O tempo passa, mas a realidade do que se costuma chamar de “música popular brasileira” ou MPB, não muda: muito do melhor que se faz, com músicos de comprovado talento, continua tendo um espaço maior ou menos etéreo fora do país!
E foi por estes dias que foi passado para mim com atraso o aviso do lançamento do CD do baterista Duduka da Fonseca, gravado em Nova York, com o título “Samba Jazz – Jazz Samba”. E como eu não moro lá, tive que importar o meu…
O disco, notem bem, foi na realidade lançado em julho do ano passado, mas como raramente eu tomo conhecimento deste tipo de evento, só soube cerca de um mês atrás. Paciência, faz parte do cenário. Eu ouvi este músico pela primeira vez, quando a Telarc lançou em meados do início dos anos 90 (1993) o excelente disco “Paraíso”, com Gerry Mulligan, junto com a cantora Jane Duboc:
Embora o rótulo “Jazz Samba” ou vice versa se aplique muito mal, porque, como dizia o jornalista Sergio Porto, “os compassos de ambos não são os mesmos”, o fato é que a descrição do conteúdo simplifica o seu significado para potenciais ouvintes.
E não é nem um pouco diferente do disco do quinteto de Duduka, que faz questão de colocar o termo no próprio título:
A mim, por acaso, pouco importa se é um ou outro: no disco de Mulligan, Jane Duboc dá um show de sensibilidade e as suas interpretações de alguns títulos conhecidos, como, por exemplo, “Tema Para Jobim”, chegam a ser antológicas. Se é jazz ou samba, o rótulo está lá para se tentar vender o disco, só isso.
As vítimas do movimento da Bossa Nova
É triste lembrar que a imagem que ainda fica, depois de mais de cinquenta anos, dos fatos lamentáveis que cercaram a criação e o desenvolvimento do movimento bossa novista. Música e liberdade de criação são coisas indissociáveis, mas tem gente que não pensa assim. E quando a bossa nova começou a se anunciar como inovadora, a reação disparou na mesma hora, como se o lado criador de músicos e compositores pudesse ser contido por algum tipo de crítica retrógrada.
Mas as críticas se transformaram em campanha, e eu, infelizmente, li e ouvi palavras ásperas do crítico José Ramos Tinhorão e do compositor Ary Barroso. E não acredito que quaisquer dos proponentes do movimento tenham pedido, ou fizeram força para receber tamanha desqualificação por parte de seus opositores. Ary Barroso, ao contrário, foi homenageado por Tom, no álbum “Stone Flower”, produzido por Creed Taylor, que, por sinal, era fã radical da música do compositor. Nunca estive de corpo presente com qualquer um deles, mas duvido, e faço pouco, que tivesse havido desrespeito ou desconsideração dos então jovens músicos, com relação aos seus antecessores.
Até hoje acho que não havia necessidade de nada disso. Quem não nasceu no Rio de Janeiro e quer entender ou julgar a bossa nova, não é preciso fazer força: basta uma releitura das letras das primeiras músicas e da audição das melodias que as acompanham, para observar que a bossa nova era a construção musical do ambiente social e físico do Rio de Janeiro daquela época, ainda bucólico e extremamente prazeroso de se viver nele.
Do final da década de 50 e início de 60, a bossa nova se disseminou na cidade: indo do porão da Rua Moura Brito na Tijuca, passando pelo Túnel Novo, e chegando até a orla, o que mais se respirava por aqui era música e vontade de conhecer ou tocar alguma coisa diferente. João Donato, por exemplo, frequentou a Moura Brito, e, anos depois, se tornou um dos mais celebrados compositores e intérpretes do movimento. Muito desta história me foi relatada por e-mail, décadas atrás, pelo lendário crítico de música José Domingos Raffaelli, profundo conhecedor tanto de jazz quanto de bossa nova. É uma pena que estes e-mails tenham se perdido nos servidores da universidade, caso contrário eu teria tido imenso prazer de tê-los relatados aqui.
De qualquer forma, o que os primeiros compositores bossa novistas fizeram foi colocar em palavras e melodia a sensação de estar lá, como por exemplo: “dias de luz, festa de sol, e o barquinho a deslizar, no macio azul do mar”, e vai por aí.
A efervescência cultural carioca foi a que, em última análise, propiciou a integração entre os vários gêneros musicais pregressos em uma forma de tocar e cantar, que mais se adequava a este espírito. E esta forma, chamada genericamente de “bossa nova” (por se tratar de algo novo) nunca deixou de ser eclética, ao contrário, assumiu maneiras de compor e tocar bastante variadas. O que hoje se chama de “fusão” musical já era praticado naquela época, haja vista as inúmeras composições e arranjos com compassos que, de brasileiros, nada tinham, como por exemplo, a métrica 5 por 4 da valsa. Dave Brubeck também fez o mesmo com métricas exóticas em seus álbuns da série “Time Signatures”, a começar por “Time Out”, e ao contrário daqui, não apareceu ninguém querendo crucificá-lo.
Aos olhos de seus antagonistas, parecia que os músicos da bossa nova estavam cometendo um sacrilégio indesculpável. E neste âmbito de alegadas heresias, foi justamente o jazz quem levou uma das principais pedradas.
Nós, ouvintes, que não tínhamos nada com esta briga sórdida, ficamos aparvalhados. Pois não há nenhum movimento musical, em qualquer parte deste planeta, que não tenha sofrido qualquer tipo de influência ou que tenha mantido alguma semelhança de estrutura com outros estilos de música. E, mesmo que a bossa nova fosse um caso inédito e único, admitindo-se que esta influência do jazz tenha alterado alguma coisa no movimento, a gente se pergunta até hoje, diante da beleza daquelas músicas: “E daí?”
A quem ouve interessa saber se é bom, se tem mérito, se muda alguma coisa para melhor, se faz sentido nos nossos ouvidos e mecanismos sensoriais. E se, por acaso, nos emociona, não precisa de explicações ou defesas de tese a este respeito!
Os esquecidos e os expatriados
Parte deste cenário triste, além da contestação de um dos movimentos mais bonitos e inovadores que este país já teve, foi o do esquecimento de alguns dos seus principais artífices. Um dos casos, de certa forma constrangedor, foi o do pianista e compositor Newton Mendonça. O Tito Madi, também compositor talentoso, e casado com a minha falecida prima Lucia Maria, me afirmou uma vez que Mendonça foi a grande força criadora por trás das músicas nas quais se envolveu com Tom Jobim, este último lembrado até hoje, merecidamente, e o outro esquecido de forma imperdoável. Quem conhece “Samba de uma nota só”, “Meditação” ou então “Desafinado”, esta última que bem poderia ser considerada por muitos como divisor de águas entre o antigo e o moderno, se lembra de Tom, mas não de Newton.
Tom Jobim também não escapou do esquecimento. Seus últimos álbuns foram gravados em território norte-americano, onde tinha admiração e respeito de seus pares. Seus últimos anos de vida, vividos fora das luzes da mídia, e só foi lembrado mesmo depois de sua morte, na hipocrisia política oportunista do batismo do aeroporto.
Pior foram os expatriados. Quem não se adaptou à mudança de intenções do movimento após a ditadura de 64, parou a carreira ou foi para o exterior. Um ex-colega da universidade, cujo nome não me sinto confortável em declinar, foi músico do início da bossa nova, tocou junto com a turma de Niterói e embarcou em um projeto de vida abortado prematuramente. Este colega contou como era aquela época, e algumas anedotas como a mãe de Sergio Mendes gritando para o filho vir para a aula de piano, quando então o músico se escondia para jogar bola com os amigos. E os momentos em que músicos de jazz circularam por Niterói, como a cantora Sarah Vaughan, com quem conviveu e entrevistou para uma emissora de rádio local.
Este ex-colega e amigo, ao se ver pressionado por outros músicos, que queriam ver o movimento engajado na luta contra a ditadura, pulou fora sem hesitação e, como já era estudante de filosofia na Universidade do Brasil, largou a música e fez carreira universitária.
Política e música se imiscuíram por culpa da penetração do Partido Comunista, conhecido na época pelos estudantes como “Partidão”, e assim ficou até a sangrenta repressão policial-militar da década de 1970, cuja clandestinidade foi apoiada pelo regime e pelo famigerado AI-5.
Parte do momento tenebroso desta época está retratada no filme “Os Desafinados”, do diretor Walter Lima, Jr., onde o personagem Antonio faz alusão ao nunca esclarecido desaparecimento do pianista Tenório Jr, durante o igualmente duro regime militar na Argentina.
A intromissão da política ajudou a fritar o movimento bossa novista, acusado de influenciador das forças imperialistas, particularmente as norte-americanas, e daquelas que combatiam o comunismo. Aos poucos, toda aquela coisa lúdica e poética do início da bossa nova foi dando espaço às canções e peças de teatro de protesto, e desaparecendo por completo até próximo do final da década de 1960.
Muitos dos seus músicos pioneiros foram trabalhar em outros países. Sergio Mendes foi um dos casos mais notórios. Baden Powell, considerado por alguns como o braço evolutivo conhecido como o dos “afro-sambas”, morou em Paris e gravou vários discos para a gravadora alemã MPS (Basf), alguns dos quais ainda se encontram por aí. A passagem de Baden por Paris ficou registrada em “Um Homem e Uma Mulher”, do cineasta Claude Lelouch, feito em 1966:
Mudar de país é duro, mas pior é ter a carreira morta, por falta de oportunidade. Não é infrequente músicos de talento, vistos no exterior ou no próprio país, se tornarem compositores ou arranjadores comerciais para sobreviver. Um exemplo disto é o do arranjador Eumir Deodato, que fez álbuns sofisticados durante anos por aqui e acabou se mandando para os Estados Unidos fazer música de fusão, país, aliás, onde vive até hoje.
Os discos de Eumir Deodato, como líder do grupo “Os Catedráticos”, para a gravadora independente Equipe, há algum tempo atrás só estavam disponíveis na Espanha. Mais recentemente, foram remasterizados e relançados pelo selo Atração Fonográfica, mas acho pouco provável alguém hoje conseguir um exemplar.
Muito daquela época ainda está por aí
O leitor que por acaso acompanha esta coluna pode se lembrar de um texto sobre preservação de fonogramas, escrito por volta da comemoração dos cinquenta anos da bossa nova. Eu nunca relatei, mas o faço agora, que tempos atrás eu conheci um mestre da área, o técnico de gravação Toninho Barbosa. Ele tinha acesso ao acervo da Polygram e me afiançou, na época, que tudo da gravadora Philips estava tudo muito bem preservado.
O assunto recuperação de fonogramas continua complexo e complicado. Na coluna de 2008, citada acima, o leitor João Carlos Janiny, detentor dos direitos da gravadora Equipe, de Oswaldo Cadaxo, queixou-se da pirataria e das editoras, tendo tido prejuízo e desistido deste tipo de empreitada. Nós nunca tivemos contato, e é uma pena que ele não tenha voltado para esclarecer como aconteceram os relançamentos da Atração Fonográfica, dos títulos do Eumir.
Antes dos 50 anos da bossa nova, eu recebi a incumbência de colaborar na pesquisa de títulos importantes do período, para a Universal Music que inclui selos como Philips, Polydor ou A&M, todos da extinta Polygram. Na época me disseram que pessoas do ramo estariam fazendo este levantamento também, tendo sido citado o jornalista e crítico Tarik de Souza, pessoa com quem nunca tive contato, e certamente muito mais capacitado do que eu para este tipo de pesquisa.
O projeto da Universal faliu antes de decolar, embora eu tenha visto alguma coisa lançada depois, sem muita publicidade. E ninguém me disse nada, eu só fui saber porque, estranhando a demora, entrei em contato com a pessoa da empresa que havia me convidado, e ela me disse que o projeto não teve acolhida e que ela mesma havia saído de lá, para trabalhar em outro canto. Eu hoje acredito que, devido à inexpressividade da minha pessoa, o meu nome nem tenha aparecido em projeto algum da Universal.
Por volta ainda desta época, um amigo me chamou para ir assistir o show do Durval Ferreira, que rolava na Casa de Cultura Julieta de Serpa. Lá eu tive a honra de conhecer o músico Adalberto Castilho, o Bebeto do Tamba Trio. Com ele aprendi que o artista não tem, de praxe, nenhum controle ou direitos sobre os fonogramas. Dá até para se depreender que, com as sucessivas mudanças de mãos nos direitos dos catálogos, no final fica difícil saber dos paradeiros de um número significativo destas gravações.
O Rio de Janeiro é hoje uma cidade de contrastes. Quem mora por aqui provavelmente não sabe, mas tem à disposição o Centro de Referência da Música Carioca, localizado na Rua Conde de Bonfim 824, na Tijuca. O ingresso à sala de concertos é simbólico (custa 1 real), e o local muito bem instalado para se ouvir música. Lá se apresentam também músicos emergentes, ao lado dos profissionais. Tudo concorrido e muito bem frequentado. Vale a pena e eu recomendo! [Webinsider]
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.
2 respostas
Olá, Rogerio,
Rapaz, que viagem!
Eu convivi por anos a fio com o Solon do Valle, que, segundo soube por um amigo em comum, faleceu recentemente. E o Solon trabalhou uma época, já como engenheiro, se não me engano, na então novíssima Rádio Transamérica FM Quadra Estéreo.
Os estúdios ficavam na Rua São Francisco Xavier, lá perto da ponte da Mangueira. Na parte de baixo haviam instalado um estúdio de gravação acho que com 32 canais (2 Studer de 16 em síncrono), e foi este que eu fui visitar naquela época.
Eu me distanciei do Solon já há muitas décadas, e de qualquer maneira, não saberia te dizer se o prédio ou o estúdio continuam lá.
Sobre a gravação digital, na minha opinião depende muito da maneira como ela é feita. E só consegue ser superior de fato se a mídia correta cair nas nossas mãos. Mas, o que está havendo no mercado fonográfico atualmente é de lascar. Está cada vez mais difícil achar um SACD que não seja de música clássica, DVD-Audio está praticamente morto e os prometidos Blu-Ray de música quase inexistentes.
Olá Mestre Paulo
A anos que ninguém toca neste assunto tema desta sua matéria.
Eu teria muita coisa a relatar aqui, mas na minha posição irei me ater apenas aos comentários.
Sabe Paulo já trabalhei como técnico de Matrizagem nos antigos estúdios Transamérica
aqui em S.P. era um sonho de estúdio, atrelada a Rádio Transamérica que na época ainda pertencia aos Setubal (do Barco Real).
O Estúdio foi cavado no subsolo da Rádio e as paredes revestidas com “CHUMBO” para não receber nenhuma interferência de RF, bem como garantir a isolação acústica de suas câmaras de gravação.
Tinha o melhor equipamento de gravação analógico que se poderia ter para a época.
Quero destacar que o estúdio possuia o “melhor gravador já fabricado no mundo multicanais” de 1 polegada com 24 canais; o famoso Studer A-80.
Para se ter uma idéia o grupo RPM gravou o disco Louras Geladas lá. Foi uma época de ouro para mim, mas isso tudo acabou, porque agora só se fala em Pro Tools.
Que me desculpem os profissionais que trabalham neste sistema, mas jamais conseguirão fazer uma captação e gravação com esse sistema digital, que alcance a qualidade e nuances obtidas naquela época, com aqueles equipamentos.
Por isso que digo, que sua matéria veio a calhar, pois hoje em dia qualquer um monta um estúdio de fundo de quintal com computador no sistema digital.
Já para aqueles que ainda tem no cérebro a referência do verdadeiro som puro do som analógico, só resta ir gravar lá fora, pois aqui no Brasil os bons equipamentos analógicos viraram sucatas, ou estão guardados na sala ou quarto de algum audiófilo hi-end.
É isso aí Mestre Paulo, e “VIVA A MODERNIDADE”
Um abração