A produção de filmes variou muito no correr do tempo. Conhecer as variações torna-se muito útil para entender como um home theater é montado.
Tendo vivido uma grande parte dos avanços no cinema e tendo convivido com pessoas altamente técnicas envolvidas nesta área, eu posso agora pedir licença ao leitor, e me dar ao luxo de estabelecer parâmetros que acabaram se tornando referências pessoais de som e imagem, as quais me guiaram na montagem do meu home theater.
O termo Home Theater ou Home Cinema, como o formato já foi um dia chamado, está intrinsicamente ligado ao Cinema em Casa, mais antigo do que nós todos reunidos. Películas de filmes de diversos formatos se colocaram disponíveis para aluguel ou compra, através das décadas. Em casa, usou-se cópias em 16 mm, mudas e sonoras, em grande quantidade, e elas fizeram parte constante de todos os cineclubes dos quais eu participei.
Cópias em películas de outras bitolas também se tornaram disponíveis, como, por exemplo, 8 mm e Super 8 mm, este último com banda magnética estéreo. Os mais afortunados conseguiram montar dentro de casa projetores de 35 mm, com resultados ainda melhores.
Na era do home theater de hoje, muito se fez, eu inclusive posso falar por mim mesmo e por amigos, em escala modesta e depois bem mais avançada. Mas, para que isso fosse factível, era importante conhecer a evolução do cinema como mídia e as modificações de projeção e som, ao longo do tempo, para só depois decidir o que fazer para conseguir fazer uma montagem dentro de casa o mais próxima possível de uma sala de projeção. E se existe uma referência que se pode ter de alta fidedignidade foi a reprodução de trilhas sonoras, e eu pretendo, mais adiantas, explicar por que.
As referências na evolução do cinema
Quando o chamado formato da academia foi adotado, os filmes produzidos seguiam uma relação de aspecto em torno de 1.37:1, usada depois como base para as telas de TV antigas. Este tipo de imagem, quase quadrada, se mostrou inadequada para a evolução da apresentação de filmes nas salas de exibição. Para o cinema evoluir, lançou-se mão de novos recursos, não só de imagem como de som, este último idealizado com sucesso, para acompanhar a expansão da tela.
Este detalhe, que trata de alargamento da tela e do respectivo aumento do palco sonoro frontal, é de vital importância, e não foi corretamente previsto no filme Fantasia, lançado pelos estúdios Walt Disney, em 1940, com a trilha sonora estereofônica multicanal espalhada, mas ainda rodando no formato da academia.
Com o eventual alargamento da tela em formatos “widescreen”, foi então necessário se recorrer ao som estereofônico, dando realce sem precedentes à reprodução do diálogo e dos efeitos sonoros. E para tornar tudo isso possível, o cinema usou filme magnético de 35 mm, e depois a banda magnética incluída na própria película.
Filmes em Cinerama apresentaram o formato multicanal magnético pela primeira vez. Com a introdução do CinemaScope pela Fox, o som passou a ser incorporado na película a ser projetada, na forma de bandas magnéticas. A Fox optou pelo formato de 4 canais, que puderam ser copiados em 35 mm, e com fácil adaptação para os projetores da época.
As primeiras produções em CinemaScope apresentavam uma tela muito larga, na relação de aspecto de 2.55:1, o que obrigava uma mixagem do áudio de forma muito particularizada. Logo no início, adotou-se o “diálogo direcional”, reproduzido por 3 canais na tela. Com ele, a voz dos atores acompanhava a posição do personagem no enquadramento, mudando de um canal para o outro. Filmes em vídeo corretamente preservados mostram este tipo de reprodução dos diálogos. Em um home theater bem montado, o diálogo direcional é reproduzido exatamente como aconteceu nos cinemas.
Um detalhe que eu percebia muito neste tipo de apresentação foi o da mudança de timbre entre os 3 canais da tela, o que me permitiu identificar a posição de cada canal. Esta mudança acontecia em função da diferença de reprodução do som, fosse pela leitura da banda magnética (alinhamento das cabeças de leitura), ou pelo sistema de amplificação e acústica dos cinemas.
Mais do que o Cinerama, o CinemaScope pode tranquilamente ter ficado como principal formato de apresentação de imagem e som, como referência para um home theater. Porém, a inconsistência da gravação da banda magnética, junto com problemas de manutenção crônicos das aparelhagens, levou ao abandono do formato de 4 canais, e os estúdios passaram a oferecer cópias que incluíam uma trilha ótica mono, e estas trilhas predominavam nos filmes scope da década de 1970.
Só que os laboratórios Dolby haviam se esmerado no aperfeiçoamento da redução do nível de ruído das cópias dos filmes, e por isso, ao final daquela década, foi introduzido o Dolby Stereo, com a banda ótica dividida em 2 canais, e destes canais, um som matricial (oriundo dos discos quadrafônicos), volta a reproduzir o som do CinemaScope, de 3 canais na tela e um surround mono, instalado ao redor da plateia.
O ponto crucial desta modificação aconteceu no lançamento do filme Star Wars, em 35 mm. O filme foi também ampliado para 70 mm, mas aí os parâmetros de reprodução do som em Dolby Stereo foram outros.
Como o filme de 70 mm é provido de 5 canais na tela e não 3, a trilha foi remixada de modo a aproveitar os canais frontais para a reprodução da mixagem original.
Notem que uma das principais características técnicas do Dolby Stereo foi a eliminação (a meu ver, lamentável) do diálogo direcional usado no CinemaScope. Assim, no Dolby Stereo, o diálogo ficou ancorado no canal central, independente da posição do ator no enquadramento, e isso se aplica literalmente nas primeiras montagens de um home theater!
A referência de imagem e som em 70 mm
No meu entendimento, não há dúvida de que o desenvolvimento do Todd-AO se tornou um formato padrão para a projeção deste tipo de bitola, mas ele teve por objetivo inicialmente a substituição do Cinerama de 3 películas pelo filme de 70 mm, com a curvatura de tela similar, o chamado Super Cinerama, ou Cinerama 70.
Como antes no CinemaScope, o Todd-AO se tornou a principal referência para apresentações de filmes em 70 mm. Agora, com a expansão da tela, em largura e altura, os diálogos direcionais poderiam ser reutilizados.
O Todd-AO foi a base, a partir da qual, todos os processos de filmagem e de apresentação de filmes em 70 mm foram seguidos. Na prática, filmes rodados em, por exemplo, Ultra Panavision, Super Panavision, Technirama 70, etc., saíram convertidos para a projeção em Super Cinerama.
A evolução para o som em 5.1 nos cinemas
Em 1992, o filme Batman Returns lança o som com um novo formato, com codec AC-3 5.1, chamado de Dolby Digital. No ano seguinte, o som em DTS Digital Surround é lançado nos cinemas com o filme Jurassic Park, seguindo o mesmo formato de apresentação.
Os laboratórios Dolby já haviam experimentado um canal exclusivo para a reprodução de efeitos sonoplásticos em baixa frequência. Ele foi chamado no Dolby Digital de “.1”, ou LFE (Low Frequency Effects), porque se trata de um canal com faixa espectral de áudio limitada a frequências baixas.
Algo semelhante já tinha desenvolvido pela Universal, com o nome de Sensurround. Caixas acústicas para graves, e de enormes proporções, foram instaladas dentro das salas de cinema, com o mesmo objetivo. No filme Terremoto, as paredes do cinema tremiam, mas nos filmes seguintes o efeito sonoplástico foi pífio, e eventualmente o Sensurround foi abandonado.
No LFE, o som pode variar em amplitude e frequência (lição aprendida), de forma a se conseguir o efeito desejado, e aí, neste caso, foi introduzido um subwoofer dedicado, atrás da tela.
O Dolby Digital foi a base, a partir da qual, todas as expansões de reprodução da trilha sonora foram seguidas, inicialmente com a divisão do surround em 2 canais (5.1), e depois com a divisão dos canais traseiros em mono ou estéreo, 6.1 e 7.1, respectivamente.
A expansão de canais surround para 6.1/7.1 divide as caixas acústicas da parte traseira da sala de exibição, e aprimora o uso do surround para efeitos sonoplásticos. O mesmo princípio é seguido na montagem de um home theater.
A arquitetura dos cinemas nos filmes dentro de casa
O home theater moderno contempla qualquer expansão de canais, exatamente como no cinema, bastando acrescentar pelo menos mais duas caixas surround, instaladas na parte traseira da sala.
A instalação inicial de um home theater com a reprodução do som mais próxima dos cinemas só foi possível com o aperfeiçoamento dos decodificadores dedicados, o primeiro deles com aproximação e separação limitada entre a frente e a parte de trás da sala, levou o nome de Dolby Surround (sistema passivo), e depois com decodificadores feitos com chipsets, chamados de Dolby ProLogic. Toda e qualquer trilha Dolby mais recente é retrocompatível com o Dolby ProLogic. Quando se trata de DTS, a empresa não havia previsto a formatação fora do padrão 5.1, até mesmo no CD com DTS.
O Dolby Digital propriamente dito, com codec AC-3 lançado em Laserdisc e depois obrigatório em DVDs, foi alvo de muito estudo pelos hobbyistas, na hora de montar um home theater mais atualizado.
No início, alguns parâmetros não ficaram muito claros. A presença do LFE na trilha sonora 5.1 foi um dos principais motivos de confusão, durante o processo de instalação. Isto porque a trilha sonora de um filme abrange sons de amplo espectro, ou seja, graves, médios e agudos, enquanto que o LFE fica restrito habitualmente a 120 Hz. A implicação desta divisão de espectros é a de que a trilha sonora sem o LFE também reproduz graves em toda a sua extensão.
Por isso, no gerenciamento da reprodução de sons graves, com o auxílio de um subwoofer, é preferível ajustar o equipamento para passar para o subwoofer todo o conteúdo de graves da trilha mais o LFE, e no setup deste último indicar o corte de frequência das demais caixas acústicas. As normas THX sugerem que o corte seja feito a 80 Hz, mas isso só seria recomendável se todas as caixas do sistema fossem capazes de reproduzir com eficiência graves a partir desta frequência, o que, na maioria dos projetos, nem sempre é o caso.
Os antigos receivers tinham um LED indicador da presença do som do LFE. Isto nos permitia perceber as gafes de mixagem que apareceram em muitos discos DVD. A prática de usar o LFE desnecessariamente aparecia em mixagens esdrúxulas, feitas sem escrúpulo por diversos estúdios. Ainda se pode ver discos de música em 5.1, mas nesses discos o LFE é apenas parte do encarceramento do som 5.0, ou seja, não existe conteúdo em LFE.
Nos receivers e processadores atuais ainda é possível saber da existência do sinal 5.1 e similares, mas somente observando no display do aparelho ou na tela da TV ou projetor o diagrama de distribuição de caixas que estão recebendo sinal.
Depois do advento Dolby Atmos e DTS:X, nos decodificadores de expansão Dolby Surround e DTS Neural X, o LFE poderá ser contabilizado na expansão do conjunto de caixas, mas sem necessariamente conter qualquer tipo de informação, ou seja, o conteúdo de graves se restringe ao resto do programa em reprodução.
Em alguns equipamentos o display mostrará o envolvimento das caixas reproduzidas, e não necessariamente a reprodução do LFE, como mostra a figura abaixo:
No display lê-se somente o layout das caixas, indicando: H (Height), SW (Subwoofer), FL (Front Left), C (Center), FR (Front Right), SL (Surround Left), SR (Surround Right), SBL (Surround Back Left) e SBR (Surround Back Right). As caixas Height (H) fazem parte do som 3D do DTS:X.
Em um sistema completo e bem montado, a reprodução de trilhas sonoras em casa é tão boa ou até melhor do que nas salas de cinema. Agora então, que os filmes passaram a ser exibidos com imagem de vídeo nos cinemas, a diferença fica restrita ao tamanho da tela e do ambiente local. Já aconteceu comigo, que havia entrado em uma sala de cinema minúscula, ouvir um grupo de adolescentes um dizer para o outro que o cinema parecia ser igual à televisão da casa dele, se referindo ao tamanho diminuto da tela!
O resumo da ópera
Abaixo, eu mostro um resumo de todos os parâmetros de imagem e som do cinema, aplicáveis à montagem de um home theater:
Formato | Aplicação |
Formato da academia, 35 mm | Telas 4:3 de TV antigas |
Filmes em widescreen, 1.78:1 | Tela de HDTV, 16:9 |
CinemaScope | Reprodução do som em 4 canais discretos |
Todd-AO | Reprodução do som em 5 canais discretos |
35 mm Dolby Stereo | 2 canais matriciais, 4 canais simulados |
35 mm Dolby Digital | Reprodução em 5 canais discretos |
Dolby Atmos/DTS:X | Reprodução em som 3D |
Um fato histórico importante, que impulsionou a montagem dos primeiros home theaters foi o encarceramento matricial de 4 canais em 2 canais apenas. Descobriu-se que o som Dolby Stereo advindo da trilha original do filme (2 canais) podia ser preservada intacta na mídia doméstica (videocassete e videodisco). Assim, discos ou fitas em 2 canais iriam gerar os 4 canais desejados dentro de casa.
Uma série de codecs e formatos não foram mencionados aqui porque, na minha opinião (que o leitor não é obrigado a seguir), nunca tiveram impacto significativo na evolução do cinema e/ou na montagem de um home theater. Por exemplo, o Auro-3D, sequer foi incorporado nos primeiros receivers Dolby Atmos/DTS:X, com um número super reduzido em discos de filmes em Blu-Ray. Ou então o SDDS (extrapolação do Todd-AO com 2 canais surround), que nunca foi lançado em DVD ou Blu-Ray, portanto sem previsão para um decodificador doméstico.
A montagem de um home theater com os recursos atualmente disponíveis fica ao critério de cada usuário ou entusiasta. Nem todo mundo tem uma sala adequada a este tipo de montagem, sem falar do fator antigamente conhecido no anedotário dos fóruns como WAF (Wife Acceptance Factor), que é quando a mulher de alguém impõe ou não objeções a este tipo de montagem.
Na falta de uma sala de cinema decente, como aquelas que existiam na cidade, e sem chance de vê-las reaparecer, o home theater é, a meu ver, um meio tecnicamente razoável de, pelo menos recuperar ou preservar os bons momentos vividos anteriormente. É claro que, se alguém nunca frequentou os palácios e poeiras, dificilmente poderá avaliar isso. Outrolado_
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Walt Disney em Fantasia inaugurou o som estereofônico multicanal no cinema
Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.