A quantidade de codecs de áudio, tanto no cinema quanto em casa pode se tornar uma dor de cabeça para o usuário final. Este texto procura e espera dar uma luz no assunto.
Em passado remoto eu já abordei este assunto para o Webinsider, mas não pretendo me tornar repetitivo e sim tecer uma retrospectiva e comentários que sobre tópicos os quais eu acredito que pouca gente conhece.
O som no cinema encontrou resistências. O chamado “cinema falado” ou “talkies” foi considerado uma extravagância passageira. O tema foi muito bem ilustrado no filme Cantando na Chuva, da M-G-M.
E não nos causa surpresa que o primeiro filme falado (rotulado na época como “talking picture”) de impacto no cinema, “O Cantor de Jazz”, lançado pela Warner Bros no processo Vitaphone (som no disco), misturou a linguagem do filme mudo com o sonoro.
Charles Chaplin foi um dos cineastas que historicamente lutou contra a falação nas telas do cinema, preferindo continuar dando espaço à pantomima. Mas, com o tempo, percebeu que a sua atitude iria atrasar o que ele mesmo começara: a mudança da linguagem usada nos roteiros e a introdução de novos valores naquele tipo de arquitetura.
Diz o ditado popular que “o tempo é o senhor da razão”, e, de fato, cineastas modernos encaixados na vanguarda do cinema terminaram por dar especial valor às trilhas sonoras. Nas décadas seguintes, compositores brilhantes escreveram trilhas magistrais, enquanto técnicos introduziram com inteligência os efeitos sonoplásticos (chamados lá de “foley effects”) que permitiram a plateia se sentir “dentro” do filme,
Do filme mudo ao sonoro
A linguagem dos filmes mudos foi importante na evolução do cinema, mesmo em roteiros improvisados. Aquilo que Alfred Hitchcock chamava de “pure cinema” (cinema puro) consistia na capacidade de contar uma estória apenas com imagens. Uma pesquisa atenta dos filmes mudos mostra este aspecto de pureza com detalhes que impressionam até hoje.
Inevitavelmente o cinema passou por processos de expansão que seus visionários previram desde o fim do século passado, quando algumas tentativas ainda desajeitadas foram feitas para sincronizar o som na projeção da película. Thomas Edison convocou o seu ajudante William Dickson para desenvolver um projeto de filmes com som, que se chamou “The Dickson Experimental Sound Film”.
O projeto visava sincronizar o Kinetoscópio com o Fonógrafo. A Biblioteca do Congresso Americano postou um vídeo do primeiro filme deste projeto, onde se pode ver o processo de captura da trilha sonora. Infelizmente, a cópia restaurada não conseguiu encontrar o som original, neste caso, gravado em disco fonográfico.
De todas as principais contribuições para a evolução do filme sonoro aquela realizada pelo inventor Lee De Forest se destacou pela inserção da banda ótica nos filmes. De Forest não inventou este processo, mas o aperfeiçoou, junto com o design de válvulas amplificadoras, que mais tarde permitiram que o som dos filmes fosse apresentado nas salas de exibição de forma adequada. O formato desenvolvido por ele foi chamado de Phonofilm, usado extensamente muito antes de O Cantor de Jazz ser lançado nos cinemas.
O som no disco (Vitaphone) se mostrou um processo falho, porque qualquer alteração na película tirava o áudio de sincronismo. Já no Phonofilm se algo parecido acontecesse o filme não perderia este sincronismo, e foi basicamente por isso que o som no filme se tornou o padrão de todos os estúdios de cinema.
O som estereofônico
Coube a Walt Disney a primeira iniciativa de gravar e reproduzir a trilha sonora com som multicanal. O filme Fantasia, que fora projetado para ser o primeiro de uma série de concertos na mesma linha, acabou sendo um sonoro (sem trocadilho) fracasso, mostrando que naquele momento o cinema e seus exibidores ainda não estavam preparados para a exibição com som estereofônico.
O processo foi retomado mais de dez anos depois, com o lançamento do Cinerama. Neste lançamento o som ótico de Fantasia foi substituído pelo som magnético de alta fidelidade:
O objetivo agora claramente era aproveitar a largura (e, no caso, a curvatura) da tela para espalhar o som nos cinemas. No Cinerama de 3 películas a trilha sonora, gravada em fita magnética, era reproduzida em sincronismo com uma máquina separada, sincronizada com os projetores. A gravação era feita com filme magnético, e constava de até 7 canais, incluindo surround.
O conceito de som direcional ganha uma especial atenção na mixagem do áudio, o que iria ser preservado adiante. O som direcional se caracteriza pela mudança de canais na tela, de modo a acompanhar a movimentação da cena. Um exemplo disso é o da reprodução dos diálogos, onde personagens estão em posições diferentes na extensão da tela. Em alguns filmes modernos, como por exemplo “Os Incríveis II”, este tipo de mixagem continua a ser usado, para realçar efeitos sonoros.
Quanto o Cinerama mudou para a película Todd-AO e congêneres em 70 mm, desta vez com a trilha sonora em 5 canais, ela volta novamente a ser incluída na película, gravada na chamada banda magnética:
A mesma ideia, que é de aproveitar a largura da tela de forma envolvente, foi igualmente adotada para o CinemaScope, só que em quatro canais:
O som magnético de 4 e 5 canais foi usado por um longo período de tempo, mas não sem empecilhos técnicos e financeiros, a tal ponto que quase todas as produções em formato Panavision (CinemaScope) na década de 1970 foram lançadas nos cinemas com som ótico mono!
O som estereofônico simulado em banda ótica
O custo elevado da película com bandas magnéticas provocou o engenheiro de áudio Robert Fine a desenvolver um processo chamado de Perspecta, muito usado em filmes da M-G-M, com os cinemas equipados com o decodificador por ele desenvolvido. Um resumo deste projeto pode ser visto na ilustração a seguir:
O Perspecta usa apenas a banda ótica mono para desviar o som direccionalmente, portanto não é exatamente som estereofônico convencional, e sim uma simulação do mesmo!
O advento do Dolby Stereo
Para resolver os problemas técnicos decorrentes do uso de banda magnética em películas 35 mm, os laboratórios Dolby se lançaram em um formato multicanal na banda ótica, com a ajuda de um processo de redução de ruído e de divisão da banda ótica em duas pistas, tornando-a compatível com a reprodução em mono convencional.
Na década de 1970 a indústria fonográfica viu nascer o elepê quadrafônico. Tratava-se de um formato que usava os dois canais de som estereofônico dos discos para obter os 4 canais desejados. Para que este objetivo fosse alcançado usou-se uma codificação matricial, derivando o canal esquerdo frontal para o canal esquerdo traseiro, e o canal direito frontal tratado da mesma forma.
O Dolby Stereo usa um sistema matricial semelhante, mas com a derivação dos dois canais frontais para o canal central e para um canal surround mono. O canal central é obtido na reprodução em fase dos canais esquerdo e direito frontais, e o surround de sons fora de fase entre esses dois canais:
O sistema de redução de ruído foi importante neste estágio porque a banda ótica dos filmes sempre foi notoriamente barulhenta, e isso só foi contornado com a substituição dos sais de prata da banda ótica por um corante ciano e posterior introdução do scanner reverso com a ajuda de LED vermelho no bloco ótico.
O som digital em película
Com exceção do DTS, que grava na película apenas um time-code acoplado a um leitor de CD-ROM, todos os outros formatos têm a sua codificação digital na forma similar a um QR-Code, nas bordas da película:
Os leitores desses códigos são ora montados no topo dos projetores ou, como no aperfeiçoamento do Dolby Digital, no próprio bloco ótico. A manutenção da banda ótica preserva a reprodução da trilha sonora, passando para Dolby Stereo ou Dolby Spectral Recording, se a trilha digital falhar em algum momento.
Do cinema para o home theater
Foi graças à codificação matricial do Dolby Stereo que o som multicanal de 4 pistas pode passar incólume para os primeiros decodificadores domésticos, classificados como Dolby Surround. Isto porque os videodiscos foram previstos inicialmente para som analógico de apenas dois canais. Então, se o usuário não tivesse o decodificador adequado ele ouviria em estéreo convencional. Mas, uma vez com o uso do decodificador Dolby Surround e pelo menos 4 caixas o som integral da trilha sonora dos filmes de cinema passou a ser integralmente reproduzida dentro de casa! E assim o primeiro home theater (ou home cinema, termo usado na Europa) se tornou uma realidade.
O mesmo se aplica às fitas de vídeo cassete, mas estas estavam inicialmente limitadas ao som analógico magnético, enquanto que o videodisco rapidamente introduziu o estéreo digital PCM (idêntico ao CD, 44.1 kHz/16 bits) e depois substituiu uma das trilhas analógicas pela trilha AC-3 (Dolby Digital). O DTS viria pouco tempo depois, porém com a substituição completa das duas trilhas PCM.
Na linha do tempo, o Dolby Digital chegou primeiro, e o DTS bem depois. Por isso, os primeiros equipamentos com decodificador digital se limitaram ao AC-3 (Dolby Digital). Já nesta época, foram incluídas as primeiras versões do Dolby ProLogic, que nada mais era um chip para reprodução das trilhas Dolby Stereo.
Os decodificadores Dolby Surround continuaram a ser mantidos, mas o formato desapareceu mais adiante. Nos cinemas, o Dolby Stereo foi substituído pelo Dolby Spectral Recording, também ainda matricial e analógico, porém retro compatível.
O home theater foi uma maneira das empresas de cinema norte-americanas de colocar de volta os filmes que estavam apodrecendo (literalmente) em seus arquivos. Com o tempo, um enorme projeto de restauração foi desencadeado, de modo a preservar negativos e trilhas sonoras. Desnecessário dizer que o lucro maior disso foi o dos colecionadores, que puderam ter cinema de qualidade em casa.
Uma confusão de formatos desnecessária
Uma série de iniciativas tornou o som digital para o cinema em uma guerra de formatos. Com exceção do SDDS, tanto os codecs Dolby quanto DTS lutaram para ocupar o seu espaço em disco, obrigando todo mundo a modificar a instalação de decodificadores em seus home theaters.
Observem que alguns dos primeiros discos Blu-Ray primaram por incluir a trilha sonora 5.1 em LPCM, e com isso dando ao usuário o som mais puro possível. Normalmente a autoração usa a trilha sonora original e a transcreve para um codec Dolby ou DTS na fase de pós-produção. A trilha em PCM pula esta etapa!
A trilha PCM se limita nesses discos a 5.1 canais. Nos decodificadores atuais, a trilha PCM pode ser aumentada em número de canais com a ajuda de emuladores 3D, como o Dolby Surround ou o DTS Neural:X, extensões do Dolby Atmos e DTS X, respectivamente.
O som 3D, como o conhecemos, está incluído em codecs base: o Dolby Atmos fica contido como extensão do Dolby TrueHD e do Dolby Digital Plus (usado em streaming e broadcasting), o DTS:X e o Auro-3D fazem parte do DTS HD MA. Se o decodificador em uso não possuir os algoritmos para esses codecs o com 3D é ignorado e o som base é reproduzido no seu lugar.
De todos os codecs 3D o Dolby Atmos tem levado uma notória vantagem em serviços de streaming, e pode aparecer quando for implantada a TV aberta 3.0, porque o Dolby Digital Plus é um codec que pode ser comprimido, mantendo-o adequado para o chamado transporte de sinal. É por isso, inclusive, que se ouve Dolby Atmos em serviços como Netflix, Apple TV+, Amazon Prime Video ou HBO Max, entre vários outros.
Por outro lado, eu ainda estou para ver trilhas com DTS de qualquer tipo em alguma transmissão de TV ou streaming. O Auro-3D, que parecia promissor (todos os canais usam PCM), tem um escopo de uso inacreditavelmente limitado em mídia ótica. Alguns poucos discos foram lançados apenas em solo europeu.
Imagino que, além desses, nenhum outro codec importante será lançado, mas eu posso estar enganado. Quem é usuário de computadores de longa data sabe que os codecs de áudio do passado cresceram um número considerável, contribuindo desta maneira para tornar a mídia confusa. Teoricamente não haveria necessidade de tantos codecs, mas assim foi feito e no final das contas a gente nem usa a maioria deles. Outrolado_
. . . .
Walt Disney em Fantasia inaugurou o som estereofônico multicanal no cinema
Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.
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Olá Paulo Roberto. Obrigado por mais um texto primoroso, como sempre. Contudo, a confusão de formatos acaba por afastar o consumidor. Outra questão que me perturba é a variedade de serviços de streaming, fracionados e igualmente confusos. Também me dei conta de que é melhor manter e guardar a mídia ótica, seja de vídeo ou cd, pois, ninguém sabe se de repente um serviço deixará de funcionar e você não terá mais acesso ao conteúdo. Voltei a comprar e guardar cds. E os artistas não recebem uma parcela justa com streaming. Esse admirável mundo novo não me parece mais tão admirável.
Oi, Felipe,
Infelizmente sem se conhecer a plateia alvo é difícil elaborar um texto que alcance todo mundo. E, acredite, eu já me policiei diversas vezes sobre isso, inclusive.
A propósito, eu estou com um projeto em andamento, cujo lançamento ainda vai demorar um pouco, onde eu pretendo usar a exibição de slides para a narração de temas ligados a esta coluna. Serão segmentos de curta duração, provavelmente de 15 a 20 minutos, dependendo do assunto. Nos primeiros shows eu estou aproveitando um material que eu havia criado para duas palestras que eu dei na época do Festival Cinemúsica anos atrás, e eu achei um desperdício deixar estes slides sem uso.
Sobre mídia ótica, eu sou suspeito para falar, porque eu sou um colecionador, antes de mais nada, e pretendo continuar assim, mesmo assinado streaming, porque eu prezo o acervo de filmes e de música que eu e amigos juntamos ao longo dos anos, e não quero ficar dependente de qualquer serviço no momento de fazer uso da minha coleção.
Agora, o que aconteceu com músicos que perderam os seus direitos é lamentável. Anos atrás, eu conversei com o Bebeto do Tamba Trio, que soube, por meu intermédio, que os discos do Tamba estavam saindo um por um no Japão. A UMG, que comprou todo o catálogo da Polygram, relançou estes discos por lá (nós aqui ficamos chupando o dedo, diga-se de passagem) e nunca pagaram direitos autorais aos músicos. Lógico que o Bebeto ficou revoltado, e quem vai dizer a ele que ele está errado?
Olá Paulo Roberto. Obrigado por mais um texto primoroso, como sempre. Contudo, a confusão de formatos acaba por afastar o consumidor. Outra questão que me perturba é a variedade de serviços de streaming, fracionados e igualmente confusos. Também me dei conta de que é melhor manter e guardar a mídia ótica, seja de vídeo ou cd, pois, ninguém sabe se de repente um serviço deixará de funcionar e você não terá mais acesso ao conteúdo. Voltei a comprar e guardar cds. E os artistas não recebem uma parcela justa com streaming. Esse admirável mundo novo não me parece mais tão admirável.
Oi, Felipe,
Infelizmente sem se conhecer a plateia alvo é difícil elaborar um texto que alcance todo mundo. E, acredite, eu já me policiei diversas vezes sobre isso, inclusive.
A propósito, eu estou com um projeto em andamento, cujo lançamento ainda vai demorar um pouco, onde eu pretendo usar a exibição de slides para a narração de temas ligados a esta coluna. Serão segmentos de curta duração, provavelmente de 15 a 20 minutos, dependendo do assunto. Nos primeiros shows eu estou aproveitando um material que eu havia criado para duas palestras que eu dei na época do Festival Cinemúsica anos atrás, e eu achei um desperdício deixar estes slides sem uso.
Sobre mídia ótica, eu sou suspeito para falar, porque eu sou um colecionador, antes de mais nada, e pretendo continuar assim, mesmo assinado streaming, porque eu prezo o acervo de filmes e de música que eu e amigos juntamos ao longo dos anos, e não quero ficar dependente de qualquer serviço no momento de fazer uso da minha coleção.
Agora, o que aconteceu com músicos que perderam os seus direitos é lamentável. Anos atrás, eu conversei com o Bebeto do Tamba Trio, que soube, por meu intermédio, que os discos do Tamba estavam saindo um por um no Japão. A UMG, que comprou todo o catálogo da Polygram, relançou estes discos por lá (nós aqui ficamos chupando o dedo, diga-se de passagem) e nunca pagaram direitos autorais aos músicos. Lógico que o Bebeto ficou revoltado, e quem vai dizer a ele que ele está errado?