Com Luciene Santos.
Custando 4 mil reais, o PlayStation 4 brasileiro é o mais caro do mundo. Isso explica a baixa procura pelo console da Sony desde o seu lançamento no Brasil. Contudo, no mercado paralelo o PS4 tem as vendas aquecidas por concorrer com os preços mais em conta (mas ainda muito caro para os padrões brasileiros) do Xbox One (Microsoft – R$ 2.299) e Wii U (Nintendo – R$ 1.899). Apesar dos preços dos títulos de jogos não concorrerem com os altos valores dos consoles, os jogadores devem desembolsar quantias razoáveis para jogar o seu game preferido.
No Brasil, um dos jogos mais procurados é Grand Theft Auto V e a unidade não sai por menos de R$ 200. Aliás, o jogo quebrou seis recordes de venda desde o seu lançamento, segundo o Guinness Book. O que chama mais a atenção não é propriamente o recorde de produto de entretenimento com maior arrecadação em 24 horas e por ter alcançado mais rápido a cifra de US$ 1 bilhão em vendas, mas a venda desproporcional de um produto cujo conteúdo é baseado em pura violência urbana.
Tal fenômeno revela como os brasileiros (e isso acontece também ao redor do mundo) estão dispostos a desembolsar altas somas para jogar. Entretanto, na maioria das vezes, “esses jogos não oferecem em troca quase nenhum benefício além da diversão em si”.
A provocação é do design de games Keith Burgun, autor do livro Game Design Theory: Uma nova filosofia para entender games. Ele não está sozinho nessa. Quando propusemos a teoria dos NewsGames, repensamos os videogames como plataforma ludo-informativa – um lugar no qual questões sociais importantes são debatidas em formato de narrativas de jogos.
Uma contradição justificável
Apesar da dura crítica aos videogames, quero reafirmar que não tenho nada contra os jogos por serem digitais. Na verdade, considero que os computadores têm um potencial incrível para o desenvolvimento de jogos. Quando adotamos uma postura ‘anti-videogame’, na verdade estamos reafirmando que somos contra ao modelo narrativo adotado pelos jogos comerciais atualmente.
Na visão de Burgun, os jogos deveriam emular sistemas que possuam recompensas intrínsecas (dentro do tabuleiro de jogo). Segundo Burgun, os jogos digitais deveriam funcionar como disciplinas semelhantes à matemática, geografia, história, ou que emulassem sistemas que nos ensinasse a tocar um instrumento musical, sem parecer aquelas cansativas aulas tradicionais.
Mas, ao contrário disso, as pessoas realmente desejam sistemas que sejam a sua própria recompensa? Invariavelmente, os videogames quase sempre nos oferecem recompensas extrínsecas (apenas cumprir metas do jogo). Um exemplo dessa maquinaria maquiavélica é o jogo Candy Crush.
A jogabilidade do puzzle rodado no Facebook nos dá a sensação de que nada de útil está sendo feito, pois não vê o resultado prático de suas ações naquelas repetitivas fases intermináveis. Camuflado como jogo de passa-tempo, o quebra-cabeça de doces acaba sendo viciante por prometer recompensas que jamais virão. De qualquer modo, tudo isso nos serve de inspiração para questionarmos o mito das recompensas dos jogos.
A controvertida narrativa do GTA
Por que ‘todos’ querem jogar o GTA V? O que há de tão interessante na sua narrativa que faz com que as pessoas fiquem fascinadas pelo jogo? São jogos que trabalham com sistemas-obrigação. Segundo o designer de games, Keith Burgun, “eles são o que as pessoas esperam, eles são o que as pessoas estão ‘preparadas’ para gostar”. Da imagem 3D à trilha sonora envolvente. Do apelo ao realismo ao acabamento impecável.
E é esse pacote obrigatório que se tornaram uma norma na milionária indústria dos videogames. Esses sistemas cresceram com o ‘nivelamento por cima’ e através da cultura dos ‘colecionadores’. Tudo isso contribuiu para que estes sistemas passassem a soar como freaking awesome (malditos incríveis). Produção e tecnologia de ponta de alto nível eram (e ainda são) verdadeiramente grandes fatores destes sistemas.
Como toda boa mentira, há um núcleo de verdade lá dentro desses sistemas de jogos. No Final Fantasy VII, a música é uma enorme pérola auditiva, a verdadeira semente de ouro do jogo. No caso do Grand Theft Auto, o apelo ao realismo e imagens 3D de altíssima qualidade parece ter funcionado como um elemento de marketing inquestionável.
A polêmica da missão By the Book
O GTA é jogado na terceira pessoa e o jogador usa combate de corpo a corpo, armas e explosivos para eliminar seus inimigos. Tal como outros jogos de jogabilidade em mundo aberto, as missões podem ser completadas segundo a vontade do jogador. Desta forma, eles têm liberdade para criar pistas para as corridas ou zonas de armas para nos confrontos deathmatch (conhecido em Português como ‘mata-mata’).
No modo deathmatch, o jogador pode matar quantos inimigos quiser até que certa condição ou limite seja alcançado, geralmente sendo um limite de mortes ou tempo. Quando uma dessas condições é alcançada, a partida termina e o vencedor é aquele que acumular o maior número de mortes causadas por ele. Na sua narrativa, a matança de gente é recompensada. Diferente de outros sistemas de design de jogos (recompensas podem chegar a 50%), a probabilidade de recompensa no GTA pode chegar a 100%.
Basta que o jogador confie em suas ‘habilidades e competências’. O problema aqui é ético, pois o jogo estimula e recompensa o lado animalesco do ser humano. A questão é quando o jogo sai do tabuleiro e vai para a realidade das ruas. Mas o que gerou ainda muita controvérsia entre críticos e ativistas dos direitos humanos foi o uso explicito de tortura dentro do tabuleiro de jogo.
Na missão conhecida como By the Book, um dos personagens interroga um homem para conseguir informação acerca de um fugitivo, que representaria uma ameaça para o FBI. Na trama, o jogador pode escolher equipamentos de tortura a partir de opções disponíveis em uma mesa. Em Dezembro de 2012, à luz do massacre de Sandy Hook, o senador norte-americano Joe Manchin, sugeriu a proibição da venda de jogos violentos, em particular a série GTA.
Mas, de prático, nada foi feito até agora. Os designers de games tendem a pensar apenas sobre os problemas de design do jogo. Segundo Burgun, considerando elementos temáticos e narrativos, os padrões de distribuição de recompensas extrínsecas (cumprimento de metas do jogo) constituem um combinado de 95% do esforço de um designer de videogame:
- O que é legal sobre o nosso mundo/personagens?
- Como é que vamos manipular o jogador para jogar mais?
Jogos como enriquecimento humano
Claro, pode-se dizer que toda a arte é manipulação. No entanto, ‘a boa arte é a manipulação para um propósito’, ressalta Burgun. Um grande romance manipula suas emoções para expressar uma ideia de controle. A arte, como qualquer outra coisa, tem um propósito, e seu objetivo é o enriquecimento humano. Para Burgun, enriquecimento não tem de significar que ele ensina alguma grande lição de moral, alguma história ou filosofia.
Burgun ilustra que pode ser algo tão simples como ‘a forma como duas linhas se entrelaçam’, como na arte abstrata, por exemplo. Nesse sentido, a teoria dos NewsGames é mais contundente, ao propor a orientação de cidadãos cônscios de seus direitos e obrigações sociais. Pois, jogando com informações noticiosas (fator histórico de debate público), as pessoas tendem a apreender a cultura política, motor social que faz girar qualquer sociedade civilizada.
Portanto, pensar os jogos digitais como disciplina nos remete à arte do enriquecimento cognitivo, indo bem além das vantagens já bem documentadas sobre a arte de jogar. Aliás, os jogos digitais ou analógicos já fazem isso o tempo todo, por meio de suas regras e jogabilidade atraentes. Mesmo porque, o conjunto de regras de um jogo é um mundo prescrito, um mundo especial que é projetado, emoldurado, fechado.
Princípio da estratégia nos videogames
Bem como ocorre com a pintura de paisagem, ou fotografia, que nos permitem fazer observações. O princípio da estratégia em si nos videogames poderia ser descrito como um conjunto de observações sobre este mundo prescrito (roteirizado). Na visão de Burgun, “a natureza de enriquecimento que os jogos, em suas bases puramente mecânicas baseadas em regras únicas, nos fornecem muitas vezes é mais abstrata que o tipo de enriquecimento que recebemos de mídias narrativas”.
Mas isso não significa que é menos profundo ou importante. Porém, a narrativa dos NewsGames promete ser ainda uma experiência mais rica em relação às chamadas mídias narrativas, pelo fato de propor o primeiro ‘casamento real’ entre textos e imagens numa mesma plataforma midiática. Até agora, as mídias narrativas não souberam promover essa ‘união estável’ entre textos e imagens.
Se até antes da era digital, vivíamos sob o signo textual de Gutenberg, depois com o advento das novas mídias a imagem deixou o texto desfocado de sua importância histórica. Ignorando os benefícios físicos óbvios, um jogador de tênis recebe uma quantidade enorme de informação para fazer a gestão de sua própria aprendizagem. Jogando um grande jogo, se envolver com um grande conjunto de regras, muitas vezes é uma experiência profunda, informativa e enriquecedora.
Sistemas de compulsão e disciplina
Podemos dividir todos os videogames em apenas duas categorias: sistemas de compulsão e sistemas de disciplina. Por agora, estou excluindo os sistemas que são claramente focados em jogos de puzzles, concursos e grandes caixas de sistemas interativos. Na realidade, não há muitos videogames que ficam excluídos deste mesmo formato.
- Jogos por sistemas de compulsão. Um jogo em que você vai completar uma série de tarefas (mundanas/sem-noção) como correr pelos corredores lineares, substituindo o seu +1 espada com uma espada +2, pressionando A, quando o jogo lhe diz para pressionar A, coletando 12 jubileejoos (t, empurrando um bloco de modo que você pode saltar até uma janela, ou apertar botões para matar todos os inimigos na tela. Um jogo que você nunca iria jogar sem o motivador extrínseco (apenas cumprimento de metas) – mesmo que grinding (ou moagem em Português). Em troca, você terá algum tipo de recompensa extrínseca, como cenas, espetáculos, realizações, alguns in-game de recursos, ou simplesmente ter vencido o jogo.
- Jogos por sistemas de disciplina. O jogador se envolve com um profundo sistema dramático, dinâmico, interessante que irá forçá-lo a usar a engenhosidade, criatividade e foco. Nenhuma recompensa extrínseca (cumprimento de metas) será dada, porque o sistema em si é a sua própria recompensa (enriquecimento cognitivo do jogador). Um jogo que, ao final, você sai do tabuleiro de alma lavada com a sensação de ter apreendido algo mais (enriquecimento), não simplesmente para obter qualquer recompensa extrínseca (metas) para continuar jogando. Parece algo confuso e paradoxal, mas não é.
Por que escolhemos jogos de compulsão?
Burgun não acredita que alguém (dada opções de escolha) escolheria sistemas de compulsão em detrimento de jogos por sistemas de disciplina, se fossem realmente conscientes das opções que tem diante de si. A maioria das pessoas não gosta de fazer muitas das tarefas exigidas pelas regras impostas por jogos movidos por sistemas de compulsão.
Contudo, os jogadores são compelidos a cumprir tarefas extenuantes sob o mito da recompensa extrínseca (recompensas). Na maioria das vezes esses jogos oferecem em troca algo quase completamente ‘inútil’, no sentido jogo-benefício. A questão é que muitas vezes não é oferecida nenhuma escolha, ou pelo menos, a maioria das pessoas não percebe que tem realmente uma escolha nas mãos. Videogames – particularmente aqueles com alto poder de simulação de fantasia, como Halo Zelda, Metal Gear e Final Fantasy – alcançaram um tipo de status de estrela do Hollywood.
Ou seja, os videogames estão no Olimpo dos inquestionáveis! Tal situação quase tornou impossível para muitas pessoas questionarem a sua identidade acima de qualquer suspeita. Até pouco tempo existiam até exemplos de jogos movidos a sistemas de disciplina que se tornaram jogos de compulsão, com uma dramática redução do teto de habilidades. A maioria dos esportes, jogos de tabuleiro, e muitos tipos de videogames multiplayer sempre flertaram com a categoria de jogos de disciplina.
No entanto, com algumas exceções (a série Madden, por exemplo, e mais recentemente, a League of Legends), quase todos os videogames são distintamente submetidos à narrativas movidas a sistemas de compulsão para enquadrarem-se no grande esquema dos jogos comerciais. E até agora pouca gente de calibre ousou dizer que essas narrativas estão mergulhadas em um mar de ópio. Será que realmente temos uma escolha? Os NewsGames serão a nossa saída honrosa? O tempo dirá! [Webinsider]
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Leia também:
- NewsGames, sustentabilidade e meio ambiente
- A internet não é mais um território anárquico
- Quando o meio digital muda a sociedade
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Geraldo Seabra
Geraldo Seabra, (@newsgames) jornalista e professor, mestre em estudos midiáticos e tecnologia, e especialista em informação visual e em games como informação e notícia. É editor e produtor do Blog dos NewsGames.