talvez por isso mesmo seus travellings sejam tão bem-feitos.

Primeiramente, a composição dos quadros é sempre muito, muito bem desenhada e orquestrada. Segundo, por se recusar a mexer na câmera até o último instante, os movimentos são sempre realçados e impactantes. São como se fossem aqueles brócolis verdes no meio do arroz branco. Prova disso é aquele memorável travelling que apresenta Ringo Kid (John Wayne) em No Tempo das Diligências.

Se formos analisar a cena, veremos que em momento algum a câmera se mexe. Wayne reserva apenas o momento em que Wayne aparece para se movimentar. Esta cena é sem dúvida uma obra-prima da decupagem.

Este é o que chamo de travelling rítmico-formal. É um movimento de câmera que serve não só para mostrar ao público algo importante, mas também para manter o público atento ao que está acontecendo. É provavelmente uma das formas de travelling mais comuns, já que (1) é a maneira mais óbvia de chamar a atenção do espectador e (2) é a mais objetiva. Por isso, é difícil de achar um cineasta que tenha usado essa opção estética de maneira autoral (como Ford). Qualquer um pode montar uma sequência usando esta técnica. Por exemplo:

  1. Plano médio mostra José acorrentado num calabouço.
  2. Close no rosto de José. Ele vê algo fora do enquadramento.
  3. Plano geral nas grades do calabouço.
  4. De volta a José. Lento zoom em seus olhos.
  5. Travelling em direção a uma chave pendurada ao lado da fechadura do calabouço.
  6. Plano geral do calabouço. José caminha até grade do calabouço e pega a chave. Ele escuta um clique.
  7. Travelling rápido em direção ao rosto de José. Ele olha para cima.
  8. De volta ao plano geral do calabouço. Uma enorme e afiada lâmina cai e corta o braço de José.

Entretanto, alguns exemplos são notáveis. Por exemplo, Hitchcock aumentou exponencialmente o impacto da revelação ao final em Disque M para Matar. Douglas Sirk aplica ritmo e tensão ao confinamento dos soldados alemães em Amar e Morrer (como quando a câmera sai de um close numa mesa de carteado e revela todos os entediados e deprimidos soldados num porão).

Scorsese aumenta nossa atenção ao final de Depois de Horas revelando onde Paul Hackett está escondido com um travelling rápido auxiliado por um efeito sonoro bizarro. Mas, entretanto, na contramão, temos M. Night Shyamalan revelando por que Bruce Willis não consegue abrir a porta da maçaneta vermelha em O Sexto Sentido (se bem que o problema aqui não é somente do trabalho da câmera, mas também dessa sequência final de flashbacks como um todo. Mais sobre isso num hipotético texto futuro).

O travelling rítmico

Se existe o travelling rítmico-formal, também existe o rítmico. Esse tipo de movimento é relativamente comum, apesar de se parecer com outro tipo de travelling, o decorativo (que descreverei mais abaixo), este aqui preza não pela gritaria (aquele negócio do tipo Olha! Tem um diretor aqui!), mas sim pela elegância e aplicação de urgência a história. Um exemplo que eu adoro utilizar quando falo desta técnica está no excelente Napoleão, do mestre francês Abel Gance.

Napoleão não foi o primeiro filme a usar o travelling. Antes de Griffith a técnica já era usada. Aliás, o próprio George Méliès já utilizava (mas como parte dos efeitos especiais, apenas). Entretanto, Gance foi, sem dúvida, o primeiro a massificar o movimento de câmera como um todo. De movimentos em 360 graus até câmera na mão (na verdade, até 3D!), Gance imprimiu velocidade e adrenalina num épico de mais de cinco horas de duração (e crescendo, se depender de Kevin Brownlow).

O exemplo em Napoleão é belíssimo: dois colegas de internato libertaram a águia de estimação de Napoleão e entram dormitório adentro, fugindo do dono da águia. A câmera primeiramente encara a porta do dormitório. Eles abrem a porta e vão correndo até suas beliches. Enquanto isso, Gance vai afastando a câmera, sempre mantendo no meio do corredor formado pelos beliches, sem fazer nenhum tipo de movimento adicional, apenas um travelling para trás.

napoleãoO que acho belíssimo nesse movimento é que (1) ele sempre mantém a simetria e (2) e tudo feito num corte só; Gance poderia ter decupado a sequência, optando assim pela velocidade ao invés das emoções.

Só que ao invés disso, ele escolheu a força da atuação, ministrando um belo equilíbrio entre o charme da sua direção e o talento dos atores (sim, mesmo num momento relativamente simples, os atores tinham de se mostrar expressivos, e fazem isso muito bem). Além disso, ao manter a câmera sempre no mesmo Gance dá aqui um dos primeiros exemplos de profundidade de foco.

O travelling formal

O travelling formal é muito interessante. Não quero soar aqui reacionário e muito menos dizer que “nos tempos antigos, tudo era melhor…” — até porque eu não vivi esses famosos tempos antigos —, mas nós vivemos numa época em que a maioria dos diretores dos grandes estúdios insiste em acreditar que montagem significa picotar uma sequência que poderia ter sido feita com um mínimo de planos em vários closes e planos-detalhes. Aliás, nunca o close foi tão utilizado como na atualidade. E o close — e o número elevado de cortes, também — impedem a fluidez do movimento de câmera. Um exemplo? Incontrolável, do finado Tony Scott, coloca qualquer um para vomitar.

O travelling formal vai à contramão. Neste meio, o diretor normalmente trabalha com planos mais longos e mais abertos. A câmera não se move a não ser que seja absolutamente necessário — provavelmente este é o estilo que mais se aproxima da teatralidade, especialmente em se tratando do respeito com a quarta parede.

O melhor exemplo que posso dar é o trabalho do italiano Roberto Rossellini em O Absolutismo – A Ascensão de Luís XIV. Sobre isso, escrevi:

[…] a mise en scène de Rossellini acontece aqui paralela ao eixo da câmera; os movimentos dos atores são duros e deliberadamente teatrais. Quando a câmera se move, nunca é fazendo travellings de aproximação ou de recuo, mas sim contornando o cenário, levando o público a ficar, de novo, na posição de plateia teatral […].

Outros exemplos podem ser encontrados no cinema de Stanley Kubrick (lembre-se de Kirk Douglas andando entre as trincheiras em Glória Feita de Sangue ou de Danny e seu velocípede em O Iluminado) ou no cinema recente de Paul Thomas Anderson, como falarei abaixo.

O travelling decorativo

Finalmente chegamos ao último dos travellings — e provavelmente é aquele mais utilizado. É que é tentador quando se é jovem e voraz mexer na câmera para provar que é um autor de verdade. Esse é o caso do Paul Thomas Anderson que citei ao início, antes de se transformar num verdadeiro formalista (não somente no sentido de travelling formal, mas na própria concepção de formalismo).

Pegue os planos-sequência de Boogie Nights ou de Magnólia. Excetuando-se o primeiro plano de Boogie, qual é, de fato, o significado de todos aqueles planos, de todos aqueles travellings rapidíssimos em direção a telefones, olhos, beijos e portas? Nenhum. Nenhum em absoluto. Eu poderia dizer que são travellings rítmicos, mas aí eu estaria mentindo, já que o próprio ritmo da ação dos personagens já é suficientemente veloz para que a rapidez seja impressa sem o auxílio da câmera. (E a diferença entre o inexperiente Anderson de trinta-e-poucos-anos nesses dois primeiros filmes se contrasta com a do supracitado Scorsese em Depois de Horas, que nos apresenta uma história muito mais veloz que Boogie e Magnólia, mas não faz tanto show off e firulas com a câmera. A parte boa, felizmente, é que eventualmente PTA largou esse estilo bobo e infantil e caminha cada vez mais para um cinema pensado e maduro, nos trazendo momentos de puro ouro cinéfilo, como já escrevi aqui).

Normalmente (e eu disse normalmente), travellings decorativos são encontrados em cinemas de diretores inseguros ou iniciantes. Voltando ao finado Tony Scott, observe sua filmografia. Infelizmente, muitos críticos novos estão dizendo que aquelas piruetas de Domino e Incontrolável são provas de autenticidade de um cinema. Não são. São provas do descontrole; da falta de confiança de um cineasta que tenta contornar a câmera de sete em sete segundos ao redor dos personagens pra tentar imprimir velocidade ao filme.

Mas nem todo travelling decorativo é sinônimo de imaturidade. Estão aí Max Ophüls e seu O Prazer, com aquela câmera inquieta.

Só que o que o contrasta dos cineastas já citados (e de outros, como David Fincher no péssimo Clube da Luta) é que Ophüls era um cineasta elegante e de quadros bem compostos. Há toda uma diferença entre um longo e movimentado plano bem composto (como aquele giro ao redor do bordel de O Prazer) do que um simples plano-sequência masturbatório (aquele na emissora de TV, em Magnólia).

Concluindo

Cinema, como eu disse, é imitação da vida. E a vida é feita de movimento — não importa se são decorativos ou formais.  Mas, de qualquer forma, antes um decorativo e enérgico do que uma câmera parada e chata.

Além disso, combinações entre cada um dessas formas de movimentação são possíveis — e fica a critério do expectador encaixar cada travelling no modelo que achar melhor. Na verdade, estas definições e divisões de travellings são simplesmente uma maneira de auxiliar o espectador na análise do filme — e por isso não devem ser levadas de forma alguma como regras.

Mas o importante é que você tenha aprendido que mover é viver. [Webinsider]

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Victor Bruno (@victorfbruno) é editor do blog coletivo Ornitorrinco Cinéfilo.

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Uma resposta

  1. Interessante e elucidador. Só faço um porém pela escolha das palavras e o contexto da frase final, “câmera parada e chata”. Muito da mise-en-scène de filmes maravilhosos é feito com a câmera “parada e chata”, e ela não necessariamente precisa ser um problema. Muito da cinematografia do cinema oriental, se acaba apoiando-se no movimento, como Kobayashi e Kurosawa, também é construído pela mise-en-scène bem pensada da câmera estática e da função de personagens e objetos no quatro, como fizeram Ozu e Mizoguchi. Ou, até mesmo, Hitchcock, que transforma a tela em um cenário vivo em muitas tomadas de Janela Indiscreta, com múltiplos eventos distraindo nossa atenção dentro do mesmo quadro. Há, também, outras funções que podem estar dispostas por trás do plano sequência. No Anderson, a ambientação (no caso do primeiro plano sequência) ou a surpresa e a curiosidade sobre o destino do personagem de William Macy depois que ele mata a esposa e o amante, no mesmo Boogie Nights.

    A necessidade de usar um plano sequência para isso ou decupar a cena são escolhas técnicas e artísticas, e é complicado demais apontar erro ou acerto nessa necessidade. Por exemplo, reconheço que um dos méritos do plano sequência inicial de “Snake Eyes”, do DePalma, é apresentar cenário, ambientação e personagens de forma fluida promovendo identificação com o personagem de Cage, mas contesto a necessidade de fazer isso de forma tão prolongada e exibicionista. Para alguns, no entanto, o exibicionismo de DePalma funciona melhor do que uma montagem tradicional.

    Cuidado também, Victor, com afirmações generalistas como quando diz “muitos críticos novos” e aponta os problemas de Scott em “Incontrolável”. Aparenta uma soberba de conhecimento que ignora as diferentes percepções que uma obra pode despertar e, portanto, ser defendida por outras pessoas, inclusive “críticos não tão novos”. Assim como a ideia de “críticos novos” é vaga. Você parece ser um crítico novo. Ou seria um novo crítico?

    Belo texto, no todo. E sugiro desenvolver novos textos no Ornitorrinco na categoria “grandes cenas”. Vi poucos defenderem a brilhante cena final com narração em off de “Assassinato de Jesse James…”

    Abraço

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