Relegado agora à categoria de codec “legacy”, o Dolby Digital ainda sobrevive, em mais de uma variação de formato, e incorporado em um formidável número de equipamentos e de mídias. O termo legacy, que significa literalmente “legado”, parece estar inexoravelmente ligado ao status de obsolescência tecnológica, quando na realidade deveria apenas indicar a ancestralidade do formato e a sua importância histórica no processo evolutivo do som digital multicanal no cinema profissional e no ambiente doméstico.
Para mim pelo menos, o Dolby Digital foi a porta de entrada para a compreensão mais clara desta evolução, e uma escola, digamos assim, cursada para contornar a ignorância sobre os mais modernos métodos de mixagem usados nos cinemas até hoje.
Quando o Dolby Digital foi completado a partir da elaboração da versão 3 do bitstream chamado Audio Coding, ele era conhecido apenas como AC-3, sigla que era impressa nas contracapas dos primeiros videodiscos contendo este formato. Foi com estes últimos que o Dolby Digital cresceu no home theater moderno. Os primeiros decodificadores para laserdisc AC-3 eram dotados de demodulador RF em um estágio de pré-decodificação. É que para poder ocupar uma das trilhas analógicas do videodisco, o AC-3 era modulado em rádio frequência, e esta trilha lida somente em aparelho reprodutor capacitado. A transmissão do sinal se dá por conexão digital padrão S/PDIF (coaxial ou ótica).
Nos cinemas, o Dolby Digital é gravado oticamente entre as perfurações do filme 35 mm (ver figura abaixo), ao lado da trilha ótica Dolby Stereo SR convencional. A gravação digital é lida por um scanner, montado no topo do projetor.
Em sistemas mais modernos, este scanner foi substituído por uma cabeça leitora dupla, no lugar da unidade ótica convencional. Assim, é possível ler as trilhas Dolby analógica e digital simultaneamente, e fazer a opção sobre qual delas será reproduzida, ou, no caso dos sistemas automáticos, virar para a trilha analógica apenas quando a leitura da trilha digital der algum problema ou for inexistente na película.
A montagem deste tipo de bloco ótico segue um padrão definido pela Dolby. A leitura é feita através de um led vermelho construído sob especificações, e de maneira a se obter uma leitura uniforme das duas bandas óticas. O led substitui a tradicional lâmpada excitadora e simplifica a calibração do ajuste de emissão de luz sobre o filme. Esta emissão é feita no lado da emulsão e não do lado da base, como nos blocos óticos convencionais, até então usados. Por isto, o processo é chamado de “reverse-scan” (ou “varredura reversa”).
A opção pela varredura reversa no design destas cabeças óticas se baseia na observação da melhoria da qualidade de leitura e, consequentemente, da melhoria da reprodução da banda ótica analógica e da diminuição de interrupção do bitstream da banda ótica digital.
A penetração do Dolby Digital nos cinemas teve que enfrentar a forte concorrência de sistemas similares, como o DTS e o SDDS, particularmente do primeiro. Hoje em dia, entretanto, a maioria das salas opera com Dolby Digital somente, apesar de muitas delas aceitarem qualquer um dos formatos.
A evolução do codec
Muito do que eu tive a oportunidade e a sorte de aprender sobre o Dolby Digital se deveu à presença do estafe do Dolby Labs on line, à época de seu lançamento em laserdisc, com o objetivo de dar suporte para usuários finais. Uma das personalidades com quem tive a chance de trocar e-mails foi Roger Dressler, principal propulsor do Dolby ProLogic e do Dolby Digital. Até recentemente, ele fez parte da principal equipe de designers da empresa, saindo em 2010.
Antes do Dolby Digital aparecer nos cinemas, os laboratórios Dolby trabalharam na trilha do Dolby Stereo, fazendo nela uma série de melhoramentos. Entre eles, o da introdução do sistema de redução de ruídos Dolby Spectral Recording, no lugar do Dolby A.
Um novo chip processador, codificador-decodificador, foi desenhado com inovações na eletrônica já existente. Circuitos para a melhoria de reprodução de baixa frequência foram adicionados ao decodificador do cinema, com o nome de “Optical Bass Extension” ou OBE. Porém, para completo benefício desta inovação, não bastaria ter um novo decodificador, era preciso ter instalado um subwoofer. Este foi o precursor da reprodução do canal de efeitos de graves (LFE) do Dolby Digital. O Dolby SR substituiu o já arcaico Dolby Stereo, a partir de 1986, porém ainda em ambiente analógico.
O Dolby Digital é, por natureza, eclético, pois prevê recursos para a reprodução da trilha sonora, que incluem reduzir o número de canais na codificação para 4, 3, 2 canais mono ou, quando for o caso, reduzir o programa 5.1 para quantos canais forem necessários (por exemplo, de 5.1 para 2.0), por meio de informações contidas no bitstream da trilha. Este último processo é denominado “downmixing” (“mixagem de redução”), e é muito útil no auxílio à retro compatibilidade com sistemas de reprodução mais antigos ou desprovidos de som multicanal.
No cinema, o som mixado em formato Dolby Digital atinge um bitrate de 320 kbps, dando assim uma excelente compressão para a qualidade de áudio pretendida para o filme 35 mm.
No DVD, o bitrate padrão passa para 380 kbps, mas devido à necessidade de competir com o DTS, evoluiu para uma codificação de 480 kbps. A diferença entre ambas é mínima, mas exigida pela mercado.
Ainda no início do DVD, a Dolby experimentou o uso da codificação com 640 kbps, já que neste bitrate o espaço ocupado pela trilha de áudio ainda é relativamente pequeno. Um teste foi incluído na primeira edição do disco da Delos “DVD Spectacular”, sem qualquer tipo de publicidade:
A trilha com Dolby Digital a 640 kbps foi, entretanto, “descoberta” por usuários e a notícia espalhada nos fóruns da época rapidamente. A gravação é idêntica à da peça principal de demonstração do disco, a interpretação da peça de Tchaikowsky “Abertura de 1812”, Orquestra e Coro da Sinfônica de Dallas, com regência de Andrew Litton. Para acessá-la é necessário parar o disco e acionar o título 29, capítulo 1 manualmente. Os primeiros reprodutores de DVD eram incapazes de decodificar ou transmitir a trilha, já que 640 kbps está fora das especificações do DVD. Por causa disso, a Delos colocou um anúncio na tela, fixo durante a reprodução da peça:
O ouvinte pode tentar, se assim desejar, comparar as duas gravações. Auditivamente, a diferença é praticamente imperceptível. Para o teste, a avaliação maior é o da análise espectral conseguida em laboratório. A trilha com 640 kbps é teoricamente mais robusta, e foi por isto mantida nos discos Blu-Ray como padrão. Na segunda prensagem do disco da Delos, entretanto, ela foi retirada.
O Dolby Digital evoluiu para o Dolby Digital Plus (“Enhanced AC-3” ou EAC-3), com um bitrate bem maior, de 6.144 Mbps. E também para o Dolby TrueHD, de alta resolução e sem perda, com um bitrate que pode alcançar 18 Mbps, para um programa de áudio multicanal a 96 kHz e 24 bits.
Em ambos os casos, a base, chamada de “core” (do inglês, “núcleo”), é o próprio Dolby Digital a 640 kbps, o que possibilita a transmissão do mesmo via S/PDIF, inclusive e principalmente nos sistemas onde não existe previsão de decodificação para o EAC-3 ou para o Dolby TrueHD.
A guerra dos formatos
Dolby Digital e DTS se envolveram em uma briga de consumidores aficionados, sem terem nada a haver com ela. Mas um dia a informação veio à tona que a DTS não vendia codificadores, obrigando os estúdios a enviar a trilha sonora a eles. Aí ficou patente que muito das alegadas “melhorias” eram, na verdade, truques de equalização, provavelmente feitos sem qualquer intenção reptícia, mas que impressionaram muito certos consumidores.
Na verdade, uma grande parte dos problemas dos codecs “lossy” deriva do excesso de compressão, com perda de detalhamento e compressão de algumas frequências. O DTS ganha do Dolby Digital no que tange ao CD e ao laserdisc, onde a compressão é a menor possível: cerca de 1400 kbps. O DTS-CD em particular, tem ótima qualidade de som, apesar de se adaptar à amostragem padrão de 44.1 kHz @ 16 bits e queda no bitrate para 1234 kbps.
No DVD, entretanto, onde o codec é obrigado a aumentar a compressão de dados, chegando a 768 kbps, a qualidade final do áudio DTS perde até mesmo do Dolby a 384 kbps.
Nos cinemas, houve uma inversão de expectativa: o DTS reinou supremo, até alguns anos atrás, mas a manutenção de drives externos de CD-ROM e problemas nos consoles fizeram com que muitas salas abandonassem o DTS em favor do Dolby Digital, mais prático e já gravado na película.
No campo do Blu-Ray, o Dolby TrueHD perdeu terreno para o DTS HD MA, por causa do software codificador ser muito lento, aumentando muito o chamado “workflow”, que é o tamanho do tempo do fluxo operacional, do início ao término de todos os processos. O problema foi contornado em 2010, mas o DTS HD MA continua predominante, e derrubou até mesmo o formato DTS HD HR, que ainda aparecia em alguns poucos discos.
Ouvir para crer
O mundo do áudio viu serem derrubados formatos interessantes, como o DVD-Audio, o DAD (DVD-Video com PCM estéreo a 96/24), e ultimamente o SACD é achado constantemente moribundo, apesar de suas notórias virtudes e apesar de ser possível transmitir DSD puro, do leitor direto ao decodificador externo da preferência do usuário.
Dolby ou DTS, o fato é que o processo de gravação em estúdio consegue padronizar áudio a 96 kHz com 24 bits de resolução, mas o que mais se encontra na mídia final, com algumas raras exceções, não passa de 48 kHz, 20 ou 24 bits.
Ainda assim, a qualidade obtida fica além do esperado, e prova, de certa maneira, a competência do LPCM em clareza e espacialidade, componentes essenciais à moderna reprodução das trilhas sonoras.
O Blu-Ray nos permite a transcrição direta do LPCM para a mídia, mas os estúdios dão preferência a codecs comprimidos. Dependendo de quem ouve, e do sistema usado para a reprodução, é difícil distinguir entre o ótimo e o mais ou menos, e é com isto, em última análise, com que conta a indústria para continuar se esquivando de se comprometer com o consumidor mais exigente.
Nossa sorte é que, mesmo que o Dolby Digital continue a estar presente nas trilhas em Blu-Ray, o bitrate de 640 kbps dá e sobra para se conseguir o melhor em Dolby Digital possível. [Webinsider]
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.
8 respostas
Celso,
A melhor maneira de se ver qual é o codec que está tocando é através das informações do display do leito de mesa ou do A/V receiver. Um dos dois ou ambos devem mostrar inclusive o número de canais.
Sobre a diferença de qualidade, não se pode afirmar nada, sem saber a fonte de onde foi tirada a transcrição e/ou se o arquivo de download foi previamente manipulado por alguém.
Paulo,
Então devo concluir que a trilha executada pelo meu aparelho é a Dolby Digital?
Estranho que o DVD original, constando Dolby é mais “fraco” do que aquele outro?
Grato
Oi, Daniel,
O Datasat é um formato usado no cinema digital das salas de exibição modernas. Mais informes em: http://www.datasatdigital.com/
Desconheço a existência de decodificadores domésticos para ele, e na verdade nem é necessário, porque os atuais codecs dão conta do recado muito bem.
Olá, Paulo,
Como sempre, um texto esclarecedor.
Tenho aqui uma cópia do filme “Cavalo de Guerra”, do Spielberg, baixada antes até do lançamento da fita nos cinemas.
O áudio está muito bom, melhor do que do DVD original que também tenho em mãos. Deixando rodar a primeira cópia até os créditos finais, além do Dolby Digital, SDDS e DTS, aparece um outro sistema dito Data Sat Sound. Desconheço se meu equipamento, decoder Sony S-master, 600w faz a leitura do Dat Sat; só sei que o som é ótimo, aliás, o melhor que já ouvi em vários anos no aparelho, principalmente nos canais traseiros. O que você acha?
Grato pela acolhida.
Tresse,
Muito bem observado. Na minha opinião, a mixagem é uma forma de arte também, e seus designers precisam praticar e inovar, aprendendo sempre. A DTV brasileira ainda tem, neste particular, um longo caminho a percorrer, assim como o cinema feito aqui. Este caminho é, entretanto, importante, e deve ser trilhado o mais rápido possível!
Embora o Áudio seja “maior” que o vídeo (entendo um programa sem vídeo, mas não sem Áudio) ele sofre da instabilidade emocional dos seus Criadores. Não se chega a um acordo, mas reconheço o esforço da Dolby para criar uma referência. Na minha opinião precisa envolver Arquitetos nos Projetos de Casas e Apartamentos para que se possa curtir o som. O Surround da TV Digital inicia um processo nessa direção. Escuto alguns comentários a respeito. Gostei da frase do Felipe “basta duas excelentes caixas e … “
Oi, Felipe,
As suas observações estão corretas, e eu mesmo usei 4 caixas com circuito Hafler durante algum tempo. O Hafler foi referência de surround passivo por muitos anos. Senti depois a necessidade de testar uma caixa central e a experiência com isto foi me convencendo aos poucos de que o que eu queria mesmo era aumentar o número de canais. Mas, como você diz, é bem mais complicado e nem todo mundo quer, se interessa ou tem condição de aumentar o número de caixas em um sala, particularmente as de pequenas dimensões, que é um transtorno.
Também concordo contigo com o exagero no número de codecs, mas é preciso ver isto como concorrência industrial.
O irônico é a gente ir ao cinema, em salas modernas, e notar que o som continua sendo o Dolby Stereo SR. Neste fim de semana, por acaso, eu fui assistir um filme em uma das salas UCI, e logo na primeira emenda eu ouvi aquele estalido típico do corte da película, característico da reprodução ótica analógica. E o pior: a maioria dos espectadores nem nota a diferença!
Paulo Elias,
Me perdoe se estiver falando bobagem. Por anos, consumi e troquei repetidamente o sistemas de som ate chegar em um bem equilibrado conjunto
de receiver e caixas 5.1. Depois de muitas audições, experimentei os mais diferentes formatos, AC3 ( DDigital ) DTS e os mais recentes “ES”, TrueHD, etc. Pode ser que eu esteja enganado, mas, embora reconheça que os efeitos cinco canais para ver filmes realmente funcionem, não acho que fossem necessários tantos formatos a coexistir. Para assistir um filme, o DTS e o AC3 são mais que suficientes, ou somente o estéreo 2.0 comutado para multicanal que distribui o sinal estéreo em todas as caixas encorpando a imagem estéreo mesmo perdendo os efeitos pontuais do DD.
A coisa está muito complicada para quem quer apenas entretenimento, sem ter que se preocupar com TRUEHDTDXP, Extended Mega Blaster Plus, etc. acho que chegamos, não só em matéria de som, mas de tudo, em um excesso que precisa recrudescer. A rigor, basta duas excelentes caixas acústicas bem construídas e um amplificador capaz de ler 96/24. O acrescimo de mais caixas é bem-vindo, mas não fundamental. Esses padrões ( 6.1, 7.1, 10.x ) servem apenas para salas comerciais, mais ou menos como o tal 3D que não acrescenta nada em experiência fora da sala de cinema. Comprar e calibrar adequadamente tantas caixas e equipamentos não é para qualquer um e acredito que 90% dos usuários não sabem utilizar o equipamento que adquiriram. As diferenças entre formatos, à exceção do estéreo 96k são pouco perceptíveis. Mais uma vez obrigado pelo artigo.