O cinema sonoro mais antigo contou com inúmeros maestros e compositores de grande estatura, mas as técnicas de gravação da época deixavam a desejar. Com o estudo e a recuperação dessas partituras, gravadas com métodos atuais, vai ser possível perceber a magnificência daqueles arranjos e trilhas sonoras.
A evolução do filme mudo para o sonoro permitiu, pela primeira vez, a união da música com o cinema, uma combinação, a meu ver, perfeita.
Ambos cinema e música têm o seu espírito criativo próprio, mas em comum estão presentes as almas de quem cria, no sentido de traduzir imagens, ora visual ora musical, uma complementando a outra, quando bem articuladas.
Quando o cinema falado começou a música era apenas incidental. O tempo se encarregou de provar que as trilhas sonoras eram de enorme importância na narrativa dos filmes.
Charles Chaplin foi um daqueles cineastas que havia criado um personagem que só se encaixava em pantomimas, mas em etapas posteriores do seu trabalho ele acabou se dando conta de que uma trilha sonora composta para um filme iria trazer uma significativa contribuição ao desenvolvimento da estória, sem precisar de diálogo.
Chaplin acreditava naquilo que Alfred Hitchcock dizia o que era “Pure Cinema”, ou seja, a capacidade de contar uma estória e provocar reações da plateia apenas com imagens. Mas, em City Lights ele acabou esbarrando em um problema: como convencer a plateia que a florista cega achava que estava lidando com um milionário. Segundo seus historiadores, ele acabou aceitando o som no filme, neste caso, na forma de um recurso sonoplástico, do barulho da porta de um carro batendo ao se fechar. Antes disso, a cena não tinha solução.
Luzes da Cidade é um filme híbrido, mudo e sonoro, magistralmente escrito e dirigido. E para ele, Chaplin compôs uma trilha sonora de altíssimo nível. Esta magnífica e bem planejada trilha mereceu um estudo e reconstrução ao final da década de 1980, por volta da comemoração do centenário do nascimento de Chaplin. Este estudo foi feito pelo maestro e compositor Carl Davis:
Durante o exame da trilha sonora de Luzes da Cidade, Davis se deparou com uma discrepância entre os arranjos originais e o som da orquestração que aparece no filme. É que Chaplin era um eterno insatisfeito e tinha hábito de alterar cenas e, neste caso, a trilha sonora, no momento da filmagem.
A partir daí, Carl Davis propôs aos músicos ouvir primeiro a trilha do filme, antes de tocar as partituras, e ele estava certo, porque o jeito de tocar alguns instrumentos é peculiar de cada músico, e neste caso o objetivo mais importante era o de recriar a trilha sonora tal como ela foi executada.
No desenvolvimento deste projeto, Carl Davis havia se unido ao cineasta e pesquisador Kevin Brownlow, que se envolveu com este tipo de estudo, para uma série de filmes mudos.
Uma edição singular
Na década de 1990, a Image Entertainment lançou um DVD, com licenciamento da CBS/Fox, com Luzes da Cidade, transcrevendo a fotografia original de câmera (1.20:1) e a trilha sonora gravada em PCM 2.0, recriada por Carl Davis. A trilha original do filme foi também restaurada, permitindo assim a qualquer um comparar ambos os trabalhos.
Este disco, aliás, foi guardado por mim com muito carinho, por conter a trilha resgatada por Carl Davis, junto com a imagem original do filme. A versão Criterion em Blu-Ray, por exemplo, não tem esta trilha.
Luzes da Cidade tem um dos finais mais bonitos que eu já vi em cinema, poesia pura!
A importância deste tipo de resgate
Anos atrás, eu publiquei no Webinsider um artigo falando sobre o trabalho penoso de recuperação das trilhas da M-G-M, feita por John Wilson. Este tipo de estudo não tem preço. Ele é, entre outras coisas, uma oportunidade que todos nós fãs de cinema iremos ter quando ouvirmos o som de alta resolução e fidelidade, oriundos de trilhas compostas em uma época em que os filmes eram gravados por sistemas óticos de baixa fidelidade.
Em Luzes da Cidade, Chaplin debocha do cinema falado, distorcendo as vozes dos primeiros personagens. Mas, nem precisaria. É admissível ter uma correta percepção de que uma vez gravada a trilha no filme o som resultante sempre era de baixa qualidade, tipicamente com limitações de alta frequência, cuja resposta chegaria até cerca de 8 kHz, se tanto.
Mesmo após a introdução da redução de ruídos no advento Dolby Stereo, a banda ótica ainda estava recheada de problemas. Os projetores e as trilhas precisaram ser modificados, para que um som decente entrasse na sala de cinema.
A tecnologia se encarregou de aperfeiçoar codecs digitais e a mídia ótica, que hoje nos permitem tomar conhecimento da magnificência das trilhas antigas, no tocante inclusive aos arranjos magistrais que foram usados durante décadas.
Bem verdade que algumas salas de projeção no lançamento do CinemaScope já haviam introduzido a reprodução por banda magnética de alta fidelidade, e caixas acústicas de melhor qualidade, e isso já foi um grande avanço. Melhor ainda com a projeção da película em 70 mm, que usa o mesmo tipo de banda magnética com melhor fidelidade.
Porém, ficaram de fora as trilhas antigas, e somente este tipo de projeto, no qual Carl Davis se engajou, foi capaz de resgatar o trabalho meticuloso dos compositores pós cinema falado.
Quem gosta de música e é fã de cinema, e tem consigo a necessária sensibilidade, será a pessoa que mais se beneficia. O cinema falado, outrora desprezado por muitos produtores e cineastas, provou que foi o melhor veículo para expressar uma forma de arte cujo valor nunca irá se apagar. Outrolado_
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Tommy em Quintophonic tentou aumentar o escopo do som multicanal
Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.