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A cultura, sob o ponto de vista do acúmulo e transmissão de conhecimento, varia de país para país, uns com nível melhor, outros não, mas a ótica das pessoas ao assistir cinema ou apreciar algum tipo de arte, embora pessoal e intransferível, deveria independer da forma com a qual se é educado. Isto porque os campos de estudo de assuntos de área humana, como psicologia, filosofia, antropologia, etc., são (ou deveriam ser) idênticos. Alguém que tenha um mínimo de educação formal nestas áreas, mesmo que seja os chamados vinte centavos de conhecimento, se sentiria capacitado a entender razões e motivos, detrás das obras de arte, cinema inclusive.

Mas, o tempo passa e o que se nota é que não é o que acontece. Ora, a última obra em cinema de animação supervisionada, ainda que parcialmente, por Walt Disney, foi um filme baseado nos livros do escritor britânico Rudyard Kipling, sobre a vida na selva da Índia. São vários livros falando sobre um menino criado por lobos, com o título “The Jungle Book”.

Contam os historiadores que Disney havia gostado da estória e do ambiente, mas ressentia o clima exageradamente sombrio e misterioso da narrativa. Encarregou então o seu associado de longa data Bill Peet de fazer um tratamento e roteiro que desse uma versão cinematográfica mais leve à estória. Mas Peet continuou no mesmo clima, os dois brigaram e nunca mais se falaram. Peet saiu do estúdio, e logo depois Disney morreu, sem que os dois reatassem a amizade.

Depois de Peet, os livros foram adaptados por pessoas que não tinham lido a obra original. Disney declarou a eles que seria melhor assim, para evitar que eles caíssem na mesma esparrela. Aparentemente, todo o lado sombrio da estória do menino recém-nascido abandonado na selva em uma cesta foi descartado. Para completar, a versão Disney incorpora música e humor, com um tempo de duração bastante curto, o suficiente para entreter as massas sem grandes constrangimentos emotivos.

Só que quando o filme foi lançado nos cinemas (no Brasil, com o nome de “Mogli, O Menino Lobo”), o interesse por desenhos de longa metragem havia caído assustadoramente e, portanto, o impacto foi praticamente nenhum entre os fãs. Eu me lembro de tê-lo assistido no recém-inaugurado Cinema Rio, da Praça Saens Peña na Tijuca, em uma sessão de fim de tarde, com quase ninguém lá dentro.

Muita gente na época se viu surpresa com o lançamento, já que Walt Disney havia falecido alguns meses antes. A filmagem, com enquadramento plano a 1.33:1, foi alterada nos cinemas para o formato das telas Panavision da época, a 1.75:1, e mantido desta forma na edição Platinum em DVD e Diamond em Blu-Ray. O som mono do cinema foi remixado para as versões em home media, primeiro com o aperfeiçoamento do estúdio para 5.1 e depois para 7.1 no Blu-Ray. Mesmo na edição em VHS, o som já era Dolby Stereo e muito bem remixado.

Jungle Book foi o último dos desenhos do estúdio a ser feito de forma absolutamente ortodoxa: fabricação de cores naturais com extratos de planta, desenhos copiados a mão, e background pintados por artistas especializados, e de grande beleza estética e artística.

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Disney, mais ocupado com seus parques temáticos desde a produção de A Bela Adormecida confiou ao veterano Wolfgang “Woolie” Reitherman a direção da animação. Se Disney não tivesse dado mais atenção aos parques teria sido bem provável que o estúdio fecharia as portas. Historicamente, ao se lançar em animação de longa metragem, Walt Disney se via constantemente às voltas com a turma do dinheiro, pessoas que financiavam seus projetos e depois cobravam de volta com os imperdoáveis juros. Seus animadores já contaram em entrevistas que vários desses financiadores tentavam interferir na produção dos filmes, ou seja, um pesadelo para qualquer cineasta ou, neste caso, animador.

O legado negativo que ainda perdura

A despeito do esmero estético, da animação com personalidade e criatividade, Jungle Book conseguiu atrair críticos entre pessoas que acham que entenderam o “real objetivo” por trás de um inocente relato sobre a sobrevivência de uma criança abandonada na selva. E parte destas críticas foi reavivada por uma de suas netas, Abigail, endossando as críticas feitas por Meryl Streep, já comentadas nesta coluna.

Para essas pessoas o discurso nos diálogos do filme é racista. Esta afirmação vem a propósito da insistência da pantera Bagheera em retornar o menino Mogli para a “vila dos homens”, que é o lugar onde ele é reconhecido pelos seus pares raciais. Bagheera fala abertamente na necessidade de Mogli procurar e viver com aqueles que são iguais a ele.

Em outro momento de alegado racismo, o músico de swing Louis Prima faz o papel de um orangotango. Prima interpreta a trilha com scat singing típico dos músicos de jazz negros, e esta seria a chave para descobrir a ilação “macacos – músicos de jazz” nas entrelinhas das cenas.

E aí poder-se-ia estender mais ainda a ilação racista entre músicos e animais, ao notar os abutres sendo caracterizados como cantores de Liverpool, mais especificamente espelhados nos Beatles.

Em “Song Of The South” a situação é ainda pior!

No filme híbrido com atores e animação Song Of The South, que no Brasil se chamou literalmente “A Canção do Sul”, um menino foge de casa, para ser achado acidentalmente pelo Tio Remo, um ex-escravo negro, tornado livre pela guerra civil americana. O filme se passa na chamada “Era da Reconstrução” do pós-guerra, e a estória ambientada no estado da Georgia.

A simples apresentação de um ex-escravo, neste período de tempo, foi suficiente para gerar controvérsias. E o motivo é simples: Tio Remo é um homem que aparenta ser feliz, e é ele quem traz, com suas estórias, o mesmo sentimento ao menino que fugiu de casa. Segundo exegetas, o filme mente sobre o estado de felicidade e sobre a relação idílica entre o homem negro e o menino, portanto enganador e racista.

Em função do medo de não apresentar o filme como sendo intenção racista do estúdio, os homens que o dirigiram nas últimas décadas tomaram a decisão (a meu ver completamente equivocada) de nunca mais relançar o filme em mídia de vídeo. O problema, entretanto, parece ser exclusivo do ambiente americano, já que edições europeias e japonesas (esta última em Laserdisc) apareceram no mercado nesta mesma época.

É curioso notar que em páginas da Internet criticando o racismo dos filmes do estúdio, mesmo os mais recentes, Canção do Sul não aparece na lista. Em uma lista do Yahoo aparecem citados filmes como Peter Pan ou Dumbo, enquanto que “A Dama e o Vagabundo” é considerado como um desfile de estereótipos racistas.

A crítica aos críticos

Se o problema é criticar, eu me julgo, com a licença do leitor, de fazer a minha própria crítica, e eu as dirijo aos moralistas de plantão, que querem enxergar racismo em filmes de cinema, como se os cineastas envolvidos quisessem deliberadamente fazer isso.

Eu aprendi, dento das salas de aula, que é preciso tomar muito cuidado, ao fazer certos tipos de colocação. Porque aquilo que se fala cai na cabeça de um aluno(a) de um jeito e na do outro(a) de forma completamente diferente. E não importa se você não teve a intenção de dizê-lo daquela maneira!

No cinema a situação é idêntica: o cineasta conta uma estória, mas a coloca do seu jeito. O espectador vê da forma como mais lhe agrada, porque não há, via de regra, uma maneira formal no ensino das escolas de interpretar um filme.

Vamos retomar o exemplo de Jungle Book: Bagheera, a pantera, passa o tempo todo preocupada com a segurança de Mogli. E usa como desculpa o perigo de certos animais carnívoros mais agressivos da selva. Ao tentar convencer Baloo o urso, que insiste no oposto, Bagheera afirma que Mogli estará melhor ao lado de seus pares humanos, que o identificam como ele realmente é. Racismo? Aonde?

Racismo é quando alguém tem preconceito contra uma raça e se contrapõe a ela. Bagheera faz exatamente o oposto: ele incentiva que Mogli retorne ao seu lugar de origem e reconheça os valores que fazem dele um bicho homem. E, de fato, no filme mesmo, os artistas de Disney elaboram um final onde Mogli enxerga, pela primeira vez, a sua contrapartida feminina, na forma de uma sedutora menina. É o seu instinto de criança curiosa que o afasta de vez da selva. Portanto, ele está, sob os olhos de Bagheera, “salvo”. Bagheera fala em preservação de uma raça, não na extinção da mesma!

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Os artistas de Disney, bem como a totalidade dos seus pares de outros estúdios desta mesma época retratavam o que viam, na forma de designs ou paródias. Não há nenhuma intenção subjacente ao se fazer isso. Fosse assim, todos os artistas caricaturistas seriam, sem exceção, maldosos por natureza.

A apresentação caricatural de estereótipos existe desde que o desenho animado foi inventado no cinema. Basta ver os desenhos de Tom & Jerry, das décadas de 40 e 50, com a personagem negra, chamada pelos fãs de Mammy Two Shoes, que sempre aparecia da cintura para baixo, falando um inglês todo errado.

Mammy foi inspirada na atriz Hattie McDaniel, cuja participação em “E O Vento Levou” lhe deu o Oscar de melhor atriz coadjuvante. Até a maneira de falar é igual. Então, se Mammy em desenho é racismo, a personagem no outro filme também o é. Só que não há nada de mais o artista da M-G-M mostrar em desenho como ele vê personagens ou pessoas de sua época. A observação aguda ou satírica faz parte sua arte, e não há maldade nenhuma nisso.

E tanto isso é verdade, data vênia, que legiões de fãs dos curtas animados da Metro começaram a se queixar quando a Warner/Turner relançou um grande número deles cheios de cortes, todos eles “politicamente corretos”. E nas últimas edições em disco um slide com justificativas das ausências destes cortes foi inserido, não para que o alegado “racismo” fosse desculpado, mas pelos cortes efetuados anteriormente, que serviram exclusivamente para omitir a realidade de outra época, segundo eles. Pessoalmente, acho isso uma desculpa esfarrapada. Ninguém ali de fato se importa com a preservação da memória do cinema, e muito menos com a censura outrora exercida, dentro e fora dos estúdios, que tanto prejudicaram cineastas e escritores. É a censura de hoje, com a mesma mentalidade da censura de outras épocas.

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E note o leitor que eu ficaria aqui horas escrevendo sobre outros filmes e batendo na mesma tecla. Mas, como isso não tem sentido, eu encerro comentando o seguinte:

Da mesma forma como não se pode impedir as pessoas de achar, dizer ou fazer o que quiserem, por outro lado, privar o colecionador, estudioso ou fã de cinema de assistir o que de bom ou excelente foi feito no passado, é ato de uma falta de bom senso sem precedentes. No caso específico de A Canção do Sul, por exemplo, existe um trabalho primoroso de fotografia do celebrado cinematógrafo Gregg Toland, que a gente não vai ter mais chance alguma de ver de novo.

Além de tudo, existe, a meu ver, uma portentosa hipocrisia no ato de censura destas pessoas que condenam os desenhos do passado. Quantas vezes hoje, eu lhes pergunto, se vê um ator ou atriz fumando sem parar em um filme moderno? Então, se o censor manda cortar um desenho com o Tom da dupla Tom & Jerry fumando um cigarro, achando que ele vai influenciar negativamente as crianças, ele está se iludindo, porque a maioria delas tem acesso de conteúdo em qualquer lugar onde um filme ou imagem possam ser reproduzidos.

A educação de uma criança se faz dentro de casa, com os pais, quando estes estão presentes, e complementada na escola, supondo ser esta de bom nível e com educadores que sabem o que estão fazendo.

Quando estes requisitos básicos não são atendidos, não será a televisão, a mídia ou o cinema que irão resolver o problema da má educação de qualquer pessoa.

[Webinsider]

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Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.

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6 respostas

  1. Oi, Fabio,

    Perfeito o seu comentário. D. W. Griffith foi tema constante das minhas aulas de cinema na década de 1960. Não há como negar o seu valor como pioneiro.

    Obrigado pela sua contribuição.

  2. Censura é execrável em qualquer âmbito. Discordo que Mogli tenha algum componente de racismo, mas ainda que eventualmente tivesse considero que não seria justificativa suficiente para proibir ou mutilar a obra com cortes. Um filme (ou animação, ou livro, ou qqr obra) deve ser assistido/apreciado levando-se em consideração o contexto no qual foi feito. Griffith por exemplo, se analisado com os olhos de hoje, era um escroto racista abominável, mas ainda assim sua genialidade e sua contribuição para o cinema são incontetáveis. Seria absurdo censurar suas obras ou picotear-lhes os pedaços. As obras de arte, ainda que muitas sejam de certo modo atemporais, eternas mesmo, de um modo ou outro acabam em maior ou menor grau refletindo a época em que foram concebidas e muitas vezes espelham um comportamento ou ética que embora inaceitável para os padrões de agora, sejam os esperados para as pessoas que viviam na época de sua concepção. Não levar isso em conta ao curtir uma obra dessas é idiotice…

  3. Aos leitores e fãs de desenhos:

    Eu acabo de saber que o segundo volume da coleção Tom & Jerry em Blu-Ray está prestes a ser lançada na América, alguns sites aceitando a pré-compra.

    Dois desenhos da série, “Casanova Cat” e “Mouse Cleaning”, anteriormente alvos de cortes de censura, foram anunciados como constantes da lista dos curtas, mas sem os cortes. “Mouse Cleaning” teve o negativo achado e restaurado, segundo um pre-release.

    Acontece que a Warner ainda não confirmou a inclusão desses desenhos, o que tem gerado o justificado inconformismo daqueles que não aceitam este tipo de censura.

    Se você leitor compartilha desta posição, por favor escreva um comentário nos sites que estão colocando o assunto em discussão (Blu-Ray.com, Amazon, etc.). Qualquer esforço contra a censura é bem vindo.

  4. Agradeço aos leitores pela sua contribuição.

    Ao Itamar:
    Seu comentário foi muito bem lembrado. Existe no Brasil um mito a respeito de ausência de racismo, facilmente derrubado por qualquer um que acompanhe futebol.

    Ao Celso:
    Não há salvação para a profissão de operador de cinema. Eu venho protestando contra isso sistematicamente, e você está entre os leitores que entendem bem o porquê.

  5. Belo texto, Paulo. Lembrar de Tom & Jerry lá nas matinês domingueiras é saudosismo puro. Pessoas que veêm racismo em tudo, veêm também pêlo em ovo.
    Aproveitando, estive em S.Paulo semana que passou e visitei uma cabine da Cinemark com projetores rodando em 8 salas. Cadê o operador? Não temos mais, diz a simpática gerente. Então, como afirma meu amigo Honório de Campo Grande: “o cinema que conhecemos já não existe mais”. É o preço da tecnologia.
    Abraço.

  6. Perfeito em todos os sentidos o seu texto. Não há o que discordar, apenas quero acrescentar o mesmo problema que aconteceu com o livro “As Caçadas de Pedrinho” de Monteiro Lobato.
    Sou negro, mas entendo o contexto da época, entendo a forma carinhosa de trato que Lobato tinha com seus personagens.
    Não é racismo, é apenas uma forma de tratamento que deve ser observada no contexto e época, e não é isso que diminui o valor da obra de Lobato e também não condena a Dysney.

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