Fãs de cinema costumam identificar o início da presença do som nos filmes falados da Warner Bros, com o lançamento de O Cantor de Jazz, em 1927. Entretanto, as tentativas de colocar som em filmes mudos começaram muitos anos antes disso.
Thomas Edison sincronizou som gravado em cilindro nas suas máquinas Kinetoscópio (“peep show”), já em 1896. Mas foi o engenheiro francês Léon Gaumont quem primeiro desenvolveu a mecânica capaz de sincronizar filmes projetados com o disco fonográfico inventado por Berliner. E este invento foi a base posteriormente do Vitaphone, desenvolvido pela Western Electric, para uso da Warner Brothers.
A história do som no cinema nos mostra a falência dos processos mecânicos de som no disco, com a substituição do mesmo pelo som no filme, na forma de uma faixa separada de gravação e leitura ótica, chamada depois de banda ótica (“optical strip”).
Mas, nada disso teria sido possível, sem o desenvolvimento de válvulas foto receptoras, amplificadores e caixas acústicas, adequados para aplicações nos auditórios das salas de cinema. Enquanto o som não existia, e até mesmo depois do seu aparecimento nos cinemas, não houve muita preocupação, por parte de engenheiros e arquitetos, com a sua reprodução correta. Salas de cinema mais antigas tinham o vício de uma acústica inadequada para a instalação de alto-falantes, tornando a reprodução ininteligível, principalmente dos diálogos, que foi a base histórica do “cinema falado”.
Evolução:
Uma das áreas que carece de especial atenção é a da introdução de alto-falantes e caixas acústicas adequadas para as enormes dimensões das salas de projeção. Um dos desafios é tentar conciliar o tamanho das salas com o espalhamento correto e inteligível da trilha sonora.
A outra área se refere ao aperfeiçoamento da banda ótica. Nos Estados Unidos, dois formatos polarizaram a atenção dos estúdios: o Photophone (proposto pela RCA) e o Mirrophonic, este último proposto pela Western Electric, depois do virtual abandono do Vitaphone.
A banda ótica nada mais é do que uma faixa do filme, próxima ao fotograma e junto às perfurações, que contém zonas claras e escuras, deixando ou não passar a luz que nela incide. A luz é emitida por uma lâmpada especialmente construída para a cabeça de leitura do projetor, e é chamada de lâmpada excitadora. Antes de chegar ao filme, a luz é focalizada por uma lente, caso contrário o som perde alta frequência e qualidade. Depois de passar pelo filme a luz incide em um transdutor, chamado de célula fotoelétrica, que transforma energia luminosa em impulsos elétricos, os quais são amplificados, produzindo som.
No Photophone a gravação da banda ótica se faz pela variação da área clara. O método é chamado de exposição por “área variável”. Esta variação tanto pode ir de uma das laterais para o centro da banda (área variável unilateral) quanto de ambas as laterais (área variável bilateral). No Mirrophonic, o método de registro se faz pela variação da densidade da área clara, no formato de uma fenda (“slit”), e é chamado de “densidade variável”. Ambos os processos podem ser vistos na figura abaixo:
Ambos os formatos são lidos pelo mesmo tipo de conjunto lâmpada excitadora-célula fotoelétrica do bloco ótico, conforme o seguinte esquema:
O formato proposto pela Western Electric é reputado como superior ao Photophone, embora eu pessoalmente nunca tenho visto nenhuma prova disso. A relação sinal/ruído da trilha sonora gravada em banda ótica é muito baixa. Como a faixa de resposta de frequência não passa de 8 kHz, a fidelidade é igualmente prejudicada.
O ruído dos primeiros filmes é também fruto da quantidade de prata na película, problema este que só foi corrigido muitos anos depois. Para que o leitor tenha uma ideia do problema, basta ouvir um clipe do ruído, capturado no início de um filme em 16 mm. O ruído que se ouve pode ser visto na varredura abaixo:
No filme Fantasia, de 1940, os vários canais foram todos gravados em banda ótica, e reproduzidos em síncrono com o projetor (Fantasound). O formato usado foi o Photophone e a representação artística estilizada pode ser vista em uma pequena sequência próxima do intervalo:
O Mirrophonic é resultado de trabalhos de pesquisa feitos pela Western Electric. O conjunto completo inclui amplificadores e caixas acústicas. A primeira instalação Mirrophonic que eu tenho conhecimento foi feita nos cinemas da Metro no Rio de Janeiro, a partir do Metro-Passeio, na década de 1930. O assunto já foi previamente abordado aqui nesta coluna.
Entretanto, o sonofletor original Mirrophonic não foi aproveitado pela M-G-M. Tudo porque a montagem do baffle impedia a correta resposta de frequência abaixo de 500 Hz, entre outros problemas.
Modificações feitas em um projeto custeado por Douglas Shearer (M-G-M) resultaram na inclusão de um divisor passivo e de um driver de alta frequência, com uma resposta de frequência do sonofletor, entre 40 a 10 kHz, com corte a 500 Hz (divisor de dupla via). E este, chamado de “Shearer Horn”, foi o sonofletor usado na montagem dos cinemas da cadeia Metro.
John Hilliard e a Altec Lansing
A construção do Shearer Horn se deve principalmente à associação do projetista John Hilliard com a M-G-M. Uma das partes do baffle Mirrophonic corrigidas foi a da instalação de drives para baixas frequências (woofers) dentro do invólucro da caixa e não com a parte posterior para o ar livre, como se vê na imagem acima. Com isto, aumenta-se a eficiência de reprodução de graves, ao mesmo tempo em que se diminui a distorção introduzida pelos drivers.
John Hilliard era forte em eletrônica, mas dependia de terceiros para a construção dos alto-falantes (drivers) adequados para este tipo de projeto. Depois de um ano sem esperança de consegui-los na Western Electric, ele recorreu a James B. Lansing, na época coproprietário da Lansing Manufacturing Co. Hilliard desenvolve o projeto com a Lansing e outros colaboradores. Hilliard cuida principalmente dos componentes de amplificação.
O design do Shearer Horn mantém a corneta (“horn”) com múltiplas células, usadas no sonofletor Mirrophonic original, porém alterando a direcionalidade do som propagado. Na caixa de graves a corneta original foi bastante modificada. As modificações principais foram feita após a adesão da Western Electric e da RCA ao projeto, com a colaboração de ambas na construção de cornetas dobradas em design original.
O Shearer Horn usou um sistema de duas vias, e para tal um conjunto de dois tweeters Lansing modelo 285 e quatro woofers modelo 15XS. O sonofletor começou a ser testado em 1935, pouco tempo antes da abertura do Metro-Passeio, que começou as suas atividades em 1936. O Mirrophonic modificado com as caixas Shearer Horn foram instalados nos 3 Metros cariocas e no Metro de São Paulo, até próximo da era do Cinemascope, quando então passaram a usar sonofletores Voice of the Theater A-1.
A Lansing Manufacturing foi a única a usar o nome comercial Shearer Horn. RCA e Western Electric usaram outros nomes, como o Photophone, no caso da primeira.
A Lansing, com a morte de um dos sócios e outros fatores, entrou em dificuldades financeiras, sendo então adquirida em 1941 pela Altec Service Corporation, por sugestão de Hilliard, e que passou a se chamar Altec Lansing, a qual sobrevive até hoje com o nome Altec, com outros proprietários.
Lansing, por outro lado, desligou-se da Altec em 1946, fundou a Lansing Sound Incorporated, cujo nome foi posteriormente trocado para James B. Lansing Sound, Incorporated, conhecida depois como JBL.
O que permitiu que todas essas empresas coexistissem em competição foi a emergência na construção de salas de cinema. A evolução do som no cinema puxou para frente a construção de sonofletores cada vez mais sofisticados. Com a presença do som magnético, houve necessidade de estender a resposta de frequência para a faixa de alta fidelidade. A Altec respondeu a isso com a construção do sonofletor Voice of the Theater, primeiro o modelo A1, e posteriormente aumentou esta linha para diversos tamanhos e aplicações.
O projeto que redundou no lançamento do sonofletor Voice of the Theater surgiu em 1945, um ano depois de John Hilliard retornar ao trabalho na Altec Lansing, e ainda com a colaboração de James B. Lansing. Depois que Lansing saiu da Altec, Hilliard ainda iria permanecer na Altec até aproximadamente 1960.
A resposta de frequência estendida do Voice of the Theater foi completada com o redesenho das cornetas usadas nestes sonofletores, resultando na correção de resposta na faixa de média frequência. E por causa disso bastante usadas em instalações pós-Cinemascope.
O pioneirismo e o progresso do som no cinema abrange, portanto, evoluções que vão desde novos designs de caixas até amplificadores e demais componentes da cadeia de reprodução: do Mirrophonic, que alcançou modestos 8 kHz, até os modernos sistemas, capazes de alcançar um mínimo de 15 kHz, com mais linearidade na reprodução de graves e médios, essenciais para uma melhor assimilação auditiva de diálogos e efeitos especiais.
O legado
Muitos desses projetos alcançaram a estima de audiófilos no mundo inteiro, e sobrevivem até hoje na forma de projetos pessoais. O cinema, como se pode notar, foi o principal motivo pelo qual a reprodução do som alcançou níveis nunca antes imaginado, incluindo neste bolo o som multicanal, que só teve expressão doméstica muito mais recentemente.
Como na Fórmula 1, onde a pesquisa de novos motores, suspensão e freios acaba tendo uma aplicação nos carros de passeio, também na indústria e na engenharia do áudio muitos projetos e conceitos terminaram por alcançar o consumidor final dentro de casa.
No cinema, a evolução do som trouxe o impacto para a melhor apreciação dos filmes em home theaters. Anos atrás, eu escrevi uma pequena coluna sobre isto. Para mim o som foi, junto com a possibilidade de colecionar filmes, um dos principais motivos que eu tive para instalar o meu primeiro cinema moderno dentro de casa.
E se hoje nós chegamos a este estágio de qualidade, certamente devemos a todos os pioneiros do som no cinema. Sem eles, teria faltado a visão e o aperfeiçoamento acústico que fizeram das apresentações nas boas salas os momentos mais memoráveis que nós pudemos vivenciar. Foram os anos de pesquisa e do enfrentamento de dificuldades técnicas que possibilitaram os grandes espetáculos das décadas de 50 até 80, bem antes de o som digital alcançar os cinemas.
E é uma pena que grande parte desta conquista não esteja mais preservada, bem como as grandes salas que terminaram por fechar suas portas.
Pessoalmente, acho quase impossível descrever a qualidade de som que ouvi nos cinemas Metro, em uma época em que a minha diversão maior eram os Festivais Tom & Jerry. Até hoje, a lembrança destas memoráveis sessões volta à memória, toda vez que eu toco em casa um dos lendários desenhos, com a fanfarra tão bem escrita por Scott Bradley. Se um dia inventarem o túnel do tempo e eu ainda estiver por aqui, este é o lugar para onde eu gostaria de voltar! [Webinsider]
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.
4 respostas
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tioki@uol.com.br
eu tenho um aplificador da mirrophonic que era de um cinema, ele tem muita qualidade, e o engraçado é que tanto a parte de cima quanto a de baixo são abertas deixando a amostra toda a engenharia
Olá, Heron,
Obrigado pela leitura.
Eu conheço este filme, e tenho absoluta certeza de que você o viu no Metro Boavista, se for o caso de ter sido em um cinema Metro. O Metro Passeio fechou bem antes desta época, quando então todos os equipamentos Cinemascope, incluindo as Altecs, foram substituídas.
A propósito, eu tenho uma coluna sobre estes cinemas Metro, cuja leitura talvez possa lhe interessar:
http://br74.teste.website/~webins22/2010/06/04/ascensao-e-gloria-dos-cinemas-metro/
muito didático sua pesquisa,estive no Rio de Janeiro há muito tempo e tive o privilégio de assisti “alem da eternidade” com Richard Dreyfuss no Metro passeio e me lembro das caixas de som e o mais importante a qualidade do som estereoscope até hoje incoparavel!