Não deu nada certo a suposta invenção de uma máquina capaz de fazer determinações clínicas, com apenas uma minúscula gota de sangue.
Orson Welles fez o que hoje é um clássico do cinema com o título “Touch of Evil” (no Brasil, “A Marca da Maldade”), lançado pela Universal em 1958. E se o famoso, controvertido e genial diretor estivesse vivo, ele bem que poderia se interessar em escrever um roteiro de filme noir sobre o desenrolar dos acontecimentos envolvendo a agora condenada a 11 anos de prisão pela justiça americana Elizabeth Holmes.
A estória desta moça tem requintes sórdidos os mais variados e acabou mal. Anos atrás, um documentário da HBO com o título “The Inventor: Out for Blood in Silicon Valley”, já contando a grande farsa em torno da suposta invenção de uma máquina tipo analisador automático, que seria capaz de fazer um monte de determinações clínicas, com apenas uma minúscula gota de sangue, tirada do dedo do paciente. A máquina envolvia um design que pretendia ser revolucionário, e o custo desta análise muito baixo.
Já neste documentário dezenas de suspeitas haviam sido levantadas sobre a pessoa de Elizabeth Holmes. O jornalista do The Wall Street Journal John Carreyrou começou a investigar Elizabeth a partir de 2015, quando então ela já era vista como uma das mais poderosas empresárias de Silicon Valley, chegando a ser chamada de “o próximo Steve Jobs”.
Em depoimento recente, Carreyrou rotulou Elizabeth como “uma mentirosa patológica”. Outros de seus contendores chamaram a atenção para a persona de Elizabeth, dizendo que ela era sedutora, manipuladora, que mudou o tom de voz para um tom mais grave, para impressionar os seus interlocutores.
A estória do seu laboratório Theranos começa em 2003, quando Elizabeth tinha 19 anos, e fechou em 2018, depois que ela foi processada. Elizabeth vem de família rica, tinha aliados poderosos em Silicon Valley e no governo americano. Seus investidores acreditaram em suas promessas e ficaram aparentemente animados com a possibilidade de aumento de suas fortunas. Entretanto, o que podia dar errado, deu e muito!
O início da fraude
A máquina milagrosa desenvolvida por técnicos e cientistas da Theranos, cognominada de Edison, iria fornecer centenas de resultados de exames clínicos com apenas uma gota de sangue, a ser retirada da ponta do dedo do paciente. Elizabeth havia sido alertada por professores que isso não era tecnicamente possível, mas ela foi em frente.
E quando os resultados começaram a não aparecer, ela seguiu um princípio filosófico supostamente originado nas empresas de alta tecnologia de Silicon Valley, que dizia “Falsifique até conseguir” (“Fake it until you make it”). Depois, segundo relatos, houve ameaços de processos contra quebras de acordos de confidencialidade de funcionários que começaram a contar que tudo aquilo era fraudulento, ou seja, os resultados obtidos não eram verdadeiros.
A diferença entre precisão e exatidão em métodos de dosagem
Aqui cabe um detalhe importante para os não iniciados: todo e qualquer método de dosagem clínica deve ter a chamada “reprodutibilidade”, quer dizer, se eu fizer a mesma dosagem várias vezes, os resultados têm que ser muito próximos, ou, idealmente, iguais.
Um método de dosagem pode ser preciso ou exato. A precisão é determinada pela reprodutibilidade, como explicado acima, mas a exatidão é a determinação do valor real do que está sendo medido.
Além disso, existirá sempre em qualquer método de dosagem, o chamado “erro experimental”, derivado de uma série de fatores do processo de dosagem. Este erro é tratado estatisticamente, e uma das coisas importantes que o analista faz é medir a mesma amostra em duplicata ou triplicata, quando é possível.
Um método de dosagem usado em análises clínicas pode não ser exato, mas será estatisticamente válido, desde que se faça um levantamento de pacientes suspeitos de uma dada doença e depois comparar os resultados com uma população de controle, de pacientes que não são portadores da doença estudada.
Cada método inexato pode ser usado com segurança, mas os valores dos níveis patológicos e do controle ficarão estritos a este método. Se o analista mudar de métodos, estes valores serão diferentes, portanto a cada resultado de um exame é obrigatório se indicar o método usado e/ou os seus valores de referência.
Estatisticamente, este levantamento deve ser o mais extenso possível, porque quanto maior for a população amostrada maior será a probabilidade dos resultados obtidos serem clinicamente verdadeiros.
No caso do Theranos, cientistas ligados ao Edison verificaram falta de precisão e de exatidão, o que é clinicamente inaceitável. Em função desses achados, o perigo de diagnóstico falso aumenta substancialmente, e aí se está lidando com uma fraude capaz de até matar o paciente, dependendo do tipo de tratamento ao qual ele ou ela são submetidos!
No que tange aos exames bioquímicos
Esta é uma área na qual eu trabalhei logo no início da minha vida acadêmica. Uma vez o departamento me encarregando de supervisionar os monitores de aula prática, eu os reunia toda semana, dando explicações sobre os métodos usados, os possíveis diagnósticos e assuntos correlatos.
Eu vinha de uma época onde a maioria das dosagens ainda era feita com um fotocolorímetro, com leituras na região da luz visível. O aparelho da época era o Klett-Summerson, largamente usado em quase todos os laboratórios de análises clínicas e, no caso, nos laboratórios de aula prática do nosso departamento. O Klett, apesar de eletricamente tosco, era muito bem desenhado: ele usava uma célula fotoelétrica de referência, cujo feixe de luz era o mesmo do usado para a análise. Isto era conseguido com a interposição de lentes geminadas na frente da fonte de luz.
Se a luz oscilasse a medição seria afetada em ambas as células, e assim o erro de leitura era automaticamente eliminado. Uma simples ponte de Wheatstone fazia o equilíbrio de leituras, e uma solução de referência era usada para calibrar o aparelho no momento da dosagem. A minha função na orientação dos monitores era a de explicar os detalhes técnicos da máquina, de forma a que eles pudessem encarar o alunos sabendo de antemão o que estava acontecendo se algo desse errado na hora da dosagem.
Notem que este método manual era clinicamente confiável, apesar de primitivo. Isso dava confiança aos médicos, na hora de estabelecer um diagnóstico e o respectivo tratamento, quando era o caso.
Implicações sobre as consequências éticas das fraudes do Theranos
O que ajudou a condenar Elizabeth Holmes foi a sua associação com a rede de farmácias Walgreens, para onde as máquinas de Holmes foram enviadas sem antes se certificarem que funcionavam corretamente.
Tal imprudência, além de antiética, disseminou o número de resultados suspeitos, cujos pacientes correram o enorme risco de serem alvo de diagnósticos imprecisos ou falso positivos.
Tudo isso parece indicar não só a má fé do contrato, a ambição desmedida de ganhar rios de dinheiro, mas também o tamanho do descrédito dado a princípios muito bem estabelecidos de toda a estatística feita em ensaios clínicos.
Os projetos de pesquisa na área clínica são sempre difíceis de planejar. Os pesquisadores são obrigados a se precaver contra a inclusão de uma casuística não confiável, e, pior ainda, estabelecer com segurança quem são os pacientes da população de controle. Se estes não forem confiáveis, o projeto como um todo está falido desde o seu início.
Agora, imaginem mandar uma máquina Edison para uma rede de farmácias sem os testes terem sido concluídos! Aonde é que estava a cabeça desta gente quando fizeram isso? E se algo negativo imediato aconteceu foi o precipitar a inspeção do Theranos, inspeção esta, a meu ver, que já deveria ter sido feita bem antes disso!
Cheia de guarda-costas
Elizabeth Holmes foi denunciada por mais de uma pessoa e mais de uma vez. Dizem que nos últimos anos ela circulava com guarda-costas por onde ela andava.
É curioso perceber como poderosos intocáveis, aqui no Brasil e lá fora, uma vez sob a vigilância da justiça, ficam doentes, desfigurados e às vezes andando com cadeiras de roda.
O que causa espécie é o nível de ambição das pessoas, e a respectiva avidez em busca da fama e da riqueza. Esta comparação com Steve Jobs é infeliz. De fato, Jobs ficou rico, famoso, mas não foi ele quem desenvolveu o Apple II. Durante anos, ele agiu de forma tirânica com muitos dos seus colaboradores, que acabaram se afastando dos seus projetos. Nem tudo da Apple deu certo, e claramente esta mania paranoide de fechar a arquitetura das máquinas acabou custando caro à própria empresa fundada por ele.
Silicon Valley é sim um marco do empreendimento, alguns projetos de impacto, mas, ao mesmo tempo, sinônimo de falta de escrúpulo e fracassos que geraram desemprego e prejuízo sem precedentes. A sua história mostrou cópias e roubos de patentes, roubos de projetos (vide Facebook), com promessas de fundos e mundos aos usuários finais. Muitas dessas “revoluções tecnológicas” nunca foram realizadas ou acabaram prematuramente.
É preciso acontecerem eventuais rombos gigantescos para que todos os envolvidos acordem. A empresa de Elizabeth Holmes valia bilhões de dólares, e hoje não vale nada. E nós aqui que nem nos damos conta mais daqueles que também fecharam as suas portas ou estão prestes a fazê-los! Outrolado_
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Paulo Roberto Elias
Paulo Roberto Elias é professor e pesquisador em ciências da saúde, Mestre em Ciência (M.Sc.) pelo Departamento de Bioquímica, do Instituto de Química da UFRJ, e Ph.D. em Bioquímica, pela Cardiff University, no Reino Unido.